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A feitura do memorial, um grande desafio de reflexão

sobre o inesperado

A memória é um resto. Um resto do que já não é mais: esta é sua própria condição. [...] o memorial provém de duas dinâmicas apa-rentemente contraditórias, mas na

realidade, complementares, uma sendo feita da memória provedora de configurações identitárias, ao passo que a segunda as

cons-titui em receptáculo. (p. 267) Véronique Marie Braun Dahlet18

Este texto tem como objetivo descrever minha trajetória acadêmica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

18 DAHLET, Véronique Marie Braun. Memorial e a formação da memória. IN PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre. (orgs.) Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal, EDURFN; São Paulo: Paulus, 2008. P. 267-275.

como parte dos requisitos para a progressão vertical para Professora Titular, tendo em vista o que dispõe o Plano de Carreira (Portaria MEC número 982, de 07 de outubro de 2013) e também as normas da UFRN (Resolução número 067/2017- CONSEPE, 13 de junho de 2017). Nesse sentido, apresento as atividades desenvolvidas desde a minha inserção profissional na Universidade, no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, bem como meu percurso pela minha formação acadêmica e de vida, que me fizeram chegar até aqui.

Conforme a resolução número 067/2017- CONSEPE, de 13 de junho de 2017, Art. 28, o memorial deverá, de forma discursiva e circunstanciada, demonstrar excelência e especial distinção nos seguintes aspectos:

I. descrição e análise das atividades de ensino, pesquisa e/ou extensão desenvolvidas pelo docente, incluindo sua produção científica;

II. descrição de outras atividades, individuais ou em equipe, relacionadas à sua área de conhecimento;

III. descrição de outras atividades acadêmicas e

institucionais complementares, incluindo atividades administrativas e/ou representações institucionais de cunho acadêmico, dentro ou fora da UFRN.

Assim, me é posto o desafio de fazer uma reflexão sobre como chego, hoje, a ser uma professora na UFRN, mas só posso

fazê-lo olhando a trajetória que trilhei para chegar até aqui.

Eis um desafio ainda maior: olhar como fui me constituindo acadêmica das ciências humanas na trajetória construtiva de mim mesma, sendo que não sou mais aquela pessoa naqueles diferentes momentos; olhar para um eu que já não existe, pois se transformou no que sou hoje. Como afirma a professora Passeggi (colega que fez parte de minha trajetória), em seu texto Memoriais auto-bio-gráficas: a arte profissional de tecer uma figura pública de si, construir esse documento

“é aparar a si mesmo com suas próprias mãos [...], aparar é ajudar a nascer” (PASSEGGI, 2008, p. 27).

Costumo brincar com os estudantes que frequentam meus componentes ou são meus orientandos de iniciação científica, mestrado ou doutorado: digo que tive muitas vidas e muitas histórias. Algumas delas não caberiam em um memorial dessa natureza, claro, mas outras sim, pois só por elas pude chegar a minha vida atual. Por isso, o meu percurso reflexivo fará um esforço de, com meus olhos atuais, com as possibilidades que a Teoria das Representações Socias (referente teórico ao qual me filio e construo minha atuação acadêmica) pôde me dar, retomar a minha trajetória de formação articulando as vivências, aprendizagens de vida e acadêmicas.

Como defende Severino (2001, p.175),

[o memorial] é uma autobiografia configurando-se como narrativa, simultaneamente histórica e reflexiva. Deve então ser composto sob a forma de relato histórico, ana-lítico e crítico, que dê conta dos fatos e acontecimentos que constituíram a trajetória acadêmico-profissional de seu autor.

Outro grande desafio que se me apresenta é fazer tal reflexão em momento tão difícil para quem trabalha com educação básica e superior, no nosso país. Desde 2016, mas mais acirradamente desde o final de 2018, o campo da edu-cação no Brasil tem sido desqualificado e perseguido pelos defensores da política ultraneoliberal e contrária à ciência e academia. Movimento esse que atinge a todos, professores e professoras, acadêmicos e acadêmicas, cientistas, que são comprometidos com a construção e democratização dos conhecimentos nas diferentes áreas e que colaboram para que a população possa ter acesso ao conhecimento e por meio dele possa se posicionar socialmente.

Sendo assim, já assumo o meu lugar epistemológico, mas também social e político, de me colocar ao lado das concepções formativas que propõem a defesa da educação pública, laica, de qualidade e sócio referenciada para todos os brasileiros, em especial, para aqueles que, em suas trajetórias históricas nesse país, foram excluídos do acesso ao conhecimento, ao trabalho digno e à saúde de qualidade.

Ao estruturar o texto do memorial me deparei, ao pensar em minha trajetória, com a sua constituição em vários ines-perados. Não acredito que existe um ser escrevendo nossos caminhos, alheio ao que fazemos, por isso, falo de inesperados.

Tenho a certeza de que foram as respostas que pude dar, em cada momento, a cada um deles, que me fizeram chegar aqui.

Tomo esse termo “inesperado” de empréstimo do título do livro de Marcelo Gleiser (2016), A simples beleza do inespe-rado: um filósofo natural em busca de trutas e do sentido da vida, que me foi recomendado pela professora Conceição Almeida, muito importante para minha aprendizagem de ser mulher acadêmica, quando soube que ingressaria nesta tarefa de escrever meu memorial. Esse termo me caiu muito bem.

Outro texto que foi de grande impacto em minha vida foi de Simone de Beauvoir, sua biografia, que li pela primeira vez em 1987, logo que entrei no curso de Pedagogia, por indicação de uma colega feminista (eu ainda sabia muito pouco sobre isso) num exemplar impresso pelo Clube do Livro. Entender a trajetória de uma grande mulher e pensadora do século XX foi impactante. Muita coisa só compreendi muito mais tarde, depois de outras tantas leituras, mas o título Memórias de uma moça bem-comportada me inquietava. Sempre pensei, se eu, um dia, fosse escrever algo sobre mim, seriam memórias de uma moça mal comportada.

É com a articulação dessas duas influências que titulei este memorial: Memórias de uma moça mal comportada:

uma vida inesperada. Divido o texto em cinco inesperados que foram determinantes em minha trajetória formativa, mais ainda para a construção da acadêmica que sou hoje na UFRN.

Em o Primeiro inesperado: de classe média burguesa à trabalhadora da educação, trato sobre uma menina que, nascida na classe média burguesa em 1966, neta de um coronel da polícia militar, pelo lado de mãe e de uma matriarca batista, pelo lado do pai, chega à trabalhadora da educação e mãe solo aos 21 anos de idade. Experiências e marcadores que transformam o meu olhar sobre a educação brasileira e suas formas de exclusão, o universo feminino, e principalmente, o país onde eu estava vivendo.

No Segundo inesperado: a mudança de estado e de realidade sociocultural e o encontro com a academia e com a Teoria das Representações Sociais, trato de como a mudança de estado e o contato com a universidade pública, mais especificamente com a Teoria das Representações Sociais e os programas de formação de professores, me ajudaram a qualificar o meu pensar, com isso as minhas propostas de investigação e a minha compreensão crítica do fenômeno educativo, em especial no Nordeste brasileiro.

Em o Terceiro inesperado: ser professora concursada numa universidade federal, procuro fazer uma reflexão crítica sobre a finalização de meu doutoramento e o desemprego que assola tão alta formação, a busca de oportunidade no sudeste do país, o confronto com a realidade do ensino superior privado e o retorno ao universo público, possível devido às mudanças de perspectivas políticas do novo governo, a partir de 2003. A partir de 2004, já como professora concursada do quadro efetivo da UFRN, na área de Fundamentos da Educação e Didática, circunstancio a minha consolidação como professora, pesquisadora e gestora no Departamento de Educação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFRN e, em seguida, no Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação do Centro de Educação.

O Quarto inesperado: a Pró-reitoria de Graduação – ser adjunta de uma pasta complexa me remete a uma experiência mais recente (2015-2019), mas profundamente impactante para pensar a universidade pública como um todo, mais especificamente a UFRN, suas decisões e encaminhamentos no que se refere ao ensino de graduação, aos seus dilemas, dificuldades, desafios e busca de soluções. Essa experiência mais profundamente me possibilitou uma reflexão sobre a formação do professor e seu impacto na formação geral e profissional dos graduandos, bem como sobre as diferentes

concepções formativas que povoam as práticas pedagógicas dentro da universidade pública.

Para finalizar, busco em o Quinto inesperado: Ser pro-fessora titular no contexto atual, uma proposta de trabalho para mais 10 anos de carreira fazer uma reflexão sobre como, a partir de agora, sendo aprovada ou não como professora titular, pretendo configurar as linhas de continuidade na construção da minha trajetória como professora universitária em uma universidade pública diante do contexto sociopolítico no qual estamos inseridos, que deverá durar no mínimo mais três anos. Desta forma, atendo também ao proposto na legislação, anunciada no início desta introdução como Plano de Trabalho.

Primeiro inesperado: de classe média