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A FENOMENOLOGIA SOCIOLÓGICA E A PERS PECTIVA COMPREENSIVA NA INVESTIGAÇÃO

CIÊNCIAS SOCIAIS

A FENOMENOLOGIA SOCIOLÓGICA E A PERS PECTIVA COMPREENSIVA NA INVESTIGAÇÃO

EM SAÚDE

Para Minayo (2010), a Sociologia Compreensiva

“privilegia a compreensão e a inteligibilidade como propriedades específicas dos fenômenos sociais, mostrando que o Significado e a intencionalidade os separam dos fenômenos naturais” [gri-

“as realidades sociais são construídas nos significados e através deles e só podem ser identificadas na linguagem significativa da interação social. Por isso, a linguagem, as práticas, as coi- sas e os acontecimentos são inseparáveis” (p. 51). A Sociologia

Compreensiva de Weber significou uma virada epistemo- lógica na Sociologia nascente, privilegiando a perspectiva

microssocial, com enfoque na ação social, em detrimento das

perspectivas macrossociais representadas pelo Positivismo Sociológico de Durkheim e pelo Materialismo Histórico e Dialético de Marx. Mais tarde, essa virada traduziu-se em uma revolução microssocial como reação crítica ao estrutural- funcionalismo de Talcott Parsons, Bronislaw Malinowski, A. R. Radcliffe-Brown e Robert Merton, fazendo emergir correntes microssociológicas como o Interacionismo Sim- bólico de Herbert Blumer, a Etnometodologia de Harold Garfinkel e a Fenomenologia Sociológica de Alfred Schutz (MINAYO, 2010; HAGUETTE, 2001).

A Fenomenologia Sociológica é proposta como mé- todo de referência tanto por adequar-se às exigências de abordagem e à experiência cotidiana com os problemas trazidos pela doença quanto por representar, relativamente ao campo da saúde, o maior peso de influência. Juntamente com a Etnometodologia ela se situa no âmbito da Sociologia

da Vida Cotidiana, percebendo-se em ambas a presença do

conceito fundante weberiano: o Significado da ação social. Entretanto, no caso específico da Fenomenologia Socioló- gica, embora se perceba as influências weberianas na sua elaboração teórico-metodológica, é no pensamento do fi- lósofo alemão Edmund Husserl que ela buscou seu nome e fundamentação metodológica (MINAYO, 2010).

Husserl (2006), em seu projeto ambicioso de estabe- lecer um método de fundamentação da ciência e de cons- tituir uma filosofia como ciência rigorosa, fala da fenome- nologia como uma ciência eidética ou de essências, na qual podemos encontrar os fundamentos das ciências dos fatos, seja quando estas usam os princípios formais tratados na lógica formal, seja quando identificamos nos fatos, das quais são objetos, os respectivos substratos eidéticos materiais.

Para a fenomenologia, o conhecimento é, em todas as suas configurações, uma vivência psíquica: é o conheci- mento do sujeito que conhece. Perante ele estão os objetos conhecidos. Mas, como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com os objetos conhecidos? Como pode ir além de si e atingir fidedignamente os objetos? O dado dos objetos cognitivos no conhecimento, óbvio para o pensamento natural, torna-se um enigma. Na percepção, a coisa percebida deve imediatamente ser dada. Aí está a coisa diante dos meus olhos que a percepcionam; vejo-a e agarro-a. Mas a percepção é simplesmente vivência do meu sujeito, do sujeito que percepciona (HUSSERL, 1989).

O método husserliano parte da imediata evidência da consciência. O mundo real existe, mas é exterior à consciên- cia, logo deve ser reduzido a um fenômeno a fim de que se possa conhecer. Assim, a primazia do objeto é deslocada para a relevância de uma interação do sujeito com o objeto, que, por meio da consciência intencional, permite dispor de consciência de algo e de consciência de si mesmo. Aqui o conhecimento, contrário ao modo cartesiano que o obtém por duas vias (o que está na consciência, ou seja, a ideia, e o que está fora da consciência), unifica estas vias. O objeto,

pela sua intencionalidade, está no sujeito ou na consciência, embora não seja parte dela.

O método fenomenológico propõe a busca do co- nhecimento a partir de três fases interligadas (HUSSERL, 2006). A primeira fase é a dúvida cartesiana, porém con- siderando a imanência da consciência e a transcendência do mundo externo. A segunda fase é a busca da essência do objeto pela redução fenomenológica empreendida pela consciência intencional do sujeito cognoscente por meio da intuição. A terceira fase do processo é a mais complexa do método, e trata-se, a partir das essências ou conteúdos obtidos do objeto, de determinar com a maior consistência viável às suas formas e correlações sob uma análise acurada e informativa baseada em uma teleologia. Em síntese, essas fases ou momentos constituem diferentes tipos de reduções, porém sem qualquer caráter de linearidade ou sucessão: a fenomenológica, a eidética e a redução transcendental.

O representante mais significativo da linha de pensa- mento fenomenológico nas ciências sociais, é Alfred Schutz, autor que, de forma pioneira, consegue, a partir da feno- menologia husserliana, dar consistência filosófica às teorias sociológicas de Max Weber, provendo uma completa e ori- ginal análise da ação humana e seu significado intencional, oferecendo, assim, a possibilidade de responder à questão fundamental sobre se as ciências sociais podem prover um entendimento genuíno dos seres humanos. Como seu tra- balho parte da sua concordância com a tese de Weber de que a ação social é definida pelo significado, o primeiro pas- so de sua teoria é formular um conceito de significado, ba- seando-se fundamentalmente em Husserl. Sua originalida-

de consiste em formular de forma mais específica o conceito de significado da ação social (SCHUTZ, 1967).

Mas, para os fins desta discussão, do que trata a fe- nomenologia enquanto método para a vigilância crítica da pesquisa social? Como tentativa de resposta, adotaremos a perspectiva de Max Van Manen (1990). Segundo esse autor, o que caracteriza a pesquisa fenomenológica é que ela sem- pre parte do mundo da vida. Do ponto de vista da fenome- nologia, fazer pesquisa é sempre questionar o modo como experienciamos o mundo, é querer conhecer o mundo no qual nós vivemos como seres humanos.

E desde que conhecer o mundo é profun- damente ser-no-mundo em uma certa ma- neira, o ato de pesquisar¯questionar¯teori- zar é o ato intencional de prendermo-nos no mundo, tornarmo-nos mais plena- mente parte dele, ou melhor, nos tornar- mos o mundo. A fenomenologia chama essa inseparável conexão com o mundo de “intencionalidade” (VAN MANEN, 1990, p. 5, grifos nossos).

Para Van Manen (1990), a pesquisa feno- menológica é:

O estudo da experiência vivida: é o estudo do mun- do da vida – o mundo tal como nós imediatamente o ex- perienciamos pré-reflexivamente ao invés de como nós o conceptualizamos, categorizamos ou sobre ele refletimos.

A explicação dos fenômenos tal como eles se apre- sentam à consciência: qualquer coisa que se apresenta à consciência é potencialmente de interesse para a fenomeno-

logia, seja o objeto real ou imaginado, empiricamente men- surável ou subjetivamente sentido. A consciência é o único acesso que os seres humanos têm ao mundo. Dito de outra maneira, é pela virtude de ser consciente que nós estamos sempre em relação com o mundo. Ser consciente é ser cons- ciente, em certo sentido, de algum aspecto do mundo.

É o estudo das essências: a fenomenologia pergunta pela natureza íntima de um fenômeno, pelo que faz alguma

coisa ser o que ela é – e sem a qual ela não poderia ser o que

é. A essência de um fenômeno é um universo que pode ser descrito através do estudo da estrutura que governa as ins- tâncias ou as manifestações particulares da essência daquele fenômeno.

É a descrição dos significados experienciados que nós vivemos como se nós tivéssemos vivido: a ciência humana fenomenológica é o estudo dos significados vividos ou exis- tenciais; ela tenta descrever e interpretar esses significados em um certo grau de profundidade e riqueza.

É o estudo científico dos fenômenos: a fenomenolo- gia afirma ser científica em sentido amplo, desde que ela é o estudo sistemático, explícito, autocrítico e intersubjetivo de seu problema de pesquisa: nossa experiência vivida. Ela é sistemática, porquanto usa modos especialmente práticos de questionamento, reflexão, enfoque, intuição etc. Ela é ex-

plícita ao tentar articular, através do conteúdo e da forma do

texto, as estruturas do significado embutidas na experiência vivida. Ela é autocrítica no sentido de que ela examina con- tinuamente seus próprios objetivos e métodos na tentati- va de chegar aos termos dos pontos fortes e fracos de suas

abordagens e resultados. Ela é intersubjetiva ao postular que o pesquisador de ciência humana necessita do outro para desenvolver uma relação dialógica com o fenômeno, e assim validar o fenômeno tal como descrito.

É uma prática atenta da pensatividade: se há uma palavra que melhor se aplica à fenomenologia, então essa palavra é pensatividade. Nos termos dos grandes fenomeno- logistas, ela é descrita como volver a mente para prestar aten-

ção a, estar atento e cuidar – um espanto consciente e atento

sobre o projeto de vida, de viver, do que significa viver a vida. É a busca pelo que significa ser humano: como nós pesquisamos as estruturas de significados possíveis de nos- sas experiências vividas, nós atingimos uma plena com- preensão do que significa ser-no-mundo como um homem, uma mulher, uma criança, falar num relato inerente às tradi- ções históricas e socioculturais que dão significado a nossas formas de ser-no-mundo.

É uma atividade poética: a fenomenologia é um pro- jeto poético, que tenta uma fala evocativa e encantadora, uma fala primeira, onde nós tentamos envolver a voz em uma canção original do mundo.

Van Manen (1990) propõe uma estrutura metódi- ca, de orientação fenomenológica, da pesquisa em ciências humanas, que representa um jogo dinâmico entre seis ati- vidades de pesquisa: Voltarmo-nos para um fenômeno que nos interessa seriamente e que nos compromete com o mundo: o método fenomenológico parte de um dado modo de ser-no-mundo, de percebê-lo com intencionalida-

pessoas que o experienciam. É desse mundo que extraímos fenômenos, cujas essências buscamos como forma de agir nesse mundo no qual somos e com o qual nos comprome- temos em nosso agir; Investigar a experiência como nós a vivemos ao invés de como nós a conceptualizamos: a pesquisa fenomenológica objetiva estabelecer um contato renovado com a experiência original. O método fenome- nológico, então, busca trabalhar sobre a experiência vivida como categoria, em todas as dimensões e em todos os seus aspectos. O pesquisador deve conceder primazia à plenitude da experiência vivida, de situar essa experiência nas relações que constituem o mundo vivido e nas situações comparti- lhadas intersubjetivamente; Refletir sobre os temas essen- ciais que caracterizam o fenômeno: como o propósito da reflexão fenomenológica é tentar refletir sobre o significado das coisas, ou seja, intuir sobre a essência de um fenômeno, e como a pesquisa em ciências humanas está engajada na atividade do trabalho em torno de textos, o método feno- menológico envolve um processo de apropriação reflexiva, de clarificação e de explicitação da estrutura do significa- do da experiência vivida tal como se expressa textualmente, permitindo uma análise temática dos vários aspectos dessa experiência; Descrever o fenômeno através da arte da es- crita e da reescrita: Dado que é difícil separar linguagem e pensamento, fazer pesquisa num sentido fenomenológi- co é explicitar algo, tal como intuído pela consciência, lin-

guisticamente, principalmente através da atividade escrita.

Em outras palavras, o método fenomenológico consiste na aplicação do logos (linguagem e pensatividade) ao fenômeno (um dado aspecto da experiência vivida) para explicitá-lo

tal como ele se explicita. Com efeito, a escrita e a reescrita constituem-se em processos de explicitação e reexplicitação do fenômeno, tratando-se de atividade inerente ao método fenomenológico; Manter uma relação forte com e orien- tada para o fenômeno: a pesquisa qualitativa exige muito dos seus praticantes. A menos que o pesquisador permaneça em sua orientação à questão, ao fenômeno ou à noção, ele pode ser tentado a (a) tomar partido de uma determinada posição ideológica; (b) ser indulgente com especulações que são fruto de inclinações pessoais; (c) ajustar-se a opiniões preconcebidas; (d) deixar-se encantar por reflexões narcí- sicas ou por preocupações autoindulgentes; ou (e) cair em conceitos taxonômicos ou em teorias abstratas. Assim, o método fenomenológico implica em que para estabelecer uma forte relação com uma certa questão, fenômeno ou no- ção, o pesquisador não pode adotar uma atitude “cientifi- camente desinteressada”. Ao contrário, deve estar animado pelo objeto em sentido humano pleno, não se contentando com superficialidades e falsidades; Balancear o contexto de pesquisa através da consideração de partes e todo: duran- te a pesquisa fenomenológica, o pesquisador pode estar tão envolvido com a questão ontológica focal “O que é isto?” que pode emperrar o processo interpretativo-descritivo do fenômeno, falhando em atingir a clareza que dá ao texto seu poder revelador. Assim, o método fenomenológico consiste em avaliar constantemente o desenho global do estudo/tex- to contra a significância que as partes, ou as questões onto- lógicas focais, devem jogar na estrutura textual global.

Poderíamos dizer que, nos termos de Bachelard (1977), essa estrutura metódica é um modo de vigilância

epistemológica sobre o processo de pesquisa estruturada pela

fenomenologia. Nesse sentido, e ainda baseados nesse autor (BACHELARD, 1996), sustentamos que ela é de interesse para os fins deste trabalho por tornar clara a forma como a investigação da cronicidade pode ser estruturada com refe- rência precípua à natureza do objeto investigado, permitin- do, no âmbito da constituição do método a ser empregado, dando-lhe um conteúdo de cientificidade.

Daí que propomos analisar como o processo saúde- doença-atenção é construído na perspectiva da fenome- nologia e da antropologia médica fundamentada na teoria interpretativa da cultura (GEERTZ, 1989), cujos apor- tes teórico-metodológicos (KLEINMAN, 1980, 1988; LAPLANTINE, 1999) serão discutidos neste trabalho para orientar a investigação sobre a cronicidade.

A NATUREZA ONTOLÓGICA DA DOENÇA NO