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NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS DE ADOECI MENTO CRÔNICO COMO OBJETO DE REFLEXÃO

CIÊNCIAS SOCIAIS

NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS DE ADOECI MENTO CRÔNICO COMO OBJETO DE REFLEXÃO

Vemos que o processo de adoecimento crônico afeta a história de vida das pessoas, tanto em termos de “con- sequências” quanto de “significados” (BURY, 1991). Assim, os danos e incapacitações surgidos ao longo desse processo provocam limitações nas atividades diárias, mas também revisões sobre as expectativas em relação ao futuro. Ao mesmo tempo, a interpretação sobre a origem, natureza e sentido desses danos e incapacitações é elaborada em con- textos específicos de interação social, em que são acionadas experiências que integram as histórias de vida dos indiví- duos afetados pela condição crônica. Nesse sentido, ainda que essas interpretações sejam situacionalmente definidas (em determinados contextos de interação social e pontos da trajetória de adoecimento), elas reivindicam muitas vezes a perspectiva biográfica como um quadro para organizar a ex- periência de adoecimento e (re)dimensionar os projetos de vida afetados pela cronicidade.

O interesse pela perspectiva biográfica sobre o adoe- cimento crônico tem se beneficiado da intensa produção de estudos narrativos no campo da saúde, especialmente reali- zada a partir da década de 1980 (GERHARDT, 1990; RO- BERTS, 2002). No Brasil, esse interesse tem se intensifica- do mais recentemente, no que se refere à reflexão conceitual sobre as relações entre narrativa e experiência de adoeci- mento (SOUZA, 2013; NUNES, 2010; GOMES, 2002).

Gareth Williams (1984) chamou a atenção para pro- cessos de reconstrução narrativa sobre a história de vida,

desencadeados pelo diagnóstico de artrite reumatoide. Ele analisa três casos em que a experiência de adoecimento pro- voca quebras ou mudanças na dimensão teleológica da his- tória de vida de pessoas assim diagnosticadas, ocasionando releituras sobre essa história. Essas reconstruções narrativas são produzidas a partir de entrevistas que procuraram ex- plorar as interpretações dessas pessoas sobre a gênese de sua condição crônica.

Bury (1982), em estudo clássico sobre a mesma con- dição crônica, propõe o conceito de ruptura biográfica para compreender a experiência de adoecimento de mulheres de classe média que recebem o diagnóstico da doença em uma idade totalmente inesperada. Para essas mulheres, tal diagnóstico produz importantes rupturas com: os conheci- mentos e pressupostos inscritos nas suas relações cotidianas com o corpo; com o modo de ser e de agir diante das difi- culdades; com a sua biografia e com o próprio “self”. Char- maz (1983) analisa os efeitos disruptivos do adoecimento crônico que, quando levados ao extremo, são responsáveis por provocar a “perda do self”.

Esses conceitos mostraram-se, especialmente, ade- quados e relevantes para a análise de doenças graves que se instauram de maneira “inesperada” história e contexto de vida dos sujeitos por elas afetados, tendo influenciado de maneira ampla os estudos sociológicos sobre o adoecimento crônico.

Simon Williams (2000) critica o uso indiscriminado do conceito de ruptura biográfica, alertando para situações em que há falta de rigor analítico em seu emprego ou em

que o conceito possui certos limites explicativos. Dentre outras questões, o autor lembra que na pós-modernidade, vivemos em um contexto de “(auto-)reflexividade” em que rupturas ou reconstruções biográficas podem estar associa- das a outros vetores para além das doenças crônicas. Além disso, ele defende que não cabe falar em ruptura biográfica em relação a condições genéticas, uma vez que essas acom- panhariam a vida dos sujeitos afetados, desde os seus pri- meiros dias de vida. Williams (2000) advoga a ideia de que o uso adequado do conceito de ruptura biográfica implica a adoção de rigorosa análise que leve em consideração as relações entre significado, tempo e contexto.

Não obstante a relevância dessa crítica em favor do rigor metodológico, os conceitos de reconstrução narrativa e ruptura biográfica mostraram-se extremamente sensíveis e relevantes para a análise da experiência de adoecimento grave. Entendo que essa relevância pode ser alcançada até mesmo na análise de doenças genéticas. Procurei explorar essa possibilidade ao analisar narrativas de trajetórias fami- liares de crianças com fibrose cística (CASTELLANOS, 2011).

Partindo de um enfoque biográfico interessado no dimensionamento do adoecimento crônico no contexto fa- miliar, realizei entrevistas com crianças com fibrose cística, seus pais, irmãos, dentre outros, no sentido de analisar como a trajetória de adoecimento dessas crianças afetou sua his- tória de vida familiar. A análise identificou a existência de rupturas biográficas na trajetória familiar atingida por essa condição genética. Os pais dessas crianças foram impelidos a reconfigurar seus projetos de vida, a reconstruir suas inter-

pretações sobre a própria história familiar (especialmente, em vista da condição genética dessa doença), assim como tomar decisões, redirecionar ações e redimensionar ativida- des cotidianas, em vista de episódios surgidos ao longo da trajetória de adoecimento daquelas crianças.

Além disso, o diagnóstico tardio, muitas vezes, cola- borou para intensificar a gravidade do quadro clínico pré- diagnóstico, provocando “situações-limite” (AICH, KAU- FMANN, WAISSMAN, 1990) importantes ao longo des- sa fase prolongada. O modo como o próprio diagnóstico é significado pelos pais mantém forte relação com os eventos e narrativas produzidos na fase pré-diagnóstica. Assim, o diagnóstico foi tomado por alguns como “salvação”, diante de uma progressão clínica que apontava claramente a pro- ximidade do horizonte da morte. Para outros, o diagnóstico foi visto como uma “bomba” que provocou a reconfiguração de todas as expectativas em torno da vida conjugal e familiar. (CASTELLANOS, 2011, 2007)

Esses estudos mostram como as relações temporais narrativamente estabelecidas entre eventos e ações se trans- formam ao longo da trajetória de adoecimento, de modo que as experiências vivenciadas ao longo dessa trajetória são reelaboradas a partir das novas situações que nela se apre- sentam. Situações essas responsáveis por gerar reconstru- ções narrativas que retomam as experiências da trajetória de adoecimento em novos termos, seja para refirmar antigos sentidos, seja para transformá-los.

Ao refletir sobre os estudos narrativos nas pesquisas qualitativas sobre o adoecimento crônico, procurei mostrar

como, gradativamente, a narrativa passou a ser tomada pelas ciências sociais como lócus privilegiado de análise da cultu- ra, da ação social e da experiência (pessoal e social). Nesse caso, a narrativa é considerada uma forma universal de cons- trução, mediação e representação do real que participa do processo de elaboração da experiência social, colocando em causa a natureza da cultura e da condição humana.

Assim, quando o indivíduo cronicamente adoecido se pergunta “por que comigo, agora?”, por exemplo, ele pro- duzirá diferentes narrativas pessoais em que são estabeleci- das determinadas relações entre corpo, self e mundo. Essas narrativas incorporam elementos dos contextos de interação social e das biografias desses sujeitos. Elas podem ser ou não legitimadas em suas redes sociais e no contexto das fontes de cuidado acionadas. Por fim, as narrativas produzidas pau- tam-se em gêneros narrativos socialmente existentes, em que se conforma um contexto específico para a atribuição de sentido à experiência de adoecimento e cuidado.

Assim, se nos pautarmos nos gêneros narrativos aris- totélicos, a resposta àquela pergunta pode ser dada em uma narrativa heroica de superação das adversidades em que a doença crônica aparece como um fenômeno de “provação” das posturas morais assumidas pelo indivíduo frente às si- tuações enfrentadas. Pode ainda ser encontrada em uma narrativa trágica de perpetuação de uma predestinação fa- miliar. Pode ser delineada em uma narrativa cômica em que o acaso seja ressaltado, assim como nossa capacidade de rir da fragilidade humana e da incapacidade de evitá-la.

Ao refletir sobre os modos de produção narrativa no contexto do adoecimento, diversos autores propuseram ti-

pologias que procuram realçar algumas de suas caracterís- ticas, ao mesmo tempo em que apontam para seu caráter pessoal e cultural. Destacamos, a seguir, duas tipologias bas- tante referidas nos estudos sobre adoecimento crônico.

Hydén propõe a existência da “doença como narra- tiva”, quando narrador, doença e narrativa combinam-se numa só pessoa (doentes/pacientes), produzindo assim nar- rativas em “primeira pessoa” (sobre a própria experiência); “narrativa sobre doença”, elaborada sobre a experiência de adoecimento de outra pessoa, apresentando conhecimentos e ideias sobre a doença e eventos relatados (ex: médicos, fa- miliares, etc.); “narrativa como doença”, quando uma doen- ça envolve distúrbios na narração. Essa tipologia enfoca os efeitos da posição do narrador sobre a elaboração narrativa.

Bury (2001) propõe uma tipologia que ressalta os principais temas, focos e estilos das narrativas de adoeci- mento. As narrativas contingentes descrevem eventos que atuam como causas próximas do adoecimento ou que ex- pressam seus efeitos mais imediatos no corpo, no self e na vida cotidiana. Elas admitem uma visão “em espectro” que se apropria de conhecimentos biomédicos, integrando-os em narrativas pessoais fundamentadas em categorias e va- lores que não estão pautados por uma cultura “profissional”, mas sim pela experiência de adoecimento. As narrativas morais expressam a dimensão mais propriamente avaliati- va das dinâmicas e posições pessoais e sociais implicadas nas alterações das relações entre corpo, self e sociedade, en- gendradas ao longo do processo de adoecimento e cuidado. As narrativas nucleares estabelecem conexões entre expe- riência de adoecimento e níveis profundos de significado

do sofrimento. Implicam análise mais formal da narrativa, a exemplo da identificação de seus gêneros (heroico, trágico, cômico, etc.) e do uso particular de linguagens e metáforas (clichês, repertório simbólico e linguístico).

Essas tipologias mostram como narrativa e expe- riência estão interligadas, tanto em contextos específicos de interação social, quanto em contextos sociais mais amplos. Assim, se por um lado não podemos desconsiderar a presen- ça da intensa “reflexividade do eu” no contexto social mais amplo da modernidade tardia (GIDDENS, 1993), por ou- tro lado, temos que levar em consideração os contextos so- ciais específicos em que essa reflexividade é operada (SIBI- LA, 2008). Certamente, o processo de adoecimento crônico produz importantes mediações nesses contextos sociais, as- sim como as práticas de cuidado, por sua vez, consistem em contextos sociais específicos de interação.