• Nenhum resultado encontrado

A EXPERIÊNCIA DA ENFERMIDADE CRÔNICA – CORPO, VIDA COTIDIANA E CONTEXTO SOCIO-

NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS DE ADOECIMENTO CRÔNICO

A EXPERIÊNCIA DA ENFERMIDADE CRÔNICA – CORPO, VIDA COTIDIANA E CONTEXTO SOCIO-

CULTURAL

A análise fenomenológica da experiência de enfer- midade propõe três aspectos como fundamentais: o corpo, enquanto fundamento da nossa inserção prática no mundo;

a compreensão, que, partindo das concepções de Dilthey, é

elaborada na fenomenologia como o modo essencial que o homem tem de existir no mundo; e, por último, a inter-

subjetividade, referindo-se a essa compreensão mútua que

preexiste nas relações entre diversos atores (ALVES, 2006). O que este último autor aponta como objeto das ciências sociais de base fenomenológica é a descrição do “que se pas- sa efetivamente do ponto de vista daqueles que vivem uma dada situação concreta e como, por meio desse processo, os indivíduos e grupos sociais concebem reflexivamente ou re- presentam seu mundo”.

Ao pensar o corpo como mediador entre o ser e a doença, este pode ser entendido como o entrecruzamento entre a natureza e a cultura e desempenha o papel funda-

mental de colocar os sujeitos em contato com o mundo (CSORDAS, 2008). Estes postulados são importantes na medida em que aprofundam sobre a questão do processo em que a vivência de sentir-se mal se constitui e ganha expres- são, entendendo as percepções corporais como integradas ao mundo cultural.

Jackson aponta como o conceito de experiência tem que reconhecer o caráter multifacetado da pessoa, o fato de que a experiência do self, ou do self em relação ao outro é con- tinuamente moldada e ajustada pela circunstância. Isto apon- ta para o caráter da experiência pré-reflexiva da experiência que coloca o desafio de compreender interações, diálogos, emoções, imagens, projetos e identidades que constituem um contexto para essas interações (RABELO et.al. 1999).

Kleinman (1988) evidencia como a enfermidade é a “experiência dos sintomas e do sofrimento”; a experiência vivida do monitoramento dos processos corporais, incluin- do a categorização e a explicação, no sentido do senso comum acessível a todas as pessoas leigas, das formas de angústia causadas pelos processos fisiopatológicos. (pag. 3–30). Por sua parte, Good (1994) acrescenta que a experiência da doença crônica, por si mesma (o objeto de conhecimento médico), é social e culturalmente variável razão pela qual, as experiências subjetivas, oferecem insights importantes para uma melhor compreensão do fenômeno.

Seguindo os pressupostos de Schutz (1979) sobre a vida cotidiana, Good aprofunda no processo de “descons- trução do mundo” vivido pelos sujeitos que enfrentam a doença crônica (no seu caso a dor crônica), desafiando tudo o que é tido como suposto na vida cotidiana e na realidade

do senso comum. O autor propõe a análise de “redes se- mânticas” (semantic network analysis), as quais contemplam os diferentes significados construídos nas experiências dos sujeitos.

Seguindo essa linha, Corin e Bibeau (apud GOOD, 1994) colocam como a abordagem da experiência e da sub- jetividade a análise de signos, significados e ações, apon- tando para o desafio da compreensão de significados e o contexto em que eles são construídos. Eles compartilham a noção de que os significados não são estruturas a priori, determinantes das práticas, sublinhando a importância dos contextos dialógicos na construção e reconstrução contínua do sentido (RABELO et.al. 1999).

Anselm Strauss é reconhecido como um dos primei- ros autores em abordar os significados e as experiências com enfermidades crônicas, especialmente ao formular o concei- to de “trajetória” (CONRAD and BURY 1997, STRAUSS and CORBIN, 1988). Para o autor, esse conceito refere-se não apenas à dimensão psicológica de uma pessoa afetada por uma doença, mas também ao trabalho de organização total realizado ao longo do seu curso, somado ao impacto implicado no envolvimento desse trabalho e sua organiza- ção.

Seguindo seus pressupostos, autores como Michael Bury (1982) tem abordado a maneira como os sintomas in- teragem com o “mundo da vida”. Baseado na noção de ‘situa- ção crítica’ de Giddens (apud BURY, 1982) o autor apontou que eventos como a guerra - podem destruir a natureza do que é “tido como suposto” do tecido social. Inspirado por

este pressuposto, este destaca as complexas e multifacetadas formas em que a experiência da doença crônica pode levar a repensar de forma fundamental a biografia de uma pessoa.

As transformações das perspectivas das pessoas afe- tadas pela doença crônica podem ocorrer em função da po- sição que esta ocupa na sua vida: e doença está em primeiro ou segundo plano do seu “mundo”. Isto coloca o desafio da compreensão entre a construção da identidade, do self e do corpo, onde autores colocam a importância de abor- dar a experiência de incorporação (embodiment) e a relação com o contexto em que as pessoas “vivem” suas experiências (CSORDAS, 2008), permitindo evidenciar outros proces- sos de enfrentamento da doença e outros significados para além de identificar o processo de ruptura biográfica.

As contribuições dos estudos que seguem a corrente interpretativa – hermenêutica, tanto na antropologia, quan- to na sociologia, são relevantes nesse estudo, não só para abrir um espaço para a visibilidade da voz daqueles que sempre estiveram às margens da ciência, como os atores so- ciais e os níveis interpretativos presentes ao interior das so- ciedades atuais e interculturalmente. Porém, alguns autores (RABELO et. al, 1999; MENÉNDEZ, 2002; PIERRET 2003; LAWTON, 2003) têm apontado os desafios dessas abordagens para não arriscar em excluir a inter-relação en- tre a subjetividade, fatores culturais e a estrutura social.

Mais do que retornar a um modelo, no qual estruturas “determinam” experiências, o desafio é articular dimensões simbólicas e materiais que permitem evidenciar como as ex- periências são influenciadas ou não pelos contextos em que

se desenvolvem. O que hoje se coloca como um desafio teó- rico-metodológico é conseguir “conciliar” os radicalismos entre correntes “racionalistas/normativas” e “interpretativas” que permitam aos pesquisadores compreender a comple- xidade dos fenômenos e as diversas dimensões que estão em jogo frente às doenças e a busca de cuidados. Assim, a experiência de viver com LMC são mais do que suma de muitos eventos particulares que ocorrem em uma carreira de enfermidade, ela consiste em uma relação recíproca entre as situações particulares e o curso da “cronicidade”.