• Nenhum resultado encontrado

CIÊNCIAS SOCIAIS

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O reencontro com a ideia de normalidade, uma ca- tegoria deveras central e que remonta à filosofia vitalista de Georges Canguilhem, ganha destaque nos artigos ana- lisados. Esse retorno se dá muito em função do reconhe- cimento da necessidade vital de crescer e se desenvolver

que impulsiona as crianças a incorporarem aquilo que as constitui desde o nascimento – no caso a doença crônica e seus sintomas – e que faz parte de sua existência, marcando cotidiano e rotinas. Ou seja, com essa análise não queremos promover uma idealização da doença crônica na infância, mas assinalar que o processo de normalização, contribui para uma autorregulação, diferente do adulto com doenças crônicas. Desse processo de autor-regulação participam e podem contribuir mais ou menos, promovendo uma inte- gração entre as áreas de normalidade e de adoecimento, os familiares e profissionais de saúde.

A necessidade de reconhecer que não somente adul- tos ou idosos desenvolvem doenças crônicas, nos reenvia às crianças e aos adolescentes para desconstruir ao menos 2 or- dens de questões: a da associação comum de doença, princi- palmente crônica, as faixas etárias mais avançadas; a da for- ça do discurso do estilo de vida, da escolha de hábitos pouco saudáveis que responsabilizam o sujeito por sua doença crô- nica. Isso porque as doenças genéticas, síndromes e doenças raras, as afecções peri e pós-natais encontram-se em outro campo de racionalidade e lógica, onde as “escolhas, respon- sabilidades por estilos e hábitos” não parecem ser atributos de força explicativa para crianças e adolescentes que vão nascer, crescer e se desenvolver com a vida mediada pela administração de sintomas, internações, desestabilizações e estabilizações de quadros clínicos. Essa clínica incentiva a necessidade de geração de interpretações e reinterpretações, símbolos, atribuição de status, construção de itinerários de tratamento que como bem nos apontam a antropologia médica anglo-saxônica podem se reunir em modelos ex-

plicativos (KLEINMAN, EISENBERG, GOOD, 1978; KLEINMAN e BENSON, 2006; KLEINMAN, 1981).

Um aspecto que destacamos e que pode ser particu- larmente digno de análise em pesquisas com crianças com doenças crônicas é o fato de que elas acumulam um reper- tório de experiências que as fazem encarar sua experiência e a comunicação dela como algo que altruisticamente pode, ao ser compartilhado, vir a ajudar outras crianças. Essa pers- pectiva se alinha à discussão sobre “cultura de pares” (COR- SARO, 2011) ancorada no referencial da sociologia da in- fância e da juventude. Ela é entendida como um conjunto estável de atividades, rotinas, objetos, valores e preocupações que as fazem estar ligadas, interpretando e compartilhando com outras crianças. E aqui destaco que os estudos da socio- logia da infância e da juventude vincularam-se muito mais a ambientes escolares, festas, parques considerados como locus esperados de sociabilidade infantil.

A possibilidade de relacionar esse campo teórico aos estudos sobre a experiência de adoecimento de crianças e jo- vens, guarda a riqueza de valorização da criança e de jovem como sujeitos de cultura e de conhecimento. Reconhecendo que viver com uma doença crônica desde o nascimento ou em períodos iniciais da vida faz com que não se guarde uma ruptura, ou um momento pré-experiência de adoecimento. Além disso, essa experiência passando a ser constitutiva gera outros circuitos de sociabilidade, amizade, temas, objetos, enfim repertórios de vida que dialogam com a vida com tra- tamento, administração de sintomas, reconhecimento deles, pois disso depende pedir ajuda e sobreviver. Significa adqui- rir outras linguagens, palavras, símbolos e, ao mesmo tempo,

transitar entre a vida comum da infância e os diálogos téc- nicos, e os amigos que como elas vivem com uma doença, e por vezes morrem.

Estar apoiado em referências da Teoria Enraizada em Dados, ou nas bases dos modelos construcionistas e inte- racionistas simbólicos, pode contribuir para, associando às leituras da sociologia da infância e da juventude, desnatu- ralizar perspectivas funcionalistas, deterministas e repro- dutivistas que no caso da área saúde podem se ocupar de estudos que se fecham no adultocentrismo. Ou seja, discutir e contribuir para que as crianças, os adolescentes e suas fa- mílias, reconheçam na doença algo que faz parte de suas vidas, e que por meio de um pedido de ajuda chega ao cam- po biomédico para tratamento, significa valorizar vínculo/ interpretação/experiência/compreensão como componentes do cuidado. Isso não equivale a estudar adesão a tratamento, e identificar “boas ou más adesões”, falar de internalização e passividade da criança e do adolescente. Atentos à neces- sidade de desnaturalizar a ideia da criança e do adolescente como seres incompletos, e de crianças e jovens com doen- ças crônicas e/ou deficiências como sujeitos menores, é que podemos nos prevenir de usar nossas pesquisas a favor de processos de assujeitamento, e avançar em prol de um co- nhecimento sintonizado com as transformações humanas e sociais porque passam as sociedades e culturas.

REFERÊNCIAS

ALANEN, L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações e perspectivas. In: Lucia Rabello de Castro (org). Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro, FAPERJ / Nau, 2001.

BURY, M. Chronic illness as biographical disruption. Sociology of Health and Illness, 4(2), 167-182.1982

CANESQUI, A.M. Olhares socioantropológicos sobre os adoe- cidos crônicos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2007.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995.  

CARDIM, M. G.; MOREIRA, M. C. N. Adolescentes como su- jeitos de pesquisa: a utilização do genograma como apoio para a história de vida. Interface (Botucatu), 2013, vol. 17 (44), 133-143. CHARMAZ, K. Loss of self: A fundamental formof suffering in the chronically ill. Sociology of Health and llness, 5(2), 168- 195. 1983.

CORREIA, R. F. Os modelos explicativos maternos sobrea fibro- se cística: a doença dos filhos pelo olhar das mães. Dissertação de Mestrado INSCM Fernandes Figueira / FIOCRUZ. 2011. 151p. CORSARO, WILLIAM A. Sociologia da infância. Porto Ale- gre, Artmed. de C. Barrocas e Luiz Octávio F. B. Leite. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

DELGADO ACC, MÜLLER F. Sociologia da infância: pesqui- sa com crianças. Educação e sociedade. 2005; 26: 351-360.

GIARELLI, E.; BERNHARDT, B. A.; MACK, R.; PYERITZ, R. E. Adolescents’ Transition to Self-Management of a Chronic Genetic Disorder. Qualitative Health Research. 2008, vol. 18 (4), 441-457.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identida- de deteriorada. Petrópolis, Vozes, 1988.

Guell, C. Painful Childhood: Children Living With Juvenile Ar- thritis. Qualitative Health Research. 2007, vol. 17 (7), 884-892. HALFON N, NEWACHECK PW. Evolving notions of child- hoodchronicillness. JAMA. 2010 feb; 303(7):665-666

HELMAN C. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Mé- dicas, 2003.

HORSTMAN, M.; ALDISS, S.; RICHARDSON, A.; GIB- SON, F. Methodological Issues When Using the Draw and Write Technique With Children Aged 6 to 12 Years. Qualitative Health Research. 2008, vol. 18 (7), 1001-1011.

JESSUP, M.; PARKINSON, C. “All at Sea”: The Experience of Living With Cystic Fibrosis.Qualitative Health Research, 20(3) 352–364, 2009.

KLEINMAN A, BENSON P. Culture, Moral Experience and Medicine. The Mount Sinai Journal of Medicine 2006; 73(6): 834-39.

KLEINMAN A, EISENBERG L, GOOD B. Culture, Illness and Care: Clinical Lessons From Anthropologic and Cross-Cul- tural Research. Annals of Internal Medicine.88:251-58.1978. KLEINMAN A. Patients and Healers in the Context of the Culture: An Exploration of the Borderland between Antropolo- gy, Medicine, and Psychiatry. California: University of California Press; 1981.

LEJARRAGA, H. La atención pediátrica de pacientes crônicos, una prática necesaria. Arch. argent pediatr, v.104, n.1, p.62-63, 2006.

LISBOA, C.; HABIGZANG F. Ética na pesquisacom temas delicados: estudos em psicologia com crianças e adolescentes e violência doméstica. In: I. C. Z. Guerriero; Schmidt, M. L. S.; F. Zicker. (orgs). In: Ética nas pesquisas em ciências humanas e so- ciais na saúde. São Paulo, Hucitec, 2011.

LYRA, GV, NATIONS, MK, CATRIB, AMF. Cronicidade e Cuidados de Saúde: o que a Antropologia da Saúde tem a nos ensinar. Texto Contexto Enfermagem, 13 (1), Jan/Mar, Pp. 147- 155. 2004.

MAYALL B. Towards a Sociology of Child Health. Sociology of Health & Illness. 1998; 20(3): 269-288. 

MELLO, D. B. DE; MOREIRA, M. C. N. “A hospitalização e o adoecimento pela perspectiva de crianças e jovens portadores de fibrose cística e osteogênese imperfeita”.  Ciênc. saúde coletiva, 2010, vol. 15 (2), 453-461.

MILLS, W. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

MOLLO-BOUVIER S. Transformação dos modos de sociali- zaçãodas crianças: uma abordagem sociológica. Educação & So- ciedade. 2005; 26:351-360.

MONTANDON C. Sociologiada infância: balanço dos traba- lhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa Fundação Carlos Chagas. 2001; 112:33-60.

MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. de. “A construção da subjetividade infantil a partir da vivência com o adoecimento: a questão do estigma”. Arq. Bras. Psicol., Vol. 55 (1), 31-41, 2003.

MOREIRA, M. C. N.; MACEDO, A. D. DE. O protagonismo da criança no cenário hospitalar: um ensaio sobre estratégias de sociabilidade. Ciência & Saúde Coletiva; 14(2), 645-652, 2009. MOREIRA, M. C. N; SOUZA, W. DA S. A Microssociologia de Erving Goffman e a Análise Relacional: Um Diálogo Metodoló- gico pela Perspectiva das Redes Sociais na Área de Saúde. Teoria & Sociedade, v. 9 (9), 38–61, 2002.

MOREIRA, M. E. L.; GOLDANI, M. Z. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 15,  n. 2, mar.  2010.

OESEBURG, B, JANSEN D. E. M. C, DIJKSTRA G.J. GROOTHOFF J.W. REIJNEVELD S. A. Prevalence of chronic diseases in adolescents with intellectual disability. Research in De- velopmental Disabilities. 31: 698–704, 2010.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Cuidados inova- dores paracondições crônicas: componentes estruturais de ação. Relatório Mundial. Genebra: Brasil, 2003.

PEEK, D. The adult’s perspective. In M. Bluebond- Langer (Ed.), Psychosocial aspects of cystic fibrosis (pp.29-36). London: Arnold. 2001.

PLAISANCE E. Para uma sociologia da pequena infância. Ed- ucação e sociedade. 2004; 25(86):221-241. 

PROTUDJER, J. L. P.; KOZYRSKYJ, ANITA L.; BECKER, A. B.; MARCHESSAULT, G. Normalization Strategies of Children With Asthma. Qualitative Health Research; 19: 94, 2009. REGO, S.; PALÁCIOS, M. Ética em pesquisa envolvendo crianças. In: S. Taquette & C. P. Caldas (orgs.) Ética em pesquisa com populações vulneráveis. Rio de Janeiro, EDUERJ/FAPERJ, 2012.

SIROTA R. Emergência de uma sociologia da infância: evolu- ção do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa Fundação Carlos Chagas. 112:7-31, 2001.

STEWART, J. L. “Getting Used to It”: Children Finding the Or- dinary and Routine in the Uncertain Context of Cancer. Qualita- tive Health Research, Vol. 13 No. 3, March. 394-407, 2003. TORPY, J.M.; CAMPBELL A, GLASS RM. Chronic disease of children. JAMA. feb; 303(7): 682-623, 2010.

TURKEL S, PAO M. Late Consequences of Pediatric Chronic Illness. Psychiatr Clin North Am. 2007 December; 30(4): 819–835 WILLIAMS, B.; CORLETT, J.; DOWELL, J. S.; COYLE, J.; MUKHOPADHYAY, S. ‘’I’ve Never Not Had it So I Don’t Re- ally Know What it’s Like Not to’’: Nondifference and Biograph- ical Disruption Among Children and Young People With Cystic Fibrosis. Qualitative Health Research; vol. 19 (10), 1443–1455, 2009.

CRONICIDADE E CUIDADOS DE SAÚDE: UMA