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PATOLOGIA VERSUS ENFERMIDADE – MODELOS EXPLICATIVOS EM CONFRONTO

CIÊNCIAS SOCIAIS

PATOLOGIA VERSUS ENFERMIDADE – MODELOS EXPLICATIVOS EM CONFRONTO

Tendo por referência o quadro operatório proposto pelos trabalhos de Kleiman (1980; 1988), no âmbito de uma

teoria interpretativa da cultura (GEERTZ, 1989), ele repre-

senta um dos modos de articulação da expressão teórica objetivada da problemática desta proposta, procurando per- mitir a comparação entre as perspectivas profissional e leiga concernentes à experiência vivida da doença e ao cuidado profissional em saúde enquanto saber experiencial materia- lizado em uma tecnologia leve. Essa comparação, efetuada sob vigilância crítica do método fenomenológico e do qua- dro de referência compreensivo, e partindo de uma proble- mática formulada no âmbito de uma teoria interpretativa da cultura aplicada ao fenômeno do adoecimento humano, é que chamaremos aqui de Etnoavaliaçao em Saúde.

Como tal comparação pode ser efetuada desde a di- mensão ontológica da doença, a partir do confronto entre patologia (disease – a doença na perspectiva profissional) e enfermidade (illness – a doença na perspectiva da pessoa en- ferma), nosso modelo será estruturado a partir do conceito de Modelos Explicativos (MEs), tal como propostos por Kleinman (1980), o que não exclui a utilização de outros modelos culturais de interpretação e ação em saúde-doença propostos no âmbito da Antropologia da Saúde. Modelos Explicativos são as noções sobre um episódio de uma doen- ça qualquer (sickness) e o seu tratamento empregadas por to- dos aqueles engajados no processo de cuidado clínico, quer sejam profissionais de saúde, quer sejam familiares, ou, ain- da, os integrantes das redes sociais de apoio. Segundo ele,es- truturalmente, podemos distinguir cinco questões maiores que os MEs procuram explicar para episódios de doença. Elas são: etiologia; tempo e modo de início dos sintomas; fisiopatologia; curso da doença (incluindo o grau de severi- dade e o tipo de papel de doente a desempenhar – agudo, crônico, incapacitante, etc.); e tratamento (KLEINMAN, 1980, tradução nossa).

A enfermidade (illness), nessa concepção, é uma ex- periência a partir da qual se constitui uma rede complexa de significados culturalmente determinados, relacionados às causas, aos sintomas e aos processos corporais e psíquicos, ao papel do enfermo no seu meio sociocultural, e às opções terapêuticas disponíveis a uma escolha ad hoc. Essa signifi- cação dos fenômenos socioculturais da experiência da doen- ça dá-se através de um processo eminentemente semântico, consubstanciada numa rede de representações simbólicas

que se difunde na rede social de apoio centrada na pessoa enferma. Uma representação esquemática dos Modelos Ex- plicativos e da rede semântica da enfermidade.

A utilização dos Modelos Explicativos é apropriada à definição das pautas culturais e às percepções de sentido co- mum, não só dos pacientes, como também dos profissionais de saúde e dos cuidadores leigos, especialmente quando se pretende comparar a experiência da doença em portadores de enfermidades crônicas com a tecnologia do processo de traba- lho em saúde dos profissionais que lhes dispensam cuidados.

Nesse sentido, Kleinman (1980) afirma que, no con- texto das relações inerentes aos cuidados de saúde que têm lugar no Ocidente, bem como à moderna medicina profis- sional, podemos conceber a relação médico-paciente como uma negociação entre o Modelo Explicativo profissional e o Modelo Explicativo do paciente, ou, quando presente na relação, o da família. Ele completa dizendo que os resulta- dos dessa negociação, quando realizada, dependem da tran- sação entre duas linguagens, constituindo-se num processo de eliciação (obtenção do Modelo Explicativo do paciente), seguido de um processo de análise, transferência, reestrutu- ração (em uma nova linguagem ou Modelo Explicativo) e

feedback. Como sugerido, a negociação entre Modelos Ex-

plicativos é infrequente na prática clínica, o que pode, em determinadas circunstâncias, como no caso do cuidado às enfermidades crônicas, gerar conflitos entre profissionais de saúde, pacientes e familiares (KLEINMAN, 1988).

Assim, a investigação da cronicidade, a partir da fe- nomenologia sociológica e da sociologia compreensiva, procura efetuar o diálogo entre os Modelos Explicativos

profissional e leigo em busca de um cuidado mais empá- tico, através da reconfiguração das ações de saúde em ações sociais que legitimem o saber da experiência das pessoas (seus significados globais), que apóiem as estratégias de normalização desenvolvidas pelas pessoas, e que eliciem os significados situacionais associados a um episódio de enfer- midade para permitir que as pessoas enfermas desenvolvam estratégias de normalização.

Todo esse processo é possível a partir do desenvolvi- mento de tecnologias leves, de base relacional e hermenêu- tica, que promovam a escuta empática, a tradução, a inter- pretação dos Modelos Explicativos profissional e leigo, e a negociação entre ambos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizamos este ensaio salientando as potencialida- des de uma abordagem fenomenológico-cultural na investi- gação da cronicidade e no desenvolvimento de uma reflexão epistemologicamente orientada sobre as ações de saúde, bem como de novos métodos e técnicas de abordagem à relação saúde-doença.

O que se pretende, com isso, é permitir que investiga- dores e profissionais de saúde sejam sujeitos compósitos: (1) sujeitos epistêmicos, no sentido em que eles devem refletir so- bre a natureza do saber enquanto tecnologia que estrutura os Modelos Explicativos profissionais organizadora das ações de saúde; (2) um sujeito hermenêutico, no sentido de ser capaz de interpretar o significado das próprias ações de saúde, bem como de eliciar e legitimar a experiência de enfermidade das

pessoas cronicamente enfermas; e (3) sujeito pedagógico, no sentido de educar-se reflexivamente, a partir do trabalho concreto realizado. Essas são tarefas necessárias a um cui- dado humanizado aos portadores de enfermidades crônicas.

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PARTE 2

NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS DE