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eidos? (E não teria sido essa, quem sabe, a razão da “cegueira” atribuída aos

DISCURSO DO MESTRE

2.4. A ficção simbólica e o espectro fantasmático

O referente é sempre real, porque é impossível de designar. Mediante o que só resta construí-lo. E nós o construímos, quando podemos.

– Jacques Lacan – Seminário 18

Para uma leitura e observação desses dois registros e o conseqüente prosseguimento de nossa abordagem da ideologia, achamos relevante trazer à cena um outro texto do filósofo esloveno, cuja importância para o trabalho que ora desenvolvemos se deixa ver em seu próprio título: Entre a ficção simbólica e o

194 idem, ibidem.

195 “Na relação do sujeito com o símbolo, há a possibilidade de uma verwerfung primitiva, ou seja, que alguma

coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no Real”. LACAN, Jacques (1955-1956 [1988]) O

seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (p. 100).

196 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em: ______ (1996). Um mapa da ideologia. São Paulo:

espectro fantasmático: para uma teoria lacaniana da ideologia. Tais elaborações

estão presentes em sua obra “Interrogating the Real”, de 2005197, e com elas Žižek dá claro prosseguimento à consideração do Real e da fantasia quando da abordagem da ideologia e da realidade. No referido texto, o autor vem falar justamente dessa crucial dualidade entre a ficção simbólica e o espectro

fantasmático, trazendo uma afirmação que não consta em seu O espectro da ideologia. Propõe, então, assertivamente que “essa diferença entre a ficção simbólica e a fantasia é de importância crucial para a teoria psicanalítica da ideologia”198. A respeito dessas duas noções, talvez a ilustração fornecida por Žižek, considerando a Alemanha nazista, auxilie inicialmente em sua consideração, e na pertinência e validade dessas noções para a teoria da ideologia.

Segundo a leitura do filósofo, quanto mais os judeus eram assassinados pelos nazistas (estes motivados, pois, por uma ficção simbólica que postulava a existência dos judeus como impedimento para a constituição de um todo social – a “Sociedade” da qual falamos em nosso texto algumas linhas atrás), mais terríveis se tornavam no espectro fantasmático as dimensões adquiridas pelos que sobreviviam. Os sobreviventes passavam a ser, inclusive, ainda mais perseguidos por isso. Extrapolando esse exemplo ainda mais, Žižek chega a citar também o caso de um nazista que, por certo tempo, teve um vizinho judeu. Via-o chegar em casa toda noite, com seus filhos, esposa, em uma vida dita “normal” – tal como a sua enquanto nazista, com a mesmíssima rotina. Questionava-se e ponderava então, ainda que por raros momentos, sobre aquilo que lhes diziam a respeito dos judeus (que eram “traiçoeiros, maquinadores, perigosos...”). Entretanto, em uma inversão tipicamente ideológica, isso inclusive passava a ser tomado por ele, imediatamente, como um ponto negativo. E Žižek nos leva a imaginar o referido nazista então, por exemplo, afirmando: “eu disse que eram perigosos: fazem tudo o que fazem e ainda levam essa vida familiar como se fossem normais e bonzinhos”.

197 Nossa tradução de: ŽIŽEK, Slavoj (2005). Between Symbolic Fiction and fantasmatic spectre: toward a

lacanian theory of ideology. Em: ________. Interrogating the Real. New York. Continuum.

198 idem, p. 241 [nossa tradução de “This difference between (symbolic) fiction and fantasy is of crucial

A elaboração de Žižek a esse respeito é fortemente investida pela consideração da fantasia, com o intuito de justamente tomá-la como índice para a percepção do construto ideológico. Tal é a pertinência da fantasia que o filósofo chega a desdobrá-la, justamente, em duas faces concêntricas, nominando-as como “fantasia-1” e “fantasia-2”: respectivamente a ficção simbólica e o espectro

fantasmático. Propõe que seriam como dois lados de uma mesma moeda, e

explica sua relação do seguinte modo:

“à medida que a sociedade vivencie a realidade de modo regulado, estruturado pela fantasia-1, deve negar sua impossibilidade inerente, o antagonismo em seu âmago; e a fantasia-2 (a figura do judeu conceitual, por exemplo), presentifica essa negação. Em síntese, a eficácia da fantasia-2 é a condição para a fantasia-1 manter seu domínio”199.

Para melhor compreendermos, lembremos que, para Žižek, o cerne pré- ideológico da ideologia consistiria, justamente, no espectro que preenche o furo do Real, sendo aquilo que vivenciamos como a realidade também dependente do que dela fora foracluído:

“... a ‘realidade’, tal como a verdade, nunca é, por definição, ‘toda’”. (...) Portanto, o que o espectro oculta não é a realidade, mas seu ‘recalcamento primário, o ‘X’ irrepresentável em cujo recalcamento fundamenta-se a própria realidade”200.

No caso dos judeus citados algumas linhas acima, notamos que ocorrera o inverso daquilo que apontamos como a utilização de um argumento supostamente contrário como um argumento a favor. Nesse caso, um argumento tipicamente utilizado a favor (uma vida dita tranqüila e “comum”), pode também passar a ser usado de forma contrária (como marca de dissimulação e conspiração) em nome de uma ideologia.

199 idem, p. 244 [nossa tradução de: “Fantasy-1 and fantasy-2, symbolic fiction and spectral apparition, are

thus like the front and reverse of the same coin: insofar as a community experiences its reality as regulated, structured, by fantasy-1, it has to disavow its inherent impossibility, the antagonism in its very heart – and fantasy-2 (the figure of the ‘conceptual jew’, for example) gives body to this disavowal. In short, the effectiveness of fantasy-2 is the condition for fantasy-1 to maintain its hold”].

200 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em: ______ (1996). Um mapa da ideologia. São Paulo:

Em The sublime object of ideology, Zizek apresenta uma leitura da ideologia que igualmente considera a questão do preconceito judeu, com vistas a analisar o comportamento ideológico e a relação para com aquilo que de Real está investida a própria ideologia. Na obra, Žižek irá resgatar o grafo lacaniano do desejo, e dele extrairá algumas considerações no trato com o construto ideológico. E a leitura presente na referida obra vem ao encontro, justamente, daquilo que fora proposto pelo desdobramento contido na consideração da ficção simbólica e do espectro

fantasmático. Tomemos o grafo como forma de proporcionar melhor observação

daquilo que resgataremos da leitura do filósofo:

No caso dos judeus (e podemos pensar, igualmente, com os paquistaneses ou os nordestinos, conforme os mencionamos ao ilustrarmos outras situações), Žižek propõe que o anti-semitismo (ou, tomemos aqui, o preconceito ou a repulsa ao outro) ilustraria o porquê de Lacan ter colocado a fórmula (o matema) da fantasia (

$¸a

) ao final da curva que resgata a conhecida questão ‘

Che vuoi?

’.

Segundo aventa o esloveno, a fantasia seria então uma espécie de resposta a esse ‘

Che vuoi?

’, uma tentativa de preencher, de alguma forma, a lacuna e o

vazio suscitados por esse questionamento. No caso do anti-semitismo, a resposta ao “O que querem os judeus afinal?” levaria à fantasia da conspiração. Ou, resgatando as “fantasias 1 e 2”: a ficção simbólica da construção da Sociedade (pela eliminação do objeto a mais [a mais]) acarretaria, pois, no espectro fantasmático do misterioso “poder” dos judeus como “mexendo as cordinhas” por detrás do cenário.

O ponto crucial a ser enfatizado no nível teórico é que a fantasia funciona como uma construção, como um cenário imaginário que preenche o vazio, a abertura presente no desejo do Outro: ao nos oferecer a resposta definitiva para a questão ‘O que quer o Outro?’, permite-nos escapar do insuportável impasse a partir do qual o Outro quer algo de nós, mas somos incapazes, ao mesmo tempo, de traduzir esse desejo do Outro em uma interpelação positiva, para um mandato com o qual se identificar”201.

A respeito dessa incapacidade frente ao mandato, lembremos, uma vez mais, de Josef K frente ao tribunal. Tais pontos são caros para o exercício que estamos propondo. E é no seio de tais proposições que enxergamos uma ilustração simples do que então nomeamos como a “válvula” de abertura e fechamento, de completude da falta e de eliminação de um certo excesso, característicos do que apontamos como sendo a força do movimento ideológico. (E a qual queremos ler e observar também a partir da questão da impossibilidade inerente a cada discurso, como forma de relacionar, pois, discurso e ideologia).

201 ŽIŽEK, Slavoj (1989 [2008]). The sublime object of ideology. New York: Verso. (p. 128) [nossa tradução

de “The crucial point that must be made here on a theortical level is that fantasy functions as a construction, as an imaginary scenario filling out the void, the opening of the desire of the Other: by giving us a definite answer to the question ‘What does the Other want?’, it enables us to evade the unbearable deadlock in which the Other wants something from us, but we are at the same time incapable of translating this desire of the Other into a positive interpellation, into a mandate with which to identify”].

Ainda em The sublime object of ideology, Žižek traz algo a respeito do papel da fantasia enquanto construção, e de sua mediação e regulação entre abertura e fechamento frente ao Real. Tratar-se-ia, portanto, daquilo que permitiria uma aproximação, mas, ao mesmo tempo, de “uma tela que nos protegeria de chegar

perto demais da Coisa [...], mantendo-nos a uma distância”202. E é interessante

percebermos que essa evitação e sustentação acabam por manter, justamente, uma espécie de “caráter regulatório” da fantasia, o que relacionamos também como o papel do construto ideológico constantemente a nós oferecido frente ao vazio, à lacuna.

E aí vislumbramos a tônica dessas considerações para o fio de nosso trabalho, momento no qual podemos compreender o por quê da consideração do registro do Real e também da realidade, e também a diferença que enxergamos em nossa teorização sobre a ideologia frente a outras abordagens:

O suporte final da critica da ideologia – o ponto de referência extra- ideológico que nos autoriza a denunciar o conteúdo de nossa experiência imediata como ‘ideológico’ – não é a ‘realidade’, mas o Real recalcado do antagonismo”203.

É fundamental percebermos que ao deslocar a ênfase da leitura da ideologia para a pertinência e o “furo” trazidos pelo Real lacaniano, Žižek acaba igualmente por solapar qualquer tentativa de não consideração da ideologia ou de alegação de seu fim. E isso, dada justamente sua constituição e o modo como se articulam realidade e fantasia frente ao impossível da simbolização (e da interpelação), cujo elemento refratário – objeto a – e sua indissociável relação para com o sujeito barrado demarcam um ponto fundamental de leitura.

Uma vez mais, o grafo do desejo é resgatado por Žižek e aqui nos faz questão. Para o autor, a metade superior do grafo mostra que a não coincidência ou fechamento do circuito da identificação simbólica e/ou imaginária (representada pelas duas linhas paralelas ao topo do grafo) aponta, justamente, para o fato de que há sempre um resto, um produto. E é esse resto, segundo Žižek, que abre

202 idem, p. 134 [nossa tradução de “… but at the same time a screen shielding us from getting too close to the

[...] Thing – keeping us at a distance from it”].

203 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em: ______ (1996). Um mapa da ideologia. São Paulo:

espaço, portanto, para o desejo, e torna o Outro (a ordem simbólica) inconsistente, convocando a fantasia como forma de ocultar essa inconsistência (essa lacuna no Outro), na busca do gozo. Para o filósofo, a interação entre identificação imaginária e simbólica sob o domínio da identificação simbólica constituiria, pois, o mecanismo pelo qual o sujeito seria integrado em um campo sócio-simbólico, assumindo, então, determinados “mandatos”. Recorrendo a uma citação de Jacques Allain-Miller, o esloveno então relembra que,

Lacan soube como extrair do texto de Freud a diferença entre o eu-ideal, marcado por ele como ‘i’ [no grafo] e o ideal-do-eu, ‘I’. Ao nível do I pode-

se, sem empecilhos, introduzir o social. O I do ideal pode ser, em uma forma legitima, construído como a função social e ideológica”204.

Todavia, é aí que Žižek irá alojar uma diferença crucial, e que tem no grafo do desejo suporte fundamental para o trato com a ideologia. Para o filósofo, haveria um ponto fraco nos ensaios até então ditos ‘[pós] estruturalistas’ da teoria da ideologia descendente da teoria althusseriana da interpelação. Esse ponto diria respeito, justamente, ao fato de tais textos terem se fixado apenas na tentativa de se compreender a eficiência da ideologia exclusivamente pelos mecanismos de identificação simbólica e imaginária (a parte inferior do grafo do desejo). E desconsiderariam, justamente, aquilo que falha, e que estaria, pois, para além da própria interpelação. “Só há causa daquilo que falha”!