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eidos? (E não teria sido essa, quem sabe, a razão da “cegueira” atribuída aos

1.2. Eu quero uma pra [vi]-ver?

Ao longo da história, a noção de ideologia tem permanecido viva e operante nas teorizações de diferentes autores e também, como dito, no senso comum. Isso acabou por expandi-la e alçá-la muito além do propósito “científico” original de De Tracy, transformando-a de uma almejada área do estudo das idéias em um complexo conceito e um significante alvo de críticas e de adesões fortuitas, mas

também de certa repulsa, e em contextos diversos. É interessante notar também a transformação ocorrida no próprio significado de “ideologia”. Com o passar dos anos e com seu uso fortemente atrelado às esferas política, científica e social, deixou de apontar para um estudo ou observação das idéias para referir-se, via de regra, às próprias crenças e idéias (ou ao conjunto delas) – vide, por exemplo, os usos cotidianos citados há pouco (“isso é uma ideologia de vida”, “é o fim de uma ideologia”, “discordo de sua ideologia”...).

Até hoje, ainda circulam ao redor da ideologia as mais diferentes proposições, inclusive aquelas que, curiosamente, propõem e advogam por seu perecimento e fim. Essas mesmas asseveram que vivemos hoje, (“finalmente!”), em uma “sociedade pós-ideológica” – ainda que aqueles que veementemente o afirmam parecem não querer perceber que estão, de certo modo, igualmente sujeitos à força ideológica. A esse respeito, são conhecidos, por exemplo, os trabalhos como o de Daniel Bell, nos idos anos 50 – The end of ideology: on the

exhaustion of the political ideas in the fifties – ou de Francis Fukuyama – The end of history and the last man – nos anos 90. (Coincidência ou não, ambos foram

lançados nos EUA a reboque de eventos como a Guerra Fria e, mais recentemente, a queda do Muro de Berlim). No campo da política e até mesmo no da educação, atualmente, é comum a alegação de que é necessário “deixar de lado a ideologia e partir-se para a ação”, tentativa essa, notemos, que tampouco foge da busca por certa totalização, ainda que pelo viés da exclusão ou de um “não querer saber” 18 . Mas são freqüentes nesse contexto também, paradoxalmente, as tentativas de se atribuir à ideologia – preferencialmente a oposta a que se está defendendo – a responsabilização por eventuais tragédias ou impossibilidades, sendo convenientemente “ressuscitada” e tomada então como justificativa e argumento para acusação.

Retomando então a alegoria da Caverna uma vez mais, questionamos: não seria essa mesma tentativa – a de se arriscar decretar o fim da ideologia e o nascimento de uma era pós-ideológica, mirando diretamente a dita “realidade” – semelhante àquela visada pelos que tentaram enxergar diretamente os objetos

18 Poderíamos acrescentar ainda a religião como âmbito no qual, a todo instante, se evidencia a tentativa de

sem o “calor do fogo”? Para muitos desses trabalhos e afirmações determinantes, parece ser mais importante (ou relevante) discutir, conforme postulam, a “própria realidade”, tal como ela é (ou se apresenta); entretanto, é justamente aí que pode estar uma considerável abertura para uma problematização oportuna. E isso no que diz respeito tanto ao fato de que o próprio litoral entre realidade e ideologia não parece facilmente demarcável, como ao fato de que ideologia não é sinônimo de “mentira” ou “falsa consciência”.

A problematização aqui em questão, portanto, remete à possibilidade de se inserir uma outra lente para orientar a leitura dessa relação ideologia-realidade. Referimo-nos aqui ao registro do Real, o qual pode, ancorado na teoria psicanalítica, promover um certo deslocamento e instigar reflexões e predicados de outra ordem. Longe, portanto, de tentar apresentar uma definição ou um fechamento do campo ideológico e de sua conceituação, pautamo-nos pela observação de como o trato com a ideologia impõe, igualmente, que ela própria – e/ou sua relação para com ela – seja considerada no exercício de teorização. Todavia, não se trata de afirmar, para isso, que tudo seja ideológico – tal qual o axioma que afirma que “todo discurso é ideológico” – ou, em outra via, propor que seja possível estar completamente isento dos efeitos ideológicos – afirmação essa muito próxima da alegação do fim da ideologia. Alegar que tudo é ideológico, sem fazer disso questão, igualmente contemplaria uma indesejada totalização, comparável à precipitada e inconsistente afirmação de que devamos abandonar a ideologia pelo fato de não podermos delimitar minimamente seus litorais com a realidade. Trata-se, portanto, de tentar praticar o exercício de crítica da ideologia considerando-se, por um lado, que generalizar seu campo de atuação a todas as esferas da vida não responderia por seu alcance e tampouco ofereceria a possibilidade de explorá-la. Por outro lado, não podemos tomá-la como um conceito esvaziado ou desgastado, ou aceitando que estejamos vivendo em uma era pós-ideológica. De modo a propor portanto um mínimo estancamento nessa

polarização – a qual supomos ser constitutiva imaginariamente do próprio gesto de

consideração da ideologia – acreditamos que se faça necessário tomá-la justamente para que o próprio retorno a ela permaneça em movimento – e isso,

logicamente, não é sem exigências e conseqüências19. Em outras palavras, inserir e considerar o registro do Real impõe uma leitura que necessariamente deverá considerar uma polarização elementar primeira, posto que a intenção a que nos dispomos é antes uma tentativa de observar as vicissitudes presentes na relação entre ideologia e discurso do que a esperança de se poder negar ou afirmar determinantemente que todo discurso seja, em si mesmo, ideológico. Elaborada ao longo da história e, como dito, não sem contradições, reformulações e conflitos, a noção de ideologia não contempla e não permite uma definição exata, e alegamos (e reforçamos) que esse impossível que se impõe ao defini-la deva ser igualmente tomado como parte de sua condição de existência e motor para a teorização.