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Um “ter sido” ideológico e um “tecido” ideológico

eidos? (E não teria sido essa, quem sabe, a razão da “cegueira” atribuída aos

1.3. Um “ter sido” ideológico e um “tecido” ideológico

Poder-se-ia dizer que é essa falta de um vínculo entre a ideologia e o inconsciente que hoje ‘atormenta’ a investigação psicanalítica, sob formas diversas e amiúde contraditórias. Não há como antecipar aqui o que resultará disso. Basta dizer que a reinscrição idealista da obra de Lacan terá que ser submetida a uma prestação de contas, e que isso será tarefa, acima de tudo, aos que hoje trabalham dentro da psicanálise.

– Elisabeth Roudinesco, (1973)20 Para que seja possível prosseguir nessa direção, cremos ser imperativo tomar a ideologia tendo em vista certos trabalhos que a ela já foram dedicados por determinados teóricos, observando, entretanto, não apenas aquilo que fora dito,

19 O trabalho de Eagleton igualmente aponta para a existência e os efeitos de uma polarização, a qual se

mostra recorrente e até mesmo contraditória, e também no próprio cerne da afirmação de que vivemos em uma era pós-ideológica: “Uma característica interessante dessa ideologia do ‘fim da ideologia’ é sua tendência a considerar a ideologia de duas maneiras bastante contraditórias, ou seja, como se ela fosse ao mesmo tempo cegamente irracional e excessivamente racionalista. Por um lado, as ideologias são apaixonadas, retóricas, impelidas por alguma obscura fé pseudo-religiosa que o sóbrio mundo tecnocrático do capitalismo moderno ‘felizmente superou’; por outro, são áridos sistemas conceituais que buscam reconstruir a sociedade de cima para baixo, de acordo com algum projeto inexorável”. EAGLETON, Terry (1997). Ideologia. São Paulo: Boitempo. (p. 18)

20 Em Un discours, un réel – Théorie de l’inconscient et politique de la psychanalyse (Tours, 1973), citada em

mas dedicando certa atenção às próprias lentes então empregadas. Devemos levar em conta também a impossibilidade de criação ou constituição de um “observatório neutro” que permita falar da ideologia a não ser sob [sobre] seu espectro, seu índice.

Terry Eagleton, por sua vez, opta por tratá-la como um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais, e sua opção parece apropriada a princípio, tendo em vista a complexidade do objeto em questão e o impossível que a ele se impõe. Acerca de sua escolha, afirma que

a palavra ideologia é, por assim dizer, um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes históricas, e mais importante, provavelmente, do que forçar essas linhagens a reunir-se em alguma Grande Teoria Global, é determinar o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado”21.

Entretanto, ainda que não discordemos de Eagleton em sua abordagem neste ponto, queremos, a partir de então, complementá-la, sob outro prisma. Portanto, além de focarmos em um histórico cronológico-factual da ideologia – observando, para isso, as características “valiosas” ou “descartáveis” nas diferentes e mais variadas teorizações a seu respeito – julgamos ser possível propor uma leitura focada e pautada por eixos que permitam abrir caminho para a tomada do ideológico no próprio gesto de teorização, em ato. Trata-se de se tentar estabelecer critérios para a aproximação a determinados textos a respeito da ideologia e de seu movimento, critérios esses que, em si, experimentem considerar e reinserir constantemente aquilo mesmo para o que apontam – implicando, pois, que as teses enunciadas arrisquem incluir a própria enunciação.

Com vistas a delimitar nosso campo de leitura e prosseguir nessa direção, tomaremos então alguns ensaios de Louis Althusser e de Michel Pêcheux como objetos para uma leitura de suas respectivas aproximações à ideologia (e, conseqüentemente, de nossa própria ao fazê-lo). E tendo como critérios (ou eixos) na leitura desses autores, a princípio, a observação da [des]articulação proposta e a [des]consideração de uma possível diferenciação entre uma visão essencialista da ideologia em oposição a uma visada dita dialética. É certo que tais eixos

desembocarão em outros, delimitáveis apenas no escopo próprio do momento de teorização. Para isso, partimos da leitura e análise de alguns textos desses autores dedicados ao trato com a ideologia. Além disso, queremos nos debruçar sobre a observação dos exercícios de autocrítica por eles levados adiante, em 1972 e 1978 respectivamente, os quais atualizam, ratificam mas, por vezes,

retificam suas considerações anteriormente propostas (ao longo da década de 60).

É certo que isso levará a falar de Karl Marx (como há pouco o mencionamos, ainda que sem qualquer aprofundamento). Mas, dada a extensão e alcance de sua obra e os objetivos a que aqui nos propomos, a ele nos referiremos oportunamente pelas lentes e comentários dos autores citados; além, obviamente, pela via das proposições de Jacques Lacan e Slavoj Žižek, nossos referenciais centrais.

Há ainda um cuidado teórico fundamental, e que é trazido pelo exercício de observação da ideologia levado adiante por Žižek no texto de abertura de sua coletânea Um mapa da ideologia. Para o autor esloveno, são muitas e distintas as possibilidades de abordagem da ideologia, sendo a histórica a mais comum (e que aqui podemos chamar de “factual-descritiva”, por avaliar a adequação ou a veracidade das diferentes noções de ideologia ao longo do tempo). Mas há também aquela que nomeia de “histórico-dialética”, considerando, conforme suas palavras, “a maneira como um pensamento se inscreve em seu objeto; ou, como

diria Derrida, a maneira como a própria moldura é parte do conteúdo emoldurado”22. Entretanto, para Žižek – e aí se revela que cuidado teórico seria

esse por ele apontado – no caso de optarmos pela segunda abordagem, há que se estar atendo para o risco de sermos atraídos para aquilo que considera “a

armadilha de um relativismo historicista”, o qual suspenderia o valor cognitivo

inerente ao termo ideologia e o transformaria, segundo ele, “numa mera expressão

das condições sociais”. E é por essa razão, portanto, que aqui optamos por

trabalhar com Pêcheux e Althusser a partir de determinados eixos. E o fazemos como modo de balizar nossa observação sobre suas respectivas [re]leituras, sem que isso recaia freqüentemente na afirmação da ideologia como “expressão das

22 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em ŽIŽEK, Slavoj (2006). Um mapa da ideologia. São Paulo:

condições sociais”; ou seja, nem naturalizando-a nem aventando que devamos abrir mão da própria noção de ideologia.

A escolha por esses autores – longe de encerrar um campo bibliográfico ou apontá-los como os únicos envolvidos na possibilidade de se tratar da ideologia – respeita certa filiação teórica vinculada à lingüística e à psicanálise de orientação lacaniana, e visa balizar e orientar a estruturação da tarefa que propomos: apresentar uma contribuição à teoria da ideologia, de base fortemente psicanalítica, ancorada no propósito de incluir a teoria, mas, também, de nela incluir-se.

Há pouco mencionamos a visão dita “essencialista” da ideologia, em oposição a uma visão então “dialética”, e, já caminhando rumo à leitura de Althusser e Pêcheux, talvez seja interessante começarmos propondo brevemente um modo de lidarmos com essas duas classificações.