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DO DISCURSO: DE MIL PALAVRAS A ‘SEM’ PALAVRAS

3.2. Gozo, mais-valia, [não-]mais-gozar

Somos seres nascidos do mais-de- gozar, resultado do emprego da linguagem. Quando digo emprego da linguagem não quero dizer que a empreguemos. Nós é que somos seus empregados. A linguagem nos emprega, e é por aí que aquilo goza. Por isso, a única chance de existência de Deus é que Ele – com E maiúsculo, goze, que Ele seja o gozo.

– Jacques Lacan, Seminário 17.

Pode-se bancar o mais-de-gozar, e isso ainda atrai muita gente.

– Jacques Lacan, idem.

243 idem, p. 168 (grifo nosso).

244 LACAN, Jacques (1968-1969 [2008]). O Seminário: Livro 16 – De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:

É praxe dizer que é no Seminário 17, de 1969, que Jacques Lacan detalha e estrutura sua teoria dos discursos, após a insurreição estudantil de Maio de 1968. Todavia, a movimentação de Lacan para o trato com o discurso já tomava corpo quando, por exemplo, enunciara seu axioma sobre o sujeito (e sua representação entre significantes) e, especialmente, quando propusera sua homologia entre o mais-de-gozar e a mais-valia marxista (Lição de 13 de novembro de 1968). Parece-nos decisivo, pois, o momento em que Lacan ousa atribuir à teoria psicanalítica um objeto próprio, e tal atribuição aproxima-se do desejo de circunscrever a própria teoria analítica como um discurso, ainda que, para isso, houvesse que se deslocar a própria noção de discurso então em voga. Não é à toa, portanto, que Lacan irá falar de uma “essência da teoria psicanalítica”, e a configurará como um “discurso sem fala”. A noção de discurso, a partir de então, ganha papel decisivo e determinante na teorização lacaniana e estruturalista. Impor-se uma teorização a respeito do próprio campo analítico transmutou-se para Lacan, portanto, como a própria teorização sobre a noção de discurso e de sua decorrência para a tomada do laço social entre falantes.

Pelo menos no campo que é aparentemente o nosso, nenhuma harmonia, como quer que tenhamos que designá-la, é admissível. Daí impor-se a nós, seguramente, a interrogação sobre o discurso que convém a esse campo”245.

Lacan chegou a enunciar, certa vez, que seu movimento se dava em um momento crucial para a psicanálise, dado que Freud não vislumbrara, em sua época, a noção de discurso implicada em sua teoria e prática. Ao propor sua teoria discursiva, Lacan visa retomar, como temos observado, a questão da perda de algo, mas passa a tratar essa perda não apenas como um produto do jogo de significantes, mas como um excesso determinante e constitutivo – um bônus de gozo encontrado na fundação do sujeito – o então considerado “mais-de-gozar”. Uma perda que engendra uma relação para com essa perda e que, portanto, não é sem efeitos.

Para introduzi-lo, Lacan parte da teoria marxista sobre o mercado e sobre o valor de uso vs o valor de troca. Retoma, pois, a premissa básica à qual o trabalho

de Marx deu especial relevo: o fato do mercado definir como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano. E, desse modo, nesse próprio mercado, o valor de troca de uma mercadoria nunca poder cernir por completo para alguém o valor de uso dessa mercadoria. Existiria, assim, um antagonismo inerente na própria relação de troca entre as mercadorias e na consideração do trabalho como mercadoria: “Desde o momento em que o mercado define como mercadoria um

objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais- valia”246, relembra Lacan. Haveria, portanto, um resto não articulado já na própria relação entre mercadorias nesse mercado de trabalho: a então chamada mais-

valia. E é daí que parte Lacan para tomar o antagonismo e expandi-lo para a

consideração do sujeito pela inscrição significante a partir de uma homologia estrutural com a formulação de Marx sobre a mercadoria. Propõe, então:

Um sujeito é aquilo que pode ser representado por um significante para outro significante. Não será isso calcado no fato de que, no que Marx decifrou, isto é, a realidade econômica, o sujeito do valor de troca é representado perante o valor de uso? É nessa brecha que se produz e cai a chamada mais-valia. Em nosso nível, só importa essa perda. Já não idêntico a si mesmo, daí por diante, o sujeito não goza mais. Perde-se alguma coisa que se chama o mais-de-gozar”247.

Lacan aponta, como podemos ver, que o mesmo ocorre com relação ao significante: no encontro entre significantes, o qual engendra uma [im]possível e breve referência ao sujeito, nada pode se dar sem que haja uma perda, dada a impossibilidade de se atingir o gozo mítico, o gozo da “Coisa”. Reforça justamente, inclusive, que para a teoria psicanalítica a ênfase recai nessa perda, articulada no momento mesmo do encontro de significantes e da constituição do sujeito. Este, então, será tomado como intervalar, e não como uma entidade física ou aproximada à noção de indivíduo ou “humano”, dada sua inscrição significante. Essa consideração de Lacan nos é cara por, justamente, referendar um modo de aproximação ao sujeito na psicanálise, afastando-o de qualquer comparação ou semelhança com a ideia de indivíduo. Diz Lacan:

246 idem, p. 19. 247 idem, p. 21.

Um significante não pode representar a si mesmo. (...) Quando digo que é preciso definir o significante como aquilo que representa o sujeito para outro significante, isso significa que ninguém saberá nada dele, exceto o outro significante. E o outro significante não tem cabeça, é um significante. O sujeito, aí, é sufocado, apagado no instante mesmo em que aparece”248.

Em sua fundamentação, Lacan acaba por retomar, atualizar e reunir alguns conceitos-chave freudianos, tais como a repetição e o gozo, de modo a estruturar assim, uma visada psicanalítica sobre o discurso. Na mesma via, parece abrir caminho para se pensar as decorrências de suas considerações e apontar como a própria realidade acabaria por ser orientada a partir de tais registros. Em seu

Seminário 16 - De um Outro ao outro, Lacan reforçava que assim como partir da

função do mercado – e, especificamente, situar o trabalho nesse mercado – teria possibilitado a Marx demonstrar o que havia de inaugural em seu discurso (a mais-valia), à psicanálise caberia também circunscrever e igualmente afirmar a existência de um objeto que permitisse demonstrar e isolar a função e a originalidade do discurso analítico. Lacan parte da relação senhor/escravo em Hegel, situando a mais-valia dentro do discurso do mestre, apontando, assim, que o objeto da mais-valia é estrutural.

Isso importa sobremaneira pois é a partir do isolamento de um objeto que Lacan pode então afirmar o chamado discurso analítico. Recordemos, novamente com Lacan, que:

“Desde o momento em que o mercado define como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais- valia. Assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto a”249.

O psicanalista francês chega a afirmar uma “identidade entre a função da

mais-valia e a do objeto a”, e que “a relação do mais-de-gozar com a mais-valia gira em torno do objeto a”250. Assim sendo, o gesto de Lacan de apropriar-se

livremente da mais-valia marxista possibilitou-lhe isolar algo de fundamental importância para o campo do gozo e, conseqüentemente, para a teoria

248 idem ibidem.

249 LACAN, Jacques (1968-1969 [2008]). O Seminário: Livro 16 – De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar. (p. 19).

psicanalítica. Para Lacan, portanto, o gozo teria a importância de permitir “introduzir a função propriamente estrutural que é a do mais-de-gozar”251, sendo esse o que permite isolar e observar a função do objeto a, o qual estaria em jogo, conforme postulamos, no processo ideológico.

Já no seminário 20, em 1975, Lacan viria a apresentar a própria realidade como sendo apenas possível se tomada a partir do discurso, retomando, ainda, a consideração do gozo nessa estruturação:

A realidade é abordada com os aparelhos de gozo, pois aparelho, não há outro senão a linguagem. Mas isso não quer dizer que o gozo seja anterior à realidade. No falante, portanto, o gozo é aparelhado. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. A partir daí, essa linguagem se esclarece, sem dúvida, por se colocar como aparelho de gozo”252.

Considerar o gozo como aparelhado (leiamos, pois, como inerente ao discurso e à estrutura) remonta e atualiza os trabalhos de Freud, visados por Lacan em sua tomada da psicanálise pelo avesso. Relembremos, conforme a leitura dos textos freudianos, que o aparelho psíquico seria governado por dois princípios contrapostos: o principio do prazer, regulador e homeostático, e um princípio que está mais além: o próprio gozo, o gozo do corpo, o qual orienta justamente um retorno de excitações; uma força constante que desequilibra e que torna o sujeito desejante e não meramente uma máquina reflexa. O gozo é o que teria se perdido com a entrada em jogo da relação significante, com o movimento e a articulação da linguagem. O animal-humano, ao ter sua linguagem atravessada pelo significante, teria perdido um bocado de gozo, e é por tentar dar conta desse momento mítico e supostamente inaugural de “abandono” do gozo do vivo que encontraria, na fala, sua morada. Entretanto, sua fala estaria regida justamente pelo discurso (o qual antecede a própria fala, e na qual as palavras vêm, posteriormente, se alojar), e seria apenas por ele [o discurso] que esse aparelhamento e essa suposta perda poderiam ser minimamente teorizados. Ocorre que esse movimento, como temos afirmado, toca em um ponto de

251 idem, p. 44.

252 LACAN, Jacques (1975 [1985]). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p. 75 –

impossibilidade, um ponto de [in]finitude, o qual nomeamos justamente como

sendo o Real estrutural dessa experiência. E é essa impossibilidade – a qual encerra esse Real, insondável e inalcançável ao falante – que permite a então denominada báscula entre os discursos propostos por Lacan, nos quais os elementos fundantes do parlêtre deslizarão e promoverão relações no laço social. Esse “ser”, ao ser atravessado pelo significante, teria sua suposta naturalidade perdida, dada sua apreensão pelo campo simbólico. O significante é, portanto, aquilo separa o gozo do corpo, gozo esse para sempre perdido253. Todavia, essa apreensão produz algo no campo do Outro, no campo da linguagem, que não se significa, que não cessa de não se inscrever. Falha constitutiva. A consideração do gozo entra justamente nessa relação não por ser o que se originaria do discurso, mas o que, por sua vez, promoveria o próprio discurso, balizando o sujeito pelo jogo significante. O gozo contribui para determinar o sujeito porque ele

é aquilo a que a repetição do significante visa: reproduzir a satisfação primitiva”,

pontua Porge254.

Lacan afirma que “é a partir da clivagem, da separação entre o gozo e o

corpo doravante mortificado, a partir do momento em que há o jogo de inscrições,

marca do traço unário, que a questão se coloca”255. É essa busca do gozo que se

tornaria, assim, aparelhada pelo discurso. E, supomos, seria considerada no movimento ideológico. Com Lacan uma vez mais:

“o discurso toca nisso [o gozo] sem cessar, posto que é dali [do gozo]

que ele se origina. E o agita de novo [o gozo] desde que tenta retornar a essa origem; é nisso que ele contesta todo apaziguamento”256

Vimos que Lacan, como Marx, afirma que tal como o trabalho na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo também não seria nova. Entretanto, fora preciso esperar pelo discurso da psicanálise para que pudesse ser enunciada e

253 “Com que goza a ostra ou o castor, ninguém jamais saberá nada disso porque, faltando significante, não

há distância entre o gozo e o corpo”. LACAN, Jacques (1969-1970 [1992]). O seminário, livro 17: O avesso

da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (p. 168).

254 PORGE, Erik (2006). Jacques Lacan, um psicanalista: percurso de um ensino. Brasília: Editora da

UNB (p. 249 – grifo nosso).

255 LACAN, Jacques (1969-1970 [1992]). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar. (p. 169).

minimamente tratada, dadas as demandas [im]postas pelas histéricas e que foram acolhidas na escuta atenta de Freud. Trata-se, pois, de situar o sujeito em relação ao gozo. E é aí que entra a consideração do mais-gozar, haja vista que é no aparelhamento do discurso, no qual a enunciação do sujeito pode ganhar existência, que o referido mais-de-gozar é produzido. “Essa função [a do mais-de-

gozar] aparece em decorrência do discurso. Ela demonstra, na renúncia ao gozo, um efeito do próprio discurso”257, ensina Lacan, o qual complementa e reafirma

essa consideração recordando de seu texto “Kant com Sade”. Nesse texto, segundo ele, fora possível demonstrar “como o mais-de-gozar decorre da

enunciação, (...) que ele é produzido pelo discurso e aparece como um efeito”258.

Ou, de volta ao Seminário 17:

O que é preciso dizer é que tal objeto não é nomeável. Se tento nomeá- lo como mais-de-gozar, isto é apenas aparato de nomenclatura. (...) Sobre esse objeto nada sabemos, salvo que é causa do desejo, quer dizer, falando propriamente, é como falta a ser que ele se manifesta. Portanto, não é nada de ente o que é assim determinado”259.

O objeto a assume, assim, uma função estrutural e fundamental, e é na análise dessa função, seguindo a trilha de Lacan sobre o mais-gozar e a proposta de Slavoj Žižek a respeito da fantasia ideológica que se encontra, conforme nossa proposta, uma referência para a leitura do ideológico. E é por essa razão que temos repetido que há na teoria dos discursos uma possível e original fundamentação para uma teoria da ideologia de base lacaniana. Interessa-nos, como dito, a questão da perda. Mas, para tomá-la, faz-se necessário que entendamos a fantasia como estruturante para o parlêtre e, fundamentalmente, que a partir dela é impossível falar de sujeito sem considerar o objeto engendrado em sua constituição, e vice-versa.

A relação do sujeito com o objeto ganha consistência em ($¸a), onde se

produz algo que já não é sujeito nem objeto, mas se chama fantasia. A partir daí, os outros significantes, ao se encadearem, ao se articularem

257 LACAN, Jacques (1971 [2009]). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse do semblante.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p. 17).

258 LACAN, Jacques (1968-1969 [2008]). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar. (p. 18 – grifo nosso).

259 LACAN, Jacques (1969-1970 [1992]). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

e, ao mesmo tempo, ao se cristalizarem no efeito de significação, podem introduzir o efeito de metonímia que consolida o sujeito”260. Ao longo do seminário 16, Lacan articula a determinação das considerações do sujeito e do objeto no trato com o discurso e, ainda, a pertinência da consideração da fantasia como elo [im]possível entre esses dois ditos constituintes do campo da linguagem. Isso aponta para a tentativa frustrada do objeto de dar conta de uma suposta unificação do sujeito como sujeito de todo um discurso como “papel” da fantasia. Relembremos com o psicanalista que

longe de ele [o sujeito] ser suficiente, é em torno da fórmula $¸a, em torno do ser do a, do mais-de-gozar, que se constitui a relação que nos permite, até certo ponto, ver consumar-se a solda a precipitação, o congelamento que faz com que possamos unificar um sujeito como sujeito de todo um discurso”261.

E recordemos que é justamente o que se anuncia enquanto impossibilidade que, para Lacan, promoverá o giro entre as estruturações discursivas por ele propostas, as quais guardarão lugares específicos para os elementos. Para Lacan, o que Marx denuncia na mais-valia é a “espoliação do gozo”, sendo essa mais- valia o memorial do mais-de-gozar, seu equivalente.

O mais-de-gozar é diferente do gozo. O mais-de-gozar é aquilo que corresponde não ao gozo, mas à perda de gozo, na medida em que dele surge o que se torna a causa conjunta do desejo de saber e da animação, que recentemente qualifiquei de feroz, que provém do mais- de-gozar”262.

No Seminário 17, percebemos então como a teoria dos discursos pode expandir-se e articular a relação para com essa perda tendo em vista o laço social, o qual Lacan extrapola e considera a partir das tomada de impossíveis. Especificamente, refere-se à impossibilidade de governar, de educar e de

psicanalisar – as profissões impossíveis, segundo Freud –, que passam a ser

lidas, respectivamente, pelo discurso do mestre, pelo discurso universitário e pelo

discurso do analista. Entretanto, há também a tomada de outra impossibilidade: a

260 LACAN, Jacques (1968-1969 [2008]). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar. (p. 23).

261 idem, p. 22. 262 idem, p. 114.

de fazer-se desejar, vista então pela estruturação do chamado discurso da

histérica.

Essa passagem, proveniente do impossível inerente a cada discurso, nos é cara por ser esse mesmo impossível, especificamente, aquilo que tomamos como registro do Real, seguindo a afirmação de Lacan que aponta de modo categórico, e por mais de uma vez, que “o impossível é o Real”263. Ou, ainda, ao dizer que

O real é o impossível. Não na qualidade de simples escolho contra o qual quebramos a cara, mas de escolho lógico daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível. É daí que surge o real”264.

Vejamos, portanto, como ficam posicionados os elementos nas estruturas propostas por Lacan em seu Seminário 17, e as conseqüências que podemos extrair da tomada de sua teorização para o propósito de observação da ideologia a partir de uma impossibilidade Real.