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eidos? (E não teria sido essa, quem sabe, a razão da “cegueira” atribuída aos

2.2. Realidade, Ideologia, Fantasia

Para que seja possível caminharmos com esse passo e tentarmos compreender as razões e conseqüências do atravessamento pelo matema da fantasia, é importante que nos dediquemos ao percurso de Žižek em relação à crítica da ideologia. Podemos partir, para isso, de dois eixos de observação, os quais nos orientarão, então, nas considerações do filósofo. O primeiro se refere à leitura do edifício ideológico proposta por Žižek, como forma de tentarmos entender sua aproximação entre ideologia e fantasia, com o conseqüente afastamento de uma leitura da ideologia pela noção de “sintoma” (ou da “leitura sintomal”). Junto a isso, é importante que apresentemos ainda o modo como a inflexão de Žižek – com vistas a atualizar a pertinência da crítica da ideologia – lança mão disso mesmo que a consideração de um matema tenta apontar: o Real. E isso com o devido cuidado para não se recair apenas em conceituações, mas levar adiante a própria relação para com aquilo a que aqui referíamos como o que

“falha”. Nessa via, é interessante tentarmos notar como a leitura proposta a partir da tomada de um matema igualmente busca considerar a tônica que temos trazido como o registro da falha, de algo que escapa, como dito, à própria simbolização. É pertinente pontuarmos a esse respeito aquilo que Plon e Roudinesco trazem em relação ao matema. Propõem os autores:

Lacan mostrou que o matema é a escrita do que não é dito, mas que pode ser transmitido (...) O matema não é a sede de uma formalização integral, uma vez que pressupõe sempre um resto que lhe escapa

141.

Não se trata, portanto, de uma “matematização” (ao molde matemático), no qual uma fórmula apontaria para uma suposta totalização, encerramento ou resolução. Trata-se, pois, da consideração do próprio matema como índice que aponta para aquilo que escapa justamente ao se apontar: figuração do Real, título do impossível, registro, talvez, da falha inerente.

Assim, há dois textos de Žižek que são referências iniciais fundamentais para uma observação de sua aproximação e desdobramento da ideologia, e que estão presentes na coletânea “Um mapa da ideologia”, organizada pelo próprio filósofo. Referimo-nos aos ensaios O espectro da Ideologia e Como Marx inventou

o sintoma (sendo esse segundo texto parte de uma obra que deu ao autor

esloveno grande visibilidade no mundo ocidental, ao ser publicada em 1989 sob o título The sublime object of ideology). Pensamos ser producente tomar os dois textos em conjunto, transitando por entre as proposições trazidas. Iniciemos então com algumas considerações mais gerais, como forma de aproximação ao que Žižek vem a articular.

Em Como Marx inventou o sintoma, Žižek apresenta duas afirmativas que convocam diretamente a fantasia e a ideologia. Ainda que neste instante as tomemos de modo até mesmo não tão aprofundado, há nelas um registro interessante e que pode ser pinçado como um provocador ponto de articulação. Diz o filósofo:

Em contraste com a habitual ‘crítica da ideologia’, que tenta deduzir a forma ideológica de uma determinada sociedade a partir da conjunção de

141 PLON, Michel & ROUDINESCO, Elisabeth (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

suas relações sociais efetivas, a abordagem analítica visa, acima de tudo, à fantasia ideológica que é eficiente na realidade social”142. E ainda:

O nível fundamental da ideologia (...) não é de uma ilusão que mascare o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia (inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social”143.

Afora o fato de que em ambas as citações de Žižek dispostas acima haja a tomada da fantasia e da ideologia, queremos neste instante igualmente dar relevo à inclusão e consideração daquilo que o autor nomeia como realidade. Isso acaba por deslocar, de saída, qualquer tentativa de se propor uma oposição, por exemplo, entre ideologia e realidade. E, ainda, vêm atingir as corriqueiras considerações da ideologia enquanto “mentira”, como ilusão tomada como verdade, ou até mesmo as afirmações que advogam por seu fim. As citações trazidas há pouco guardam grande importância na inflexão a ser proposta por Žižek, e são caras no corpo deste trabalho, visto que abrem espaço, justamente, para o comparecimento do registro do Real. Se retornarmos à passagem na qual o autor convoca o matema da fantasia para uma leitura da ideologia, à reboque de sua proposição iremos encontrar o seguinte questionamento, o qual reforça aquilo que Žižek define como o “nível fundamental” da ideologia: “Que significa, mais

exatamente, dizer que a fantasia ideológica estrutura a própria realidade?144”.

Notemos que, em tais provocações e igualmente nessa derradeira indagação, Žižek parece, como não-raro, bastante identificado a Lacan, que por sua vez já afirmara: “Esse algo que resiste, que não é permeável a todos os

sentidos, que é conseqüência de nosso discurso, a isso se chama fantasia. O que

cabe verificar são seus limites, sua estrutura, sua função”145 . Conforme

entendemos, Lacan refere-se aqui, justamente, à relação para com as impossibilidades que, de algum modo, tocam o/no Real, e que convocam a

142 ŽIŽEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? Em: ŽIŽEK, Slavoj [org] (1996). Um mapa da ideologia.

Rio de Janeiro: Contraponto. (p. 318 – grifo nosso)

143 idem, p. 316 (grifo nosso). 144 idem, p. 322 (grifo nosso).

145 LACAN, Jacques (1971 [2009]). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse do semblante.

fantasia como forma de resistência ao que não se inscreve; nem pelo sentido. E que, conforme reforçado por Žižek, igualmente comporiam a própria realidade. De momento, interessa dar relevo ao que Lacan propõe nessa passagem em relação à estrutura e função da fantasia, de modo que possamos entender então como ideologia e realidade poderiam ser tomadas em aproximação (ainda que nunca em identidade). Importa, pois, a pertinência da fantasia no construto ideológico no qual, por aproximação e afastamento, encontram-se pareados o sujeito ($) e o objeto (a), efeito e produto, respectivamente, do processo de articulação da cadeia significante. A afirmação de Lacan a seguir mostra-se frutífera em relação à possibilidade que aqui tomamos como via para leitura da ideologia. E diz respeito a uma “função”, a qual nos interessa perceber na própria relação entre ideologia e realidade:

Num discurso, a relação entre o pequeno a, o mais-de-gozar e o $, o S barrado do sujeito, ou seja, precisamente a relação que é rompida no discurso do mestre [a relação significante], é isso que temos de verificar em sua função”146.

A aproximação para com o matema da fantasia se configura na leitura de Žižek, segundo entendemos, como uma perspectiva de resgate, a princípio, do próprio conceito de ideologia e de sua pertinência. Entretanto, é fundamental que demarquemos que interrogar a freqüente oposição entre ideologia e realidade não significa, automaticamente, considerar ou propor que tudo que lidamos sejam, portanto, ficções simbólicas, e nunca com a realidade. E que, assim sendo, devamos renunciar então à própria noção de uma realidade extra-ideológica. Em

O espectro da ideologia, Žižek alerta de que “essa solução pós-moderna, rápida e astuta” seria, justamente, “a ideologia por excelência”147.

146 idem, p. 28. Neste ponto, pode ser iluminador trazermos a estruturação que Lacan reserva ao então

chamado Discurso do Mestre, dada a menção a ele, por parte do psicanalista francês, nessa citação. Por ora, apenas apresentaremos a referida estrutura, à qual retornaremos em nosso 3º capítulo (seção 3.3).

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