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eidos? (E não teria sido essa, quem sabe, a razão da “cegueira” atribuída aos

1.4. Kafka por Žižek: para ler a ideologia

Conforme a leitura do filósofo Slavoj Žižek, o filme “O Processo” teria permitido a Orson Welles uma façanha “anti-obscurantista” exemplar ao reinterpretar o lugar e a função da conhecida parábola sobre a “porta da lei”, no romance Der Prozess, de Franz Kafka. Diferentemente da versão original (a do livro, de 1920), no longa-metragem é o advogado de Josef K, e não o sacerdote, quem acaba por retomar e recontar a parábola da tal porta dentro da catedral. Na cena – na qual o advogado projeta imagens da parábola na parede da igreja, recontando-a – K repentinamente o interrompe e, por si próprio, repete (assertiva e ironicamente) aquilo que o guardião da porta afirmara ao homem que esperava incansavelmente ser aceito pela lei em frente à porta: “Eu já ouvi. Todos nós já

ouvimos isso! Ele morre de velho de tanto esperar. E, no final, o guarda diz que a porta era só pra ele!”. Josef K, em seu último momento, afirma então que a

verdadeira conspiração do Poder consistiria na tentativa mesma de convencer os homens de que eles são vítimas de invioláveis forças irracionais, e de que tudo, portanto, seria loucura: “Essa é a conspiração: convencer todos de que todos são

loucos: sem forma, sem sentido, absurdos. Esse é o jogo sujo”. Para Žižek, K,

com essa atitude, “representa uma ameaça ao poder no momento mesmo em que

desmascara a ficção sobre a qual o vínculo social da estrutura de poder está

fundado”23, e, por essa mesma razão, acaba sendo morto na seqüência.

Na visão do filósofo esloveno sobre a releitura de Wells, o cineasta estadunidense teria conseguido realizar uma adaptação que diferira de outras abordagens existentes a respeito da obra de Kafka, dentre elas aquela que considera ser a “religiosa-obscurantista”, ou ainda a “iluminista-humanista”. Para a primeira, Josef K seria definitivamente culpado, um niilista questionador da autoridade que não entende a natureza (e, possivelmente, a necessidade) da burocracia e da Lei (a qual estaria pautada em uma existência meramente tautológica: “a Lei é a Lei”). E o que o tornaria culpado seria justamente sua alegação e voto de inocência, “sua crença orgulhosa em uma argumentação

racional-ingênua”, nas palavras de Žižek. Subjacente a essa leitura, a mensagem

seria que K estaria cego em relação ao mistério do Poder e da verdadeira natureza da burocracia, dada sua confiança inequívoca na razão pública. “Segundo aquilo que o sacerdote aponta para K na catedral, o Tribunal [estaria],

no fundo, indiferente a ele”, dele nada querendo, sendo sua visão em relação ao

tribunal e à conspiração uma perspectiva distorcida e sem sentido, puramente subjetiva (ou, até mesmo, paranóica).

Já na visão “iluminista-humanista”, o próprio Kafka, segundo Žižek, seria tomado como um autor profundamente ambíguo, posto que, ainda que tenha conseguido apontar o suporte fantasmático da engrenagem burocrática por meio de alguns de seus escritos (dentre eles, O Processo), não tenha conseguido ele próprio resistir à sua atração. Sob a lente dessa visão residiria, segundo o filósofo, a “inquietação” de alguns de seus leitores: “ao final, não teria ele próprio [Kafka]

participado da engrenagem infernal que descrevia, reforçando, assim, a influência

e o poder dessa engrenagem, ao invés de quebrar seu feitiço?”24.

23 ŽIŽEK, Slavoj (2005). Interrogating the Real. New York: Continuum. (p. 229). [nossa tradução de: “he

presents a threat to power the moment he unmasks, ‘sees through’, the fiction upon which the social link of the existing power structure is founded”].

24 idem, p. 230 [nossa tradução de “in the end, did he not participate in the infernal machinery he was

Isso posto, tudo levaria a crer que Wells, em sua direção da versão fílmica, estaria alinhado à segunda leitura, a iluminista-humanista. Todavia, Žižek nos desloca para a consideração de uma terceira via, a qual teria levado Wells a

colocar a própria ideia de conspiração em questão, ao propor o final alternativo à

versão escrita de Kafka. Diz o filósofo:

Segundo aquilo que K questiona na versão welliana antes de sua explosão final, a verdadeira conspiração do Poder encontra-se na própria noção de conspiração, na crença em uma força misteriosa que ‘mexe as cordinhas’ – como em uma marionete – e que efetivamente detém o controle sobre o ‘show’, de modo que, pode detrás do Poder público visível, existiria, portanto, uma louca, invisível e obscena estrutura outra de Poder”25.

Conforme sua leitura propõe, essa “outra lei”, essa “força misteriosa” e conspiratória exerceria o papel de “Outro do Outro” (o qual Lacan ensina que não existe), mas que serviria como garantia de uma suposta consistência desse grande Outro (a ordem que regula a vida em sociedade), de modo que esse Outro, portanto, seria justificado e contemplaria uma suposta totalidade. A teoria da conspiração nesse caso proveria, pois, “a garantia de que o campo do grande

Outro não é uma mera e inconsistente bricolage”26, e de que se trata, pois, de um

campo possível de totalização, no qual não há impedimento e para o qual não existe a possibilidade de questionamento. Discursivamente falando, ocorre-nos dizer que esse gesto de se tentar “resolver” a falha no Outro visaria atribuir ou propor, justamente, a existência de um possível “universo do discurso”, do qual Lacan igualmente afirma sua inexistência a certa altura do Seminário de número 1627, ou também ao estabelecer categoricamente, já no Seminário 18 que “não

25 idem ibidem [nossa tradução de “...as K puts it in the Welles version of his final outburst, the true conspiracy

of Power resides in the very notion of conspiracy, in the notion of some mysterious Agency that ‘pulls the strings’ and effectively runs the show, that is to say, in the notion that, behind the visible, public Power, there is another obscene, invisible, ‘crazy’ power structure”].

26 idem, ibidem [nossa tradução de “a garantee that the field of the big Other is not an inconsistent bricolage”]. 27 “Não vemos por que o fato de se poder enunciar, de se haver enunciado que não existe um ponto de

fechamento do discurso, tenha como conseqüência que o discurso seja impossível, ou mesmo simplesmente desvalorizado. É precisamente a partir daí que desse discurso vocês têm a incumbência, em especial a de bom conduzi-lo, levando em conta o que quer dizer o enunciado de que não existe universo do discurso”. LACAN, Jacques ([1968-1969] 2008). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (p. 15).

existe semblante de discurso, não existe metalinguagem para julgá-lo, não existe

Outro do Outro, não existe verdade sobre a verdade”28. E dado que é a ideologia o

ponto central de questionamento nesse trabalho, juntamente ao discurso, podemos, desde já, questionar, lançando assim outra indagação que surgirá em nosso percurso: não seria, pois, essa tentativa de se “suturar” o furo que denota a incompletude do Outro (leiamos: do universo simbólico) um dos indicativos e uma pista para nos aproximarmos daquilo que aqui chamamos de “ideologia”?

Por hora, duas são as considerações que queremos pinçar da leitura de Wells por Žižek, as quais interessam para aquilo que vínhamos alinhavando até então. A primeira diz respeito ao gesto de K frente ao tribunal, o qual acaba por “furar” e intervir na própria fantasia, na ficção simbólica que sustentava o tribunal enquanto detentor Outro do Poder (gesto esse que, recordemos, incorreu em seu violento assassinato). A segunda consideração retoma a própria [in]existência da tal “garantia” de completude no grande Outro, a qual supostamente poderia entrar em pauta, justamente, quando de uma abordagem da ideologia; ou seja, alçando primeiramente a própria ideologia a um patamar inalcançável, pois garantido e sustentado de antemão, tal como o “Poder”, ou a “Lei”. Uma visão essencialista da ideologia levaria em conta, pois, a tentativa de se afirmar um campo seguro para a abordagem da ideologia. Tal campo se promoveria pela circunscrição da possibilidade de se afirmar o que é (ou não) ideológico, tentando até mesmo “quebrar seu feitiço” – tal como a visão iluminista-humanista apresentada por Žižek a respeito de uma leitura possível de K frente ao tribunal. Tal visão suporia, pois, um ponto para a percepção do mecanismo que regula a [des]organização social; ponto esse, por sinal, para o qual Žižek mirará um implacável e crucial questionamento, e que traz conseqüências no escopo deste trabalho: “A

pretensão de podermos aceder a esse lugar não será o exemplo mais patente de ideologia?29”. Assim sendo, propomos que talvez seja mais profícuo, então,

observar não o ponto que regula a desorganização, mas, sim, aquele que

28 LACAN, Jacques ([1971] 2009). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse do semblante.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p. 14).

29 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em: ŽIŽEK, Slavoj (1996). Um mapa da ideologia. São Paulo:

desregula a suposta organização. Então, por ora, aventamos: não seria a

consideração do objeto a e do Real lacaniano uma possibilidade para isso?

A visão dita “dialética” que mencionamos poderia, por sua vez, ser ilustrada não pela leitura “religiosa-obscurantista”, nem tampouco pela “iluminista- humanista”, mas por aquilo que Žižek considera ser a “terceira via” na leitura dos escritos de Kakfa (caminho esse seguido por Wells, conforme entendemos). Relembremos que essa terceira via visaria, em si, não apenas considerar uma suposta “espontaneidade” da conspiração, estando legitimada por um arsenal garantidor contido no grande Outro – de modo que não pudesse ser questionada ou, ainda, que devesse ser aniquilada. Ao se propor o questionamento sobre a ideia de conspiração (desdobrando-a propositalmente para a proposta de que a ideia de conspiração seria a “verdadeira conspiração”), evidencia-se a diferença entre uma suposta espontaneidade (aproximada, talvez, a uma ideia de naturalização) e uma imposição de sua existência pela via de algo (ou alguém) que supostamente “manipulasse as cordinhas” (o tal “Outro do Outro”). Mas qual seria a relação de tais proposições com a tomada da ideologia aqui visada?

Na leitura de outro ensaio do filósofo esloveno, notemos que essa mesma tensão presente na ideia de conspiração (entre espontaneidade e imposição) chega a ser apontada por ele como igualmente presente no próprio cerne da noção de ideologia. Afirma:

Essa tensão entre a ‘espontaneidade’ e a imposição organizada introduz uma espécie de distanciamento reflexivo no próprio cerne da noção de ideologia. A ideologia sempre é, por definição, ideologia da ideologia”30.

O que interessa apontar ao trazermos brevemente esse paralelo à leitura zizekiana de Kakfa diz respeito ao propósito de se tentar uma leitura da ideologia que não vise apresentar uma “nova” teoria a seu respeito, mas que proponha o deslocamento daquilo mesmo que falha para dentro de sua teorização – tal como o gesto realizado para com a “conspiração” por Josef K. Haveria, assim, um “resto” inerente e constitutivo ao próprio gesto de teorização, resto esse que também se fará presente no que aqui estamos tomando como o movimento

ideológico, e é a observação do gesto para com esse “resto”, por assim dizer, que pauta, em grande medida, a leitura que queremos propor de alguns textos de Pêcheux e Althusser. Esse gesto nos é caro pois igualmente interessa-nos abordar o campo da ideologia e do discurso tomando esse resto como constitutivo, não apenas encerrando um discurso esvaziado sobre esse dito “resto”, mas construindo-o pela colocação em ato da articulação sobre esse objeto.

Nossa leitura dos textos de Althusser e Pêcheux, conforme apresentaremos imediatamente a seguir, está pautada pela consideração daquilo que ilustramos como sendo a “terceira via” levada adiante por Wells (segundo a leitura de Žižek). Buscando assim, como já antevemos, uma leitura da polarização acerca da ideologia com vistas a mexer, justamente, na costura do tecido que afirma que todo discurso é ideológico. Notemos que essa mesma oposição entre espontaneidade e imposição (leiamos: “tudo é ideológico” em oposição à “a ideologia não existe”) também permite observar a polaridade presente na dita oposição “ideologia vs realidade pura”. Há, como temos afirmado, a necessidade da consideração de um registro outro para a tomada da ideologia, o do Real, fruto da tentativa de simbolização. E aquilo que apontamos como “resto”, “falha” é também índice desse Real que se apresenta e se impõe ao falante, igualmente no gesto de teorização.