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DO DISCURSO: DE MIL PALAVRAS A ‘SEM’ PALAVRAS

3.3. A teoria lacaniana dos discursos

3.3.1. Um laço hegemônico?

A partir do que tomamos em relação ao saber até este ponto, e para seguirmos em nossa consideração do DA com vistas à leitura da ideologia, traremos agora uma passagem que, ainda que a princípio pareça um tanto complexa, possa mostrar-se profícua e iluminadora em nossa tarefa. Esse caminho passa pela breve consideração da fórmula da perversão (a

¸

$) – o

inverso da fórmula da fantasia, a qual temos nos referido – e é trilhado e analisado por Žižek a partir da afirmação de Jacques Alain-Miller de que a matriz simbólica hegemônica de nosso tempo não mais seria o DU. Mas, sim, o próprio DA. Mas como?

Para balizar essa afirmação, Miller aventa que a instância dominadora de nossa sociedade seja uma injunção superegóica de gozo, a qual postularia então o objeto a, mais-de-gozar, na posição de agente do discurso. Tal injunção se dirigiria ao sujeito ($), o qual seria posto a trabalhar para lidar e responder a essa injunção. Como produto desse discurso, estaria o significante-mestre, a suposta “verdade” do sujeito, sendo suportada por manuais de auto-ajuda, tendo como índice propulsor no vetor da verdade o tal saber-objetivo neutro do qual falamos. Se seguirmos a disposição estrutural e vetorial aí apresentada, teríamos então a própria formulação do DA. A primeira indagação a ser feita então seria: qual é portanto a diferença entre esse funcionamento discursivo e aquele levado adiante em uma análise, por exemplo?

313 LACAN, Jacques. Introdução à Edição Alemã dos Escritos. Em: ______ (1966 [1998]). Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar. (p. 552)

314 Para aprofundamento a respeito da questão do chiste, recomendamos a leitura do trabalho proposto por

VERAS, Maria Viviane do Amaral (1999). Lingüisterria: um chiste. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem. UNICAMP.

Conforme o que entendemos da leitura de Žižek, Miller oferece a essa pergunta uma resposta um tanto suspeita a princípio, e que necessita ser reduzida. Para Miller, a diferença residiria no fato de que no DA os elementos seriam aproximados, tomados em conjunto, lidos e considerados a partir de uma tentativa de união. Mas, no caso do laço social dito “perverso” (por igualmente apresentar, tal como no DA, a disposição “a - $” na parte superior), os termos seriam dispostos de modo disjunto, de forma isolada.

Žižek então dispara um incisivo questionamento: “mas a operação

fundamental do tratamento psicanalítico não é, precisamente, o de análise, separando aquilo que no laço social pareça estar junto, ao invés da síntese pela união de elementos?”315. E é a partir de tal questionamento então que o filósofo esloveno propõe uma interpretação da afirmação de Miller a respeito do DA como discurso hegemônico, a qual toma a perversão como ponto de viragem e diferenciação. O fato de o nível superior do DA apresentar os elementos constituintes do matema da perversão (a e $) apenas diria de um discurso hegemônico no caso de se propor, justamente, a resolução para aquilo que de ambíguo se apresenta no próprio objeto a, índice da falta e da falha. O que, definitivamente, não é o caso do saber que se almeja no DA. Ou seja, no laço social proposto originalmente pelo DA, o analista ocupando a função de semblante de objeto seria, justamente, para evidenciar a falha constitutiva da simbolização e a inconsistência do grande Outro. Mas, no caso da perversão enquanto laço, tratar-se-ia de oferecer ao sujeito a resposta a essa falha, seu tamponamento. E aí, uma vez mais, entra em consideração aquilo que do saber trouxemos há pouco, e a diferenciação entre um saber balizado pela verdade enquanto falta e um saber que se postule enquanto totalizador. O saber disposto no lugar da verdade no DA está referido, pois, ao saber suposto no analista, o que, para Žižek, “assinala que o saber obtido não será o saber objetivo neutro da adequação

315 ŽIŽEK, Slavoj (2006). Os quatro discursos de Jacques Lacan. Disponível em

www.lacan.com/zizfour.htm, acesso em 22/8/2009. [nossa tradução de “Is it not that the fundamental operation of the psychoanalytic treatment is not synthesis, bringing elements into a link, but, precisely, analysis, separating what in a social link appears to belong together?”].

científica, mas o saber que concerne o sujeito (analisante) na verdade de sua posição subjetiva”316.

Se, para Miller, o fato de haver a relação entre objeto e sujeito disposta no DA permita que se enuncie algo do laço social perverso contemporâneo, Žižek advoga que isso apenas seja feito como forma elementar de leitura do laço social, sendo o ponto de diferenciação justamente a posição na qual o saber é posto em relação àquilo que falha no próprio laço. E, ousamos dizer, naquilo que falha na interpelação ideológica. A diferença então entre o laço social da perversão e o laço encorajado pelo DA estaria baseada justamente na ambigüidade presente no objeto a lacaniano, índice dessa falha que remete ao Real impositivo nessa relação. Para Žižek, o objeto a, ao ser tomado na diferenciação entre o laço perverso e o laço do DA, permite que se perceba seu posicionamento simultâneo enquanto representante imaginário da tela ou do engodo fantasmático (o qual, segundo entendemos, estrutura o espaço ideológico) e enquanto aquilo que essa tela supostamente estaria ofuscando: o próprio vazio por detrás da tela. “Quando

passamos da perversão ao laço social analítico, o agente (o analista) reduz-se ao vazio, o que provoca o sujeito a confrontar-se com a verdade de seu desejo”317.

A tomada dos discursos em constante movimento de báscula e a diferenciação entre o saber de uma adequação científica e um saber de outra ordem recorda-nos especialmente daquilo que Lacan pontuava frente aos estudantes de Vincennes318. Lembremos que, a certa altura, o psicanalista

concordou enfaticamente com o questionador estudante a respeito do fato de que buscar os elementos de contestação de um discurso dentro dele mesmo seria “cair em uma armadilha”. Entretanto, de forma a compreender tal passagem, é necessária essa percepção em relação ao saber posto como báscula no decorrer

316 ŽIŽEK, Slavoj (2005). Violencia en acto: conferencias en Buenos Aires. Buenos Aires: Paidós (p. 115)

[nossa tradução de “señala que el saber ganado no será el saber ‘objetivo’ neutral de la adequación científica, sino el saber que concierne al sujeto (analizante) en la verdad de su posición subjetiva”].

317 idem, p. 115 [nossa tradução de “cuando pasamos de la perversión al lazo social analítico, el agente (el

analista) se reduce al vacío que hace que el sujeto enfrente la verdad de su deseo”].

318 Na lição de 17 de junho de 1970 (“O poder dos impossíveis”) do Seminário 17, Lacan brinca com o som e

arremeda a palavra Vincennes, fazendo nela ecoar vingt scènes (“vinte cenas”) como também vaine scène (“cena vã”), não deixando assim de dizer algo sobre o que sucedera em seu encontro com os estudantes (em Dezembro de 1969) e o contexto da época.

da contestação, de modo que não se recaia justamente no DU ao se pensar estar saindo dele. Lacan era enfático ao alertar que “é ao querer sair do discurso

universitário que se volta implacavelmente a entrar nele”319. Posteriormente então,

em suas conversas na Capela de Sainte-Anne, o psicanalista viria a proferir algo que, em nossa leitura, assemelha-se e resgata aquilo mesmo que trouxemos na abertura deste capítulo, e mantém estreita relação com a leitura do DU frente ao furo provocado pelo DA: “Vocês entram nele [no DU] a todo vapor, acreditando

criar a agitação de Maio”320. Isso nos recorda de uma afirmação de Žižek, e pode

aí apontar, talvez, para uma suposta relação. Diz o filósofo: “O próprio gesto de

sair da ideologia puxa-nos de volta para ela”321.

Queremos neste ponto então fazer um questionamento, tendo em vista a questão do saber que atravessa a diferenciação posta em cena até aqui e uma importante consideração presente no Seminário 17 em relação ao funcionamento da ciência. Diz Lacan então: “É impossível deixar de obedecer ao mandamento

que está aí, no lugar do que é a verdade da ciência – Vai, continua. Não para. Continua a saber sempre mais”322. Se em tal funcionamento – animado pelo questionamento do DH, mas basculado com o DU na busca da imposição de saber – impõe-se o que Lacan aponta como um imperativo de saber, não haveria aí portanto uma injunção superegóica ao gozo, semelhante a que nos aponta Žižek em relação, justamente, ao funcionamento ideológico (“Goza!”)323? Essa injunção não operaria assim, portanto, a partir de uma tentativa de sutura daquilo que em cada discurso se apresenta como seu impossível constitutivo, dado que o impossível é insígnia da impossibilidade de gozo? E então propomos: seria

319 LACAN, Jacques (1969-1970 [1992]). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar. (p. 61).

320LACAN, Jacques (2011). Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de

Janeiro: Zahar. (p. 61).

321 ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. Em: ŽIŽEK, Slavoj [org] (1996). Um mapa da ideologia. Rio de

Janeiro: Contraponto. (p 15).

322 LACAN, Jacques (1969-1970 [1992]). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar. (p. 98).

323 Tal injunção já fora apontada por Lacan em seu Seminário 18, justamente ao questionar: “Qual a essência

do supereu? (...) Qual é a prescrição do supereu? Ela se origina precisamente nesse Pai original mais do que mítico, nesse apelo como tal ao gozo puro, isto é, à não castração. (...) O que o supereu diz é: Goza!. É essa a ordem, a ordem impossível de satisfazer, e que está, como tal, na origem de tudo que se elabora sob o termo ‘consciência moral’, por mais paradoxal que isso lhes possa parecer”. LACAN, Jacques (1971 [2009]).

possível, desse modo, tomar alguma outra estruturação discursiva, que não o DA, como forma de leitura do laço social dito “perverso”, o qual transforma qualquer forma de saber em “saber-objetivo-neutro”? Com vistas então a dar seqüência em nossa contribuição e leitura da ideologia e buscar um modo de nos balizarmos por essa indagações, é importante que, primeiramente, tratemos daquilo que se considera como o “impossível” de cada discurso.