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A filosofia rortiana rumo à super-literatura e ao inquietismo interpretativo

3. Organização e disposição deste trabalho

3.3 A filosofia rortiana rumo à super-literatura e ao inquietismo interpretativo

Volta à retórica. Ela qualificará a metafísica da “vida pública” nas democracias. O ideal de fundir John Stuart Mill e Friedrich Nietzsche é, na prática, “impossível”280 – reconhece Rorty. Tal impossibilidade não se sustenta por

diferenças ‘filosóficas’ entre autores. “Retórica pública”281 é expressão que surge frequentemente em Rorty para designar as crenças metafísicas mantidas na vida pública pela “fachada” do senso comum. Esta fachada se mantém, como entende Rorty, porque une à sua “argumentação” a noção de redescrição reeducadora. A reeducação pretendida, no entanto, depende da crença em um mal anteriormente presente não identificado: “carne”, “diabo”, “professores” ou “sociedade repressiva”. O poder de redescrever só será irônico e liberal, se, instrumentalizar redescrições edificantes contrárias à “argumentação” dos “metafísicos”.

As palavras prediletas de Rorty e Dworkin são diferentes a ponto de não engendrarem novas metáforas partilhadas pelos dois?

Rorty usa com menos reserva o termo retórica, enquanto Dworkin ainda segue a velha condenação platônica da retórica entendida como sofística. Em “Contingência, Ironia e Solidariedade” a expressão “retórica pública” sugere sempre quase a possibilidade ‘atual’ de transmutação de comportamentos por parte dos metafísicos, em função das redescrições dos ironistas.

Os dois autores parecem incorporar a dimensão pragmática da linguagem como dimensão geradora da dimensão semântica e sintática. Contudo permanecem divergentes quanto ao papel da teoria da interpretação.

Vai-se agora examinar a parte mais conclusiva da obra de Rorty citada por Dworkin.

Rorty oferece linhas precisas, passagens claras e critérios exatos na exposição de sua classificação de livros.

Livros ironistas são úteis no processo voluntário de expansão da autonomia pessoal, com base nas fantasias privadas. Livros liberais esperançosos são úteis

280

Idem, Ibdem. p. 152.

nos processos involuntários e voluntários de percepção dos “efeitos de nossas idiossincrasias privadas sobre terceiros”, sejam elas pessoalmente dirigidas à humilhação do outro ou praticadas por “instituições sociais”. Os livros que tratam da “pobreza”, do “preconceito” e da “escravidão” são livros que podem ajudar na identificação de práticas cruéis e não solidárias das instituições. Rorty não tratará pormenorizadamente de livros deste tipo282, doravante, não considerará cruciais ou úteis para seu projeto as leituras “relaxantes” realizadas por leitores que não permitem questionamentos ao seu mundo e sua prática. Livros “estimulantes” são aqueles que impõem a seguinte pergunta: “que tipos de coisas sobre que tipos de pessoas preciso notar?”.

O contraste entre as faculdades que classificariam livros por suas mensagens morais ou por seus objetivos puramente estéticos é condenado por Rorty283. Primeiro ataque: o pragmatista não privilegia o termo “faculdade”, ele escreve sobre “feixes de crenças e desejos idiossincráticos” que não dissociam uma parte “racional” da mente (que destaca verdades) separada da “consciência moral” do “eu” (que age moralmente) separado do “gosto” pelo prazer do belo. Segundo ataque: a filosofia e a literatura são reduzidas às funções e fins de seus produtos.

Rorty não hesitava: “a vida humana”, “a moral”, “a emoção mais elevada”, e “a tarefa do escritor” são expressões bastante metafísicas para o pragmatista. Para suprir a o vazio pós-metafísico pretendido, ele ofereceu sua utopia que só é diferente, porque não almeja as “alturas” e anseia por uma “faixa média”, seja lá o que isso signifique284.

Proust, Nietzsche, Heidegger e Derrida são os autores prediletos da filosofia rortiana, quando ela se encarrega de nos ensinar a autocriação e a filiação (na esfera privada). Nabokov e Orwell são os dois autores “estimulantes” que completam a utopia-liberal de Rorty no controle da ironia privada.

É bom frisar, conforme colocações dos itens anteriores, que o pragmatista não se preocupará apenas com “méritos literários” destes autores. Ele estudará as relações que estes autores desenvolveram com seus predecessores rivais, sejam

282

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 235.

283

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 237.

284

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 247.

eles: personagens reais do cotidiano (os familiares para Proust), cânones oficiais que se mostram como personagens em livros (Platão e Schopenhauer para Nietzsche), fonemas do ‘Dasein’ no eixo Grécia-Alemanha (o “ser” e o “tempo” europeus para Heidegger) ou textos nostálgicos da metafísica da presença de filósofos que não se assumem como escritores (os escritos de Hegel, Nietzsche e Heidegger para de Derrida285).

Duas advertências merecem espaço agora: 1) a dissertação não poderá incorporar as obras desses autores ao seu marco teórico, pretende apenas estudar e sumariar as conclusões rortianas a partir daqueles nomes próprios, 2) a rejeição expressa de Rorty a qualquer “método”286 no tratamento destes autores torna infrutífera qualquer tentativa de correção do seu ‘tratamento’. A melhor descrição de Rorty “não tem um critério para a aplicação desse termo” (Rorty refere-se aos termos “melhor descrição”) e, assim, “não pode usar a idéia de descrição certa”287

. Situar o uso que Rorty faz do termo “retórica” e circunscrever suas considerações sobre o “direito” é a tarefa deste capítulo. Esta dissertação não se aventurará na análise das incursões de Rorty pelo campo de seu ‘herói’ – Harold Bloom288. O crítico de Yale é privilegiado ao longo de “Contingência, Ironia e Solidariedade” com a mesma regularidade de filósofos “ironistas” (Nietzsche e Derrida).

O texto sobre Nabokov exibe as mais longas notas de rodapé de todo o livro, além de empregar outras estratégias críticas que entrelaçam as biografias com as obras comentadas. Enquanto disserta sobre a biografia de Nabokov, retratando as

285 Derrida influenciou de modo marcante a obra de Rorty. Além do capítulo 6 de “Contingência, Ironia

e solidariedade”, Cf. RORTY, Richard. Derrida é um filósofo transcendental? In: Ensaios sobre

Heidegger e outros: escritos filosóficos 2. ed. 2. trad. Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Relé

Duramá, 2002, pps. 163-176.; Idem. Filosofia como gênero de escrita: um ensaio sobre Derrida.

In: Consequências do pragmatismo. trad. João Duarte. Lisboa: Piaget, 1982, pps. 151-172.; Idem. Derrida e a tradição filosófica. In: Verdade e progresso. trad. Denise R. Sales. Barueiri:

Manole, 2005, pps. 411 – 443.

286

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 171.

287

Lendo estas palavras finais lado a lado com a última página de Law’s Empire de Ronald Dworkin, pode-se concluir que Rorty é antístrofos de Dworkin, pela proximidade dos termos “melhor” e “possível” nas duas obras. Cf. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 174.

288

Esta colocação, na verdade, é apenas uma insinuação que não poderá ser desenvolvida nesta dissertação. Rorty enaltece Habermas como o melhor escritor de livros para usos na esfera pública em diversas passagens de sua obra. Este ímpeto crônico não abandona Rorty quando ele se ocupa da esfera ‘privada’ do ironista. Sobre os pontos de convergência entre os dois Cf. SOUZA, José Crisóstemo de (org). Filosofia, racionalidade, democracia: os debates Rorty & Habermas. Trad. José C. de Souza. São Paulo: UNESP, 2005.

associações entre diversas obras do autor de “Lolita”, Rorty nitidamente segue o ‘mapa da desleitura’ de Bloom. Ele redescreve tais obras na contramão de outros críticos literários, para ampliar as metáforas fortes e desliteralizar metáforas fracas.

Entende que Nabokov criou personagens reveladores da sua própria capacidade de sentir piedade, outrora sua concepção de literatura pretendesse não vincular fins políticos aos fins de sua arte. Os ensinamentos sobre a piedade em Nabokov decorrem de personagens cruéis que dramatizam tipos peculiares de humilhações que antes não eram selecionadas por nossa “incuriosidade”289

.

O ponto que o ironista quer marcar se faz pela aparente incuriosidade do próprio Nabokov que se expõe nos seus personagens, que são ao mesmo tempo “gênios monstruosos” do “êxtase” e da insensibilidade. Eis a máxima de Rorty para a “estética”: que ela se mostre útil para a esfera privada e para a esfera pública.

Em “Lolita”, o importante não é conhecer a luxúria de um velhaco em putrefação imposta a uma garotinha pura. A utilidade do livro se oferece na sugestão memorável de que o leitor deve ser sentir estimulado pelos estímulos presentes no livro. A obra alargou nossa capacidade de reconhecer mínimos detalhes sórdidos que se materializam apesar de todo o imaginário platônico, católico, romântico, que tentou limitar a busca frenética pelo prazer.

Rorty acredita que certos artistas são mais habilitados a “notar” pequenos feixes detalhados de irregularidades onde outros só notam “fatos corriqueiros”. Essas descrições de fatos corriqueiros são consideradas verdadeiras porque as “imagens” que as produziram foram posteriormente esquecidas, daí a generalidade possível dos discursos e sua precária relação com o pensamento. Rorty cita o “nominalismo psicológico” de Sellars290

, para dizer que os impulsos geradores das imagens que serão já associadas em metáforas (como a metáfora do fato corriqueiro) não pertencem a um mundo supra-sensível. Mesmo as idéias mais gerais também são “instrumentos para fins práticos”.

Se, por um lado, entende que alguns romances nos ensinaram mais sobre a capacidade ‘humana’ de realizar atos cruéis do que alguns tratados filosóficos, por

289

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.263.

290

É marcante a influência de Sellars no obra de Rorty. Ver a combinação da nota de rodapé 12 com a nota 15 do capítulo sétimo do livro citado acima.

outro, exibe certa insegurança ‘filosófica’ ao defender-se repetidas vezes de futuras acusações de esteticismo. Estas citações atentas garantem, para o bem ou para o mal, o viés filosófico do capítulo, livrando-o do rótulo de simples “crítica literária” feita de meros “julgamentos de gostos” sobre as formas de “expressão de sentimentos”291

.

A leitura de “1984” proposta por Rorty abraça a investida do livro contra as exigências soviéticas só percebidas muito depois de 1948 e reconhece a pintura de um personagem que ultrapassa a “retórica esteticista” de Nabokov, desdenha da “retórica da transparência” dos fatos simples para tornar opaca a “retórica da igualdade humana” de Stalin. Retórica292

em Rorty é termo que estigmatiza o que há para ser ultrapassado. Após “a Revolução dos bichos”, até o ano de publicação de “Contingência, Ironia e Solidariedade” (1989), Rorty considerava que nenhum panorama havia sido projetado com sucesso293 para os “tipos particulares de pessoas” que habitavam o 1º e o 2º mundos. Não só esta classificação parece defasada, mas a própria auto-descrição “provinciana” de Rorty exclui o Brasil desses países não-periféricos.

O panorama ainda ausente antes da queda do Muro de Berlin não se enredava pela comparação da redescrição de Orwell com a história política de então, e sim com outras redescrições alternativas insuficientes. Quando dois mais dois deixa de ser quatro, os símbolos não deixam de ser símbolos. Eis o drama imbutido na obra de Orwell: a humilhação reconhecida pelo torturado como algo distinto da tortura. O enredo de “1984” não atinge o clímax porque um personagem aceita que “2+2=5” e pede para que “ratos devorem o rosto” de sua amada. Orwell escreve e nos permite, de modo inédito, notar os efeitos simbólicos das sessões de tortura: impor uma linguagem incoerente que desarticule a linguagem privada do torturado.

A tortura passa. Se for bem sucedida, entretanto, manterá a lembrança da humilhação. Esta impede qualquer possibilidade de reintegração do indivíduo ao seu domínio de autocriação pela linguagem. A linguagem não deve ser entendida como

291

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 238.

292

Idem, Ibidem. p. 265, p. 287, p. 282.

293

RORTY, Richard. Contra os chefes, contra as oligarquias: entrevista a Derek Nystrom e Kent Puckett. org. Paulo Ghiraldelli Jr. e Alberto T. Rodrigues, trad. João Abreu. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

meio de acesso à consciência moral, à realidade, ao âmago da solidariedade; deve ser usada apenas como “alavanca”294 para crenças.

Rorty não defendia a verdade, apenas a liberdade de falar sobre a verdade. Exercer a fala livremente é tão importante quanto “fazer amor”. As diferentes manifestações do “instinto sexual” podem nos ensinar como são plurais as relações das pessoas com os vocabulários dos outros295.

Qualquer outra ideologia deveria ser rebaixada diante da fusão entre descaso para com o vocabulário pessoal e a curiosidade séria sobre os vocabulários finais dos outros. Com efeito, Rorty reduzia os processos de socialização ao histórico de palavras conhecidas por cada pessoa. Qualquer construção de mundos possíveis mais “livres” não deve seguir as pistas falsas do império da “Verdade296” como ela “realmente é”.

O pragmatista defendeu o “liberalismo político” sacrificando hipóteses de novos massacres de vocabulários pessoais. Nem a “filosofia grega”, nem o cristianismo, nem a “ciência moderna”, nem a “poesia romântica” puderam, mediante os talentos poéticos e “dons intelectuais” de seus arautos evitar as torturas de Auschwitz e a escravidão imposta por governos ditatoriais.

A “verdade” exerce sobre nós a mesma força que o “amor”, os “alimentos”, os “vírus”, os “cometas”: quanto mais “filosófica” ela pretender ser, mais será “inofensiva”. A verdade “acontece” como desobediências e frustrações acontecem: sem avisar. Ela, para o pragmatista, também “é uma questão de quem consegue matar quem primeiro”. Rorty, como bom retórico, guarda frases mais bombásticas e contundentes de sua utopia-liberal para as últimas linhas de seus trabalhos. A “capacidade de sentir dor” é a única ligação entre humanos.

No que mais interessa ao marco teórico da dissertação, pode-se concluir que alguns intelectuais “ironistas” podem ser bem sucedidos encarnando juristas auto- contidos pela legalidade mais ‘restrita’, enquanto que juristas ativistas podem se

294

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 294.

295

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 309.

296 Idem. p. 301. Sem dúvidas esta colocação ecoará no artigo de Ronald Dworkin “Objectivity and truth: you’d better believe it”.

revelar “metafísicos” no plano filosófico. Os exames político e filosófico das decisões jurídicas será tarefa posterior dos jurisdicionados.

Rorty não se dedica ao tema da interpretação na Jurisprudência, porque já situa “advogados” como atores anti-metafísicos. O ceticismo externo resta confirmado.