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A ironia na descrição predileta de si mesmo e a contingência da identidade

3. Organização e disposição deste trabalho

3.2 A configuração das posturas e atitudes de uma filosofia “liberal-ironista”

3.2.2 A ironia na descrição predileta de si mesmo e a contingência da identidade

É o movimento entre o comportamento lingüístico e o não-linguístico que seduz Rorty. Esse ir e vir cria um ‘protótipo de poder’ sobre a própria identidade pessoal. Rorty não se fixa no sentido fixo do poder como uma hybris central, contudo. A identidade não se estabiliza, ela só exibe protótipos condenados ao teste contínuo das ferramentas que emprega, a identidade só produz impressões de poder. No âmbito da pessoalidade, a noção de identidade como um ente não- lingüístico constitui poderosa fachada para a inflação do ‘eu’ e o esquecimento existencial da contingência. É a crítica da mente como espelho que permite Rorty complicar as esperanças da epistemologia.

Rorty leitor de Heidegger. Rorty abrindo um capítulo de livro com poesia sobre “clareza” para dizer que assim “formula com clareza o que queria dizer”. Ironia extrema254.

Tal estratégia retórica é imprescindível para o desfile da ironia rortiana. Ironia que depende da doação de detalhes para especificar as impressões concretas da identidade que dão vida às palavras. Antes de ser retratado na galeria de irracionalistas ou relativistas Rorty pode ser visto como um escritor que tenta ser impetuoso na criação inovadora de uma filosofia distinta255. A marca do talento como “paradigma da individualidade” pode ser estendida a todos os que escrevem?

Rorty aposta na resposta afirmativa: filosofias vitoriosas, teorias vitoriosas do direito, sentenças e acórdãos vitoriosos não prescindem dessas impressões de poder dos seus escritores sobre suas identidades pessoais.

A filosofia de Rorty quer unir ao paradigma da individualidade a solidariedade como tantas (inclusive como a de Dworkin). Adianta-se: é que o pragmatista não quer que sua filosofia se confunda com outras. Ele está atento às descontinuidades entre outras filosofias, mas do que às continuidades. Rorty, ex-filósofo-analítico. Rorty, ex-poeta-filósofo. O pragmatista não quer ser filósofo e poeta em livros distintos. Sobre Hegel ele escreve: “ele deu uma nova volta na mesma velha gangorra dialética”. Crítica ou elogio? Ironia.

A dissertação localiza Rorty na distinção que o próprio autor propõe: a filosofia se volta às continuidades entre os escritos que focalizam a “universalidade” que diminui a contingência; a poesia se faz pelo aumento da descontinuidade na particularidade do poeta (“autocriação”). A filosofia estigmatizou os poetas por sua ênfase nos seus próprios impulsos animalescos inconfessáveis não-essenciais. A poesia estigmatizou os filósofos porque estes escrevem demais sobre os detalhes das “condições de possibilidade da experiência” esquecendo que essa escrita já é experiência.

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RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.57.

255 O pragmatista se dirá “machucado” em função das acusações de “relativismo” e “irracionalismo”

em artigo autobiográfico. Cf. RORTY, Richard. Trotski e as orquídeas selvagens. In: Pragmatismo

e política. trad. e introdução Paulo Ghiraldelli Jr.; rev. Adriana de Oliveira. São Paulo: Martins,

Abandonar o que Nietzsche não abandonou: eis a tarefa de Rorty. Ele quer seguir com o “exército móvel de metáforas”, sem, entretanto, tentar ser o general que aniquilará a ‘verdade’ pela arma da “vontade de poder” do “além-do-homem”. Os detalhes dos poetas só provocarão mudanças se afetarem os detalhes do filósofos e vice-versa. Detalhes devem expor novas metáforas.

O direito pode sintonizar os contrastantes produtos da “inspiração” ocasional de indivíduos com as vontades por “verdades” de uma comunidade. Rorty não se interessa por esse conjunto de normas coercitivas. Ele trata desse “drama” entre linguagens novas e velhas na ciência, nas artes, nas religiões, na moral e na filosofia. Raramente se ocupará do direito, no máximo, tratará do pragmatismo jurídico. A capacidade emancipadora e conservadora da linguagem jurídica não afetam Rorty.

A linguagem jurídica não se distancia das outras linguagens, talvez porque estas diferentes distâncias sejam criadas pelos contextos dos seus usuários. As relações de força que situam a decisão jurídica e sua efetividade não estariam fechadas a qualquer metáfora nova pelos sentidos técnicos de expressões jurídicas.

O poder das metáforas de Freud256 é invocado para expor de modo novo a nossa exposição à contingência: um homem pode ser “um magistrado justo e moderado e também um pai frio e rechaçador”257

. Pode-se dizer: ‘um professor pontual e disciplinado pode ser também um aluno impontual e confuso’. Psicose, fobias, obsessões, manias, redes de complexos e decisões conscientes são “modalidades alternativas de adaptação” que não podem ser plenamente separadas como faculdades kantianas, tampouco podem ser sintetizadas como purificações platônicas.

A dissertação continua e desenvolve: não há paralelismo nas diferenças entre crime hediondo, crime, contravenção, infração administrativa e suas penas. Não há paralelismo entre os regimes de cumprimento dessas penas e os usos legítimos da violência que se efetivam na pena-de-morte, restrição de liberdade, restrição de

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Rorty opõe a “hoste de episódios idiossincráticos acidentais” que torna nossos estados conscientes apenas partes do “eu” à noção do cânone Platão-Kant que hipervaloriza um “self central” repleto de obrigações morais racionais. RORTY, Richard. Freud e a reflexão moral. In:

Ensaios sobre Heidegger e outros: escritos filosóficos 2. ed. 2. trad. Marco Antônio Casanova.

Rio de Janeiro: Relé Dumará, 2002, pps. 193-220.

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RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pps. 67-83.

crédito, legítima defesa, medida sócio-educativa e no ‘tapinha’ da mãe no filhinho desobediente. As incongruências invocadas apontam para contingentes visões do potencial de re-socialização apreciadas por um ‘eu’. Rorty insiste: não há um “eu central”. A dissertação aproveita e termina esse parágrafo: não há um “centro” na dignidade humana do ‘eu’.

Mesmo os termos que foram usados acima para compor cada ‘linha’ só foram inseridos na ‘linguagem jurídica’, seguindo essa perspectiva rortiana, porque conseguiram descrever detalhes concretos de nossas práticas que não se afiguravam aos redatores de diplomas legais anteriores.

No que toca ao marco teórico da dissertação, esse ressecamento do ‘eu’ defendido por Rorty, pode ser visto como a luta do professor norte-americano pela libertação de seu próprio “passado idiossincrático” dedicado a Platão. O pupilo de Sócrates está junto a Kant no topo da lista de autores a serem relidos pelo pragmatismo.

A separação entre “ética privada de autocriação” e “ética pública de conciliação recíproca” é ilustrada como pano de fundo inverso ao programa platônico, que unia os “papéis” da alma e do Estado.

Podem escrever sobre a ‘dignidade humana secularizada’ pensando em cidadãos que não mentem, cidadãos justos e cumpridores de normas jurídicas pela observação íntima e ao mesmo tempo racional do dever moral. Podem escrever sobre a dignidade humana como topoi para a instrumentalização do judeu pelo alemão. São diferentes consagrações da imagem impessoal do ser humano. O que Rorty chamará de tentativa de divinização de um “ser humano paradigmático”.

Pelo que se conclui, nenhum ser humano está livre da “fantasia” inconsciente e da “agonia” consciente que se apresentam pela contingência. Ela nos infantiliza e também nos torna maduros. A contingência não possui uma natureza intrínseca, ela se apresenta em símbolos de base fonética, nos bens que compõem um patrimônio, nas estantes dos livros, nos reflexos do espelho, nas fotografias, nos problemas dos filhos com os pais, nos prédios, nas queixas dos pais com avós.

As metáforas novas não exprimem um sentido novo para um sentido literal, as metáforas novas são apenas “causadas” também por outras ‘coisas’ do mundo ‘físico’.

Uma consideração crítica que a dissertação não concebe como negada por Rorty é a que não disfarça a apoteose do individualismo norte-americano na sua obra. Individualismo que preza pela liberdade máxima das fantasias individuais na esfera privada. A fantasia não se confunde com talento, pois o talento supõe uma avaliação pública dessa fantasia. A moralidade do “senso comum” seria uma fantasia idiossincrática compartilhada por força do acaso e por um contexto histórico plástico. Rorty não aceita, contudo, a identidade258 da esfera privada com a noção de ‘domicílio’ (oikos), tampouco a esfera pública será apenas a ‘rua’ (polis).

Quando o acaso une a nova fantasia de um indivíduo com a nova “necessidade pública”, a contingência apresenta metáforas novas como candidatas ao prêmio de metáforas favoritas. Nesse concurso de fantasias, nenhuma chance Rorty confere à descrição que pretenda ganhar a faixa de campeã ostentando a fantasia intitulada “Única Descrição Correta259”.

Ao sublinhar a possibilidade de “apropriação” de uma linguagem ameaçadora (que nos ataca) como instrumento de defesa, ou seja, invertendo uma situação de poder por via da linguagem, Rorty não pode evitar de ser chamado de retórico. A ênfase no papel defensivo do estudo dos meios de persuasão como estratégia de defesa é uma nota aristotélica que Rorty sem querer toca. Diga-se que sem querer, porque num momento seguinte do livro, ele cita em longa nota de rodapé um trecho de Harold Bloom sobre a o caráter redutor da Retórica260. Rorty segue Bloom e defende que o ‘máximo’ que um texto pode fazer é remeter a outro texto.

Rorty não defende uma linguagem totalmente metafórica pela vitória de uma cultura estetizada por “poetas fortes”. Por mais que a linguagem não seja um simples meio entre um eu e o mundo, ainda resta aos não-rortianos a comunicação inevitável pela interação de usuários de linguagens distintas na sociedade.

Metáforas novas permitiram Aristóteles se desenvolver por Hermágoras, e permitem que Otmar Ballweg influencie as metáforas favoritas de retóricos novos. Metáforas novas permitiram Richard Rorty se inserir na linha James-Peirce-Dewey

258

RORTY, Richard. Habermas, Derrida e as funções da filosofia. In: Verdade e progresso. trad. Denise R. Sales. Barueiri: Manole, 2005, p. 384.

259

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 83.

260

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 86, (nota 19).

ao tempo que permitem que outros protejam o pragmatismo clássico de neopragmatistas.

Metáforas novas permitiram Ronald Dworkin variar as “fantasias” do alemão Kant, descrevendo-as como necessidades públicas do estado democrático norte- americano.