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A retórica de Rorty redescreve a poesia de Dworkin sobre a justiça

3. Organização e disposição deste trabalho

4.3 A retórica de Rorty redescreve a poesia de Dworkin sobre a justiça

“So I find it hard to see what the force of the phrase ‘one right answer’ is supposed to be”339

Esta dissertação depende da hospitalidade para com a pequena epígrafe acima. Esta epígrafe também é a citação direta mais importante deste trabalho.

Mesmo que pudéssemos estar lado a lado com os dois autores, não poderíamos captar ou controlar os estigmas retóricos em ação na crítica de Rorty a Dworkin. Não é que Rorty esteja simplesmente correto, porque o cético externo feriu a tese de outro orador. É que a tese da “única-resposta-correta” correta germina novos estigmas retóricos ao ser tratada com a simplicidade presente numa “frase” qualquer de Rorty.

Quando tratou do tipo de leitura construtiva que poderia motivar as investigações dos ironistas-liberais, Rorty não só tentou desmistificar o que chamou de “Tribunal Internacional da Filosofia”, retratado em suas obras pelo cânone rortiano “Platão-Kant”, como mobilizou toda a força despendida em suas leituras para incluir outros personagens (jornalistas, romancistas, dramaturgos, políticos, sacerdotes, etc.) na tarefa de diminuir a crueldade em nosso tempo.

Sem hesitar, o pragmatista priorizava a atividade do crítico literário nessa missão, revelando nítido desencanto quanto à posição privilegiada dos filósofos no pódio de pensadores e demais escritores importantes. A cultura liberal deveria, para o professor de Stamford, insistir apenas em uma dicotomia: uso da força física

versus uso da persuasão.

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RORTY, Richard. O fim do lenismo, Havel e a esperança social. In: Verdade e progresso. trad. Denise R. Sales. Barueiri: Manole, 2005, pps. 282-301.

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RORTY, Richard. The banality of pragmatism and the poetry of justice. In: BRINT, Michael e WEAVER, William. Pragmatism in law and society. Oxford: Westview Press, 1991, p. 89.

Será que Rorty entendia a persuasão sem uso de força?

A própria tarefa de redescrição incessante invocada por Rorty na imaginação de novos mundos possíveis, dependente que era da intraduzibilidade de metáforas não-parafraseáveis, responde: “não”. O capítulo 3 concluiu, com segurança, que Richard Rorty abusava da retórica, esquecendo o papel “reduzido” uma vez conferido a ela pelo autor. O pragmatista, pelo contrário, só a ampliou, exercitando- se em ensaios que mesclavam teorias filosóficas com suas fantasias pessoais.

Como a epígrafe da página anterior movimenta os estigmas retóricos?

É o estigma retórico da sofística que se apresenta ao reduzir grandes teses a meras “frases”. É o estigma retórico do platonismo que ainda impele filósofos a escrever suas idéias mais preciosas, fragilizando-as pela agitação do mercado de idéias. É o estigma retórico do “sistema aristotélico” que permite uma tese sobre a decisão jurídica (como a de Dworkin) perpassar sistematicamente pela “política”, pela “ética”, pela “ciência” e pela “moral”. É o estigma retórico de Hércules que sobrevive ao situar frases de sua tese na pragmática de contextos discursivos (como no debate ora estudado), exigindo de cada emissor e receptor sua própria resposta correta às questões do pragmatismo. É o estigma da retórica jurídica que não se esconde ao costurar o tema da interpretação de normas jurídicas com o destino de nossa pele. É o estigma retórico da ironia de Rorty que nos lembra que nem tudo é retórica e que nem tudo é força, mas a retórica está em tudo que consegue ter força. O direito regula o uso da força física para controlar corpos. A retórica fere e germina a força das frases alargando de algum modo nossa liberdade.

Agora a análise crítica da intervenção de Rorty no debate.

Rorty abriu seu artigo, fazendo o que fazia de melhor: falando tanto dos contextos de autores de livros como das “idéias” defendidas por eles. Além disso, saltava rapidamente de nomes próprios para nomes próprios, sem pedir a confiança dos leitores para as notas de rodapé lançadas. São 49 notas para 6 páginas. Um bom número para quem era acusado de “irracionalismo”. Essas notas também permitiram participações no debate acadêmico. Ler Rorty é compreender que livros uma vez lidos aumentam nossa liberdade a ponto de provocar a confusão sobre os limites do “mundo dos livros”. Alguém poderia ficar tentado a crer que só existem “textos” e que “tudo é uma questão de interpretação”.

Abrindo sua fala, Richard Rorty aponta um livro de Thomas Grey, para justificar seu tema: foi a “teoria do direito de Holmes” que tornou o pragmatismo “banal”. A interpretação da “tradição” é componente da experiência que forma o direito, segundo a perspectiva pragmática. Esta tarefa do intérprete pode objetivar a coerência, mas nunca deveria olvidar as políticas públicas em nome da “Lógica”340. Rorty considera as insignes dessa banalidade as mais importantes da teoria seguida por bons juristas. Estes seguem a “teoria” do realismo-jurídico, que primou pela crítica ao formalismo no Direito.

Rorty escreve (como quem se espanta com a capa de um livro não lido) sobre a “insistência” de Dworkin em jogar “pragas” no pragmatismo para poder defender a tese da “única-resposta-correta” para questões jurídicas difíceis. A sentença que integra a epígrafe de Rorty neste item é justificada por ele, depois que considerou a “descrição” da tese de Dworkin sobre o direito-como-intetridade (Law as integrity) tendo em conta o direito repleto de “juízes-legisladores” de Benjamim Cardozo. Rorty só notou diferenças em “graus de elaboração” entre as duas teorias. Isto porque, quando Dworkin aceita que “única-resposta-correta” é apenas a resposta mais razoável que alguém supõe que uma controvérsia oferece, ele automaticamente aceita que grandes juristas podem discordar sobre tal razoabilidade. Tal moderação por parte de Dworkin salta aos olhos de Rorty como incorporação do pragmatismo e realismo jurídicos à sua tese mais polêmica e chocante. Ela é chocante e polêmica porque é extremamente ambígua.

Não agrada a Rorty a abordagem kantiana de Hércules. Ele leva à sério demais o receituário de John Dewey para notar distinções entre um Roberto Mangabeira Unger e um Ronald Dworkin. Foi este último que uma vez afirmou que os significados dos conceitos só recebem seus significados mediante o significado da “função que desempenham na racionalização, na argumentação e na formação da convicção”341

.

Rorty assevera que é o problema dos métodos científicos que interessa e fomenta a teoria jurídica. Superar as disputas em torno de uma “definição mais ampla do formalismo” jurídico, sejam elas disputas filosóficas/ideológicas ou sobre a

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RORTY, Richard. The banality of pragmatism and the poetry of justice. In: BRINT, Michael e WEAVER, William. Pragmatism in law and society. Oxford: Westview Press, 1991, p. 89.

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DWORKIN, Ronald. Pragmatism, Righ Answers, and True Banality. In: BRINT, Michael e WEAVER, William. Pragmatism in law and society. Oxford: Westview Press, 1991, pps. 366.

teoria geral do “método de justificação”, não implica, para Dworkin, o abandono de teorias, ou na perda do lugar privilegiado do filósofo do direito em prol dos interesses casuísticos de advogados egoístas. Este interesse, no caso de Dworkin, se volta para a distinção entre um “princípio unificado para a base da decisão judicial” e políticas públicas.

De acordo com Rorty, os diferentes vocabulários de Posner, Dworkin e Unger não exibem qualquer “diferença filosófica interessante” sobre o realismo jurídico ou sobre os Estudos Jurídicos Críticos342. As preocupações destes três autores com as mudanças mais urgentes a serem reivindicadas pelas instituições americanas soam como divergências políticas de diferentes “visionários” que já estão habitando o cenário projetado por Dewey. A simples possibilidade gerada pelo pragmatismo de “acomodar” estes três nomes próprios demonstra o seu sucesso e sua face mais “banal”. A banalidade do pragmatismo é prova de sua ampla aceitação.

Rorty joga os nomes de Michael Moore343 e Allan Bloom na contramão dessa banalidade para apresentar algumas adaptações no “novo” pragmatismo não notadas por Posner344 e pragmatistas não-assumidos como Dworkin. Primeira novidade do “novo” pragmatismo: conceber os problemas da “mente”, da “consciência” e da “experiência” como problemas da linguagem. Segunda: desconfiar da noção de “método científico”. Traduz-se esta desconfiança pelo apoio rortiano aos trabalhos de Thomas Kuhn345, Paul Feyeraband346 e Stephen Toulmin347. Rorty os cita, supondo que todos os (neo)pragmatistas, de fato, leram e se lembram das conclusões destes autores.

As conclusões dos trabalhos dos três, para o bem ou para o mal, deveriam desaconselhar qualquer novo projeto que tente atribuir fundamentos estáveis para as seguintes distinções: metódico e sem método, científico e não científico ou

342

GODOY, Arnaldo S. de Moraes. Uma introdução ao movimento Critical Legal Studies (CLS). Porto Alegre: Sergio A. Fabrisç, 2005.

343

MOORE, Michael. Interpretando a interpretação. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pps. 3-46.

344

POSNER, Richard. Problemas de filosofia do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pps. 263-350.

345

KUHN, Thomas. A metáfora na ciência. In: O caminho desde A estrutura: ensaios filosóficos. Trad. Cesar Mortari. São Paulo: Unesp, 2006, pps. 241-250. ; A estrutura das revoluções

científicas. Trad. Beatriz V. Boeira e Nelson Boeira. 9. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 346

FEYERABAND, Paul. Diálogos sobre o conhecimento. Trad. Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2001.

347

TOULMIN, Stephen. Lógica prática e lógica idealizada. In: Os usos do argumento. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pps. 209-300.

epistemológico e moral. Rorty quer mesmo celebrar a “culpa-teórica” e a “liberdade da ansiedade por cientificidade” no seu pragmatismo.

Como amante das “profecias” de Dewey, Richard Rorty quer submeter autores pragmatistas não-assumidos, seus livros e suas “idéias” aos testes de tentativa e erro, observando suas aplicações nas práticas do contexto cultural norte- americano. Esta vocação de observar falhas pretéritas do pragmatismo o tornaria mais apto a permitir novas propostas aos magistrados, através do corte de antigas “raízes filosóficas”, tais como o “positivismo analítico”, a velha “retórica da economia”348 fincada na simples eficiência, o dualismo entre razão e imaginação e a

cisão entre “ficção e realidade”.

Da metáfora da “raiz filosófica” desenvolvida por Rorty, conclui-se que nenhum alinhamento ontológico, epistemológico e axiológico poderá garantir que magistrados “sussurrem” uns aos outros os mesmos princípios para fundamentar suas decisões. Das raízes às árvores. Rorty esteve sempre mais atento ao “Dewey profeta” da esquerda e da democracia repleta de diferentes “árvores da floresta”349

. Sobre esta parte do trabalho de Dewey não permite Rorty qualquer resquício da banalidade” do pragmatismo. Ele considera que tais visões “não precisam realmente de suporte”, porque visões não carecem de suportes filosóficos no estilo de argumentos que tentam seguir pressupostos do discurso racional, no intuito de atualizar esperanças igualitárias.

Rorty eterno pupilo de Dewey, conclamava a áurea de seu mentor, para interromper a espera pelo acordo final sobre estes “pressupostos éticos universais”.

Depois destas palavras, pode-se, com as ressalvas do capítulo 3 deste trabalho, apresentar as respostas de Richard Rorty para a discriminação racial, para o tema do aborto e para “leis anti-sodomia”. Ele simplesmente considera a invectiva de Dworkin uma inútil tentativa de prever futuros “saltos na escuridão constitucional” por via de uma teoria geral “elegante” e “íntegra”.

É esta tentativa que Rorty chama de “nota kantiana” de Dworkin. Uma nota que soa poética ao seu modo particular. Uma nota que permitiu Rorty “compartilhar

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A expressão não é de Rorty. Ele invoca um trabalho com este titulo para contestar a confiança de Posner na “análise econômica do direito. Ver nota

349

Neste item da dissertação o paper de Rorty é analisado linha a linha. A exposição aqui feita, entretanto, não dá conta das sutis alusões que Rorty faz a pensadores diversos (Emerson, Russell, Heidegger) em paralelo aos contrastes que opera entre poetas como Keats e T.S. Eliot.

das preocupações de Dworkin” quanto ao teor “não principiológico” de muitas decisões de juízes pragmatistas confessos e pragmatistas que não sabem que decidem ainda seguindo o modelo de Oliver Wendell Holmes.

Para Rorty a própria “força filosófica” do pragmatismo americano foi absorvida por juízes, advogados, e professores de direito que já contribuíram com respostas para perguntas antigas sobre o “conhecimento”, o papel da “teoria” e o surrado tópico da “verdade”.

A força remanescente deste movimento está nas visões que os atuais envolvidos nos mesmos debates podem sugerir através da tarefa redescritiva incessante do ironista-liberal. Rorty sempre “lia” as conclusões de outros intelectuais como sonhos diferentes.

4.4 A retórica de Dworkin e sua “resposta correta” sobre a “verdadeira”