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3. Organização e disposição deste trabalho

3.2 A configuração das posturas e atitudes de uma filosofia “liberal-ironista”

3.2.1 A retórica na filosofia da contingência de Rorty

Graças à distinção entre sujeito que conhece e objeto que é conhecido, graças à separação entre as formas de entendimento e os conteúdos conhecidos, graças à distinção entre verdade descoberta e verdade inventada; a filosofia se

firmou como “super-ciência não empírica243” da negociação entre fenômenos e coisas-em-si. Dessa negociação temos recortes e nesses recortes encontram-se símbolos. O símbolo primordial para uns pode ser o símbolo “fato” ou a soma de outros símbolos como “faticidade incotestável da face de Deus”.

Para juristas que vinculam a correção da decisão a critérios extra-jurídicos ‘jusnaturalistas’ o símbolo central da atividade profissional é ‘Justiça’ ou a soma de outros símbolos como ‘a+decisão+foi+injusta’. Dworkin pode ser lido pelos símbolos ‘razão’ e ‘moralidade’. Rorty pelos símbolos ‘ironia’ e ‘utopia’. Esta dissertação pode ser lida pelos símbolos ‘retórica’ e ‘interpretação’.

A redução de nomes próprios ou trabalhos acadêmicos a simples trechos desconexos de palavras ou frases não se faz sem a oposição de “vocabulários” a vocabulários mais extensos. O vocabulário “inteiro” que se conhece de Rorty em oposição ao de Dworkin não poderá ser correspondente a um estado não lingüístico da ‘interpretação’. Essas linguagens alternativas não serão tornadas boas ou más pelo simples confronto delas com o M-U-N-D-O. O mundo não fala pela língua de Rorty, nem pela de Dworkin, nem pela língua desta dissertação.

O pragmatista sugere que o mundo é uma construção contingente dos jogos de linguagens feitas por diferentes vocabulários humanos. Os “mundos” então são reféns intercambiáveis de níveis multiplicáveis de retóricas produzidas diz a dissertação. Rorty combatia a possibilidade de que “uma” retórica de “estase” (retórica de paralisia, retórica escatológica) transformasse em meros expectadores os “agentes” da “jovial esperança”. Entenda-se por “esperança” o engajamento na “redescrição filosófica de ideais morais”, que era a principal ação de Rorty244

. Mesmo ações tais quais as dele não poderão, segundo o próprio pragmatista, completar, jamais, uma “façanha” que garanta um molde para o futuro que interrompa as “diferenças discursivas” constitutivas de consensos temporários.

Richard Rorty cita Quentin Skinner como historiador dos vocabulários supostamente condicionadores das frases e dos símbolos que as formam

243

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 27.

244 Rorty insistia na prática da redescrição substituindo palavras (“ele poderia ter-se expressado

melhor []”) ou conectando epígrafes de livros comentados (Humboldt, Mill, Whitman). Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na América. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr., Alberto T. Rodrigues e Leoni Henning. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, pps. 53- 60.

desprezando o título de uma obra interessantíssima245 de Skinner: Reason and

rhetoric in the philosophy of Hobbes. A pergunta de Skinner neste livro pode ser

assim apresentada: por que Hobbes “se conscientizou dos argumentos favoráveis à união entre razão e retórica”, se antes a repudiou abertamente em dois outros livros? Dito de modo mais direito: por que Hobbes voltou-se para a Retórica de Aristóteles? Tais perguntas não animaram o pragmatista a ponto de merecer comentários rortianos. Usaremos elas, entretanto, no capítulo 5.

De qualquer modo, Rorty sabe que as preferências pelos vocabulários disponíveis não se dá diretamente através de critérios objetivos (morais, científicos, religiosos, filosóficos, estéticos). Ele repete a característica agonística da linguagem quando cindida por diferentes usuários. Os seres falantes não poderiam jamais dominar completamente os vocabulários por uma única abertura glorificadora do dicionário. Rorty se contém em considerar as grandes “revoluções” científicas e políticas como mudanças de hábitos lingüísticos que costuram e rasgam os tecidos das linguagens alternativas.

Ele tenta nos persuadir a desistir de dominar o ‘mundo’ e de deixar-nos dominar por esse ‘mundo’. Não é preciso escolher entre subjetividade ‘arbitrária’ ou objetividade ‘racional’. É o próprio critério que tenta distinguir entre os dois pólos que deve ser esquecido. Todas as disjunções são inúteis? A argumentação de Rorty parece simplista aos mais apressados, todavia, é retoricamente preparada para esse escândalo, pois quer nos guiar ao impasse.

Tanto é assim, que Rorty justifica o uso das aspas como um caso especial de tradução, nunca como caso forte de explicação de uma oposição precisa entre termos pertencentes à linguagem natural. E assim, ele defende o “talento para falar de maneira diferente” como caso de tradução de mudanças culturais ocorridas pelo “bem argumentar246”. Este pseudo-elogio à retórica não poderá garantir qualquer

supremacia da retórica perante outras formas de racionalidade.

A filosofia edificante, para Rorty, deixa de ser uma enfadonha exposição de “prós e contras” de uma única tese, para ser uma recomendação de atenção (um grito de alerta) para com uma tensão entre vocabulários que rivalizam pela disputa

245

Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: UNESP, 1999, pps. 511-574.

246

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 32.

de termos. Essa filosofia holística, como pretende ser a de Rorty, não tentará ser a filosofia do último capítulo da história oficial da filosofia. Esta filosofia pragmática, como é a de Rorty, usa o atrito entre sentido literal e sentido metafórico como critério de classificação para reformulação de perguntas que afetem comportamentos não- linguísticos.

Não resta claro o sentido literal ou metafórico da expressão “comportamento não lingüístico” no livro de Rorty. Se a transformação de “novas instituições sociais” é um comportamento não lingüístico, como é possível entender a interação entre comportamento e “adoção” de novidades? Está Rorty a falar da linguagem não verbal como comportamento não lingüístico? Pode-se concluir pelo exemplo que o comportamento não lingüístico é um comportamento mediado ainda pela linguagem, contudo, uma linguagem que não problematiza a zona entre discurso retórico e não- retórico.

Um ótimo exemplo dessa ‘zona’ não-verbal está na surpreendente declaração de Richard Rorty na página trinta e cinco do livro ora estudado (segundo parágrafo) de que não oferecerá argumentos censurando o vocabulário que pretende “substituir”. Em “conformidade” com os preceitos da filosofia pragmática, Rorty decide não ser acusado de contradição performativa. Uma questão de coerência retórica ou de prestígio não-retórico? Poder mesmo247. Simples poder de escrever.

O poder de conectar a contingência da linguagem com sua leitura de Donald Davidson (autor que rejeitará tal leitura248), o poder de conectar a contingência da linguagem à contingência da consciência, para considerar metáforas mais ou menos úteis no desenrolar da moralidade contingente. Progresso em Rorty não significa avanço, nem profundidade alargada, apenas movimentação. Ele quer fugir dos “paradoxos” dos idealistas que falam em realidade versus desejo.

A linguagem deixa então de ser um meio de expressão ou de representação. Rorty não quer explorar apenas uma imagem para não exagerar na sua imagem das forças físicas dos usuários. Ele não quer recair na metafísca, por outro lado. Rorty

247

Em nota de rodapé Rorty isenta Davidson da super-interpretação que é feita ao tratamento dado à teoria do aprendizado do uso de metáforas. Cf. RORTY, Richard. Contingência, ironia e

solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 36.

248 Davidson evitará fugir de vocabulários antigos considerando a “verdade” um termo “cognitivamente

redundante”, porém dotado de função retórica na conversação. Cf. DAVIDSON, Donald. A verdade é o objetivo da investigação: discussão com Rorty. In: GHIRALDELLI Jr., Paulo (org.). Donald

escreve sobre o “eu” e o “mundo”, mas esquece que a retórica lida com orador e ouvintes. Rorty se engaja na luta do rebaixamento de temas sobre a verdade, sem atentar para um tipo especial de uso: o uso da verdade como verossímil no Direito. Esse descaso aparente é produto do ‘acordo prévio’ sugerido: Rorty já entende que juristas e filósofos já sabem que na “Jurisprudência” as “redescrições metafísicas” já não são feitas.

A linguagem é um termo que também não pode ser inflacionado pela retórica porque pretende sugerir uma mediação entre elementos dotados de uma natureza intrínseca. Em Aristóteles, a retórica deve estar a serviço da verdade também da defesa do Bem.

Sem dúvida, a retórica tem um papel mais ou menos definido em Aristóteles: o de manobrar pelo verossímil as categorias que retratam a visão metafísica do estagirita. Vimos isso no item sobre o Da interpretatione: só por acidente o retórico toca a ‘verdade’. Talvez a retórica jurídica não se atenha a essas naturezas, porque lida com as próprias crenças e desejos dos emissores e receptores de mensagens, distinguindo sentidos pessoais para termos e expressões dos sentidos “normativos”249

.

Das perguntas apresentadas como “inúteis” por Rorty, serão repetidas, aqui, duas250 que tocam o marco teórico da dissertação: “qual é o lugar do valor num mundo de fatos?” e “qual é a relação da linguagem com o pensamento?” A pergunta mais importante que alguém pode fazer para não expandir a “má-fama” da filosofia, no entender de Rorty, é: “nosso uso destas palavras atrapalha nosso uso daquelas outras palavras?”. São perguntas que afetam operadores do direito? Sim.

Em outras obras Rorty menciona a figura do advogado como alguém que já se decidiu por taxar a totalidade de juristas de pragmáticos. Deixemos a justificação dessa última colocação para o capítulo 4.

Por não enfatizar questões reducionistas típicas tais como: ‘o magistrado doutor em filosofia do direito ao decidir um caso deixa de ser cientista do direito?’ e

249

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Ed. 5. São Paulo: Atlas, 2007, (cap. 5).

250

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39.

‘o doutor grego em retórica jurídica dedicado exclusivamente ao ensino (e à produção de livros) que não freqüenta o fórum pode palestrar em congressos de matérias dogmáticas?’, Rorty pode ser subestimado como autor inútil para a ocupação do advogado, do magistrado, do promotor de justiça, do defensor público, do delegado e até do professor.

É a querela sobre o papel da doutrina dos que se sabem doutrinadores na relação das “fontes do direito”. Diga-se deste modo semi-redundante, porque professores de disciplinas ‘mais práticas’ e comprometidas com a mera reprodução ‘neutra’ e ‘desinteressada’ das normas estão também dizendo como as normas ‘devem ser entendidas’ ao tentarem descrever como elas ‘realmente são entendidas’ na prática251.

Rorty quer inventar novas ferramentas surpreendentes ao invés de prezar por termos como “significado” e “referência” (como se fossem termos não-linguísticos). Ele não nega sua influência ao incluir na linguagem os “resmungos, gaguejos, incorreções verbais, metáforas, tiques, espasmos, sintomas psicóticos, flagrantes de estupidez, tiradas geniais e coisas similares” (“Teoria passageira” de Davidson).

A linguagem é então uma ferramenta como outra qualquer, que nos auxilia no entendimento de nossas expectativas sobre a ação no ‘mundo’. É só testar o desacordo sobre suas utilidades e o acordo sobre o desuso.

Sendo assim, Rorty se sente à vontade para alinhar a história intelectual e os progressos morais à “história da metáfora”. A linguagem não é um fim-em-si-mesmo que expressa “profundezas” do eu, tampouco representa correspondências entre “fatos”. A linguagem simplesmente acontece... como discursos sobre revoluções científicas, discursos de Rorty, discursos sobre o caráter ‘alemão’ da filosofia, discursos sobre o papel da música na revolução cultural de 1968 nos EUA ou discursos sobre a ‘dignidade’ humana.

As metáforas poderosas não ocorrem pelo exame de antigos significados literais enfraquecidos, a metáfora irrompe também como produto de uma contingência não lingüística. Dominar o efeito surpresa das metáforas é um truque impossível. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que Rorty emprega termos caros à

251

Como se sabe, Dworkin acusado por Hart de ser um “nobre sonhador” por insistir numa teoria normativa, acusará a teoria hartiana, que se apresenta como “exercício de sociologia descritiva”, de incorrer no mesmo tipo de empreitada normativa.

retórica antiga sem comprometer-se com definições aristotélicas, como as apresentadas no De Interpretatione.

As ferramentas novas que são as novas metáforas só ganham serventia quando não imaginada anteriormente a própria serventia. Rorty mantém o tom davidsoniano para tornar opaca a linha que une o literal ao metafórico. A metáfora é dada pelo uso desconhecido de cada termo. O termo será metafórico, se, em um texto, se associar a um – traço252 -, uma marca, uma inversão imprevista (ʁ) ou uma

diGiTAçãO eStrAnhA. Nas conversações a metáfora surge como uma tapa no “rosto do interlocutor” ou como um perfume falsificado chamado “Metáfora” tirado do bolso e dado por um candidato sem motivo racional aos professores examinadores durante a argüição.

Pretende Rorty dizer especificamente que não há um único significado para esses gestos, especificamente porque são gestos maiores que sentidos literais conhecidos para seus comportamentos. A metáfora só é metáfora se for única, irrepetível e “não-parafraseável”, porque é um ruído “não familiar253”.

Tal consagração da metáfora não a associa gloriosamente ao “eu” do Romantismo ou ao à “ilusão” no sentido negativo dos platônicos. A literalidade não vinga como termo decaído da realidade “fora” de nós ou como simplificação da “realidade” velada dentro do “eu”. A literalidade é o “cadáver” da metáfora apenas nesses sentidos estritamente filosóficos, porque a relação entre sentido literal e metafórico não escapa da força do acaso, ou seja, é contingente.

Rorty está envolvido demais com essa contingência para não se comprometer com a retórica. Contingente seu envolvimento? Envolvimento retórico. Rorty tem com a filosofia uma relação retórica por excelência, porque gosta de diluir e dissolver questões sem resposta. A retórica cria a melhor interpretação possível de um autor e ao mesmo tempo cria a pior.

252 Perelman trabalha com o conceito de “noções-confusas” de F. Waismann para vincular o aspecto

determinado da noção de “justiça” às noções indeterminadas que produzem no presente resultados mediados pela confusão de conjuntos incompatíveis no futuro. Perelman vê o uso metafórico e analógico das noções como usos inevitáveis e não-regulamentáveis, conquanto esses usos obscureçam a própria noção para outros usuários. Cada usuário usa de um modo uma noção confusa, ao mesmo tempo, esse uso único deixa um “traço” na noção. Esses traços alimentam as zonas de determinação e de indeterminação das noções permitindo usos reiterados. Cf. PERELMAN, Chaim. e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pps. 147-160.

253

RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 50.

Se a retórica exibe essas interpretações como interpretações condicionais (se...), não se desligará de respostas. Apenas deixa ao encargo do público, do auditório, do leitor e do intérprete a resposta. Responde de um modo irônico a outras ironias. A retórica não exige tudo do intérprete, só a chance de persuasão. Antes de supor um auditório letrado, não esquece da advertência de Aristóteles quanto às ‘incapacidades’ dos membros do auditório de seguir longas ‘demonstrações’.

Tais incapacidades são valorizadas porque só assim não se cria uma situação retórica ideal. Rorty em várias passagens filia sua “teoria ironista” à “alta classe de letrados” das democracias. Esnobismo? Não. Se ele opõe o “senso comum” à sua proposta, entende-se o caráter que é atribuído por ele à retórica. Esta, ao contrário, habita e aceita o “senso comum”. Principalmente quando é retórica jurídica.

3.2.2 A ironia na descrição predileta de si mesmo e a contingência da