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Capítulo 2: Análise dos grupos identificados

2.3. A Financeirização do Cotidiano

Este grupo compartilha com a CSA referências essenciais à sua análise: atribuem grande importância a determinados autores pós-modernos, tais como Foucault e Deleuze, e a conceitos como a governamentalidade, tecnologias de controle e da subjetividade67. Divergem, no entanto, em termos do seu objeto central: a compreensão do novo lugar social assumido pelas famílias. A financeirização do cotidiano sugere a análise desse fenômeno como um processo que transcende o plano do econômico e do político, e que se coloca como uma nova forma do indivíduo de constituir a si mesmo (o self) num contexto histórico cuja novidade está na profundidade com que as finanças se introduzem na vida cotidiana. Em outras palavras, trata-se da compreensão do fenômeno da emergência do “sujeito investidor”. Parte de sua análise é constituída, assim como no grupo anterior, pela consideração do aspecto transformador determinante do plano do discurso. Preocupam-se com a descrição e análise de uma nova forma de subjetividade segundo a qual misturam-se cultura e economics, conformando uma sociabilidade financeirizada que tem, em seu centro, elementos como risco, rendimento, liberdade, segurança e consumo (Langley, 2007, 2008). O processo de financeirização altera de maneira profunda “[...] the shared fictions of social reproduction” (Haiven, 2014, p.5).

De modo geral, Langley (2008) e Martin (2002), principais referências e influências ativas dentro deste grupo, concordam que a financeirização gradativamente passa a se estabelecer como um instrumento – ou como tecnologia ou, ainda, dispositivo – especificamente neoliberal que atribui plenas responsabilidades ao próprio indivíduo no sentido de se estabelecer material e, sobretudo, simbolicamente. Isso ocorre, de modo mais acentuado, conforme o “economic fix” (Allon, 2010, p. 372) do Keynesianismo do pós-guerra é desfeito, permitindo que toda a estrutura formal que garantia direitos sociais a bens e serviços seja substituída pelos dispositivos (Haiven, 2014) neoliberais de mercado. Não apenas a forma de governança das maiores corporações muda, como principalmente a ampla gama de práticas populares cotidianas passa a estar ligada ao mercado financeiro global: pensões, compra de

67 Há ainda, vale dizer, a referência a categorias marxistas (Haiven, 2014; Martin, 2002), como valor, classe e capital fictício, porém, sob uma análise, em grande medida, foucaultiana.

carros, bens de consumo, viagens, empréstimos de todos os tipos, posse de casas e hipotecas (Allon, 2010).

As finanças deixam de ser, portanto, apenas uma forma de aplicar o dinheiro pelo qual se trabalhou, tornam-se uma forma de trabalhar a si mesmo (Martin, 2002, p. 34). Nesse sentido, Allon & Redden (2012) afirmam que

The new lending practices revealed the extent to which the everyday lives of individuals, including the bricks and mortar of the family home, had become integrated with the machinations of high finance (Allon & Redden, 2012, p. 379).

Segundo, ainda, estes autores, análises econômicas e políticas convencionais tenderiam a ignorar os comportamentos e práticas de consumo cotidianos das famílias, ou a vê-los apenas como determinadas pelas “transformations of capital”. Com isso, acaba por se reduzir o próprio objeto da análise (o papel do indivíduo e das famílias na financeirização) a um resíduo. Isso se deveria ao caráter excessivamente “mecanicista” de determinadas abordagens econômicas ou à leitura marxista materialista por parte de alguns autores (Allon & Redden, 2012). A financeirização do cotidiano, em contraste, propõe-se a analisar o caráter “popular” das finanças, isto é, o modo pelo qual o conjunto de símbolos e práticas financeiras adentra a casa das famílias de média e baixa rendas e, com isso, altera em definitivo a sua forma de subsistir e de se constituírem como sujeitos. Esse processo constitui um “invitation to live by finance” (Martin, 2002, p.3).

A literatura de financeirização do cotidiano pode ser compreendida como composta por dois grupos complementares. Um primeiro corresponde às publicações que procuram, de maneira mais direta, desenvolver a ontologia do cotidiano financeirizado, procurando analisar o processo de um ponto de vista bastante amplo, tais como em Martin (2002), Langley (2007, 2008), Allon (2010), Lazzarato (2009). Em particular, Haiven (2014) propõe-se, ancorado na análise foucaultiana e próximo de autores como Martin e Langley, a tratar das maneiras pelas quais as finanças – expressas em narrativas, valores, metáforas e técnicas – transformam a vida cotidiana, além de serem também afetadas por ela. Para o autor, todos os grandes problemas mundiais recentes “[...] can only be addressed in the financialized vernacular of the

market, and only in ways that do not threaten the short-term profitability of the financial sector” (Haiven, 2014, p.3). Com isso, “to the extent that we see ourselves as miniature financiers, investing in and renting out our human capital, we act, behave, cooperate and reproduce social life differently” (Haiven, 2014, p. 14).

Argumenta, ao longo de seu livro “Cultures of financialization”, que a análise da financeirização como fenômeno cultural e sociológico do capitalismo recente não pode ser definido ou “contido” em questões pontuais, sendo marcado por um “contágio viral e rizomático”68 que permeia toda a vida social. Por isso, procura considerar fenômenos

significativos em diversos âmbitos, iniciando sua análise pela consideração da relação metáfora/realidade e a maneira pela qual o “investimento” gradativamente “satura” as vidas pessoais com “ideias financeiras”. O mercado financeiro (expresso em seus ativos) coloca-se para elas, ele próprio, como uma “economy of meaning” (Haiven, 2014, p. 22) e ressignifica (simbólica e formalmente) para o trabalho a atuação de grandes corporações – tomando o Walmart como símbolo69. Ainda, a própria resistência à difusão da lógica financeira teria se constituído como um instrumento utilizado por ela: pela regulação estatal, que conduziria à inovação com novos tipos de ativos, ou pelo endividamento das famílias como forma de resistência à sua perda salarial real (Haiven, 2014, p. 185).

Um segundo conjunto, por sua vez, é compreendido por publicações que objetivam demonstrar de modo mais detido as maneiras pelas quais dinâmicas familiares essenciais são afetadas pela lógica das finanças, principalmente no que se refere às diversas formas (e razões) de aplicações da poupança. Como parte deste segundo grupo, pode-se elencar Allon & Redden (2012) que, sobretudo no longo contexto que conduz à crise de 2008, identificam a propriedade de casas – homeowning na “ownership society” de George W. Bush e no Reino Unido de Thatcher – como um fenômeno recente qualitativamente diferente de períodos anteriores. Segundo esses autores, constitui-se um “asset-based welfare”: o mercado imobiliário passa a ser alvo das aplicações das famílias – não mais pelo seu valor de uso – mas sim como fontes de segurança e de renda para a sua aposentadoria70. É formada gradualmente a figura do

homeowner, uma das formas do “subject investor”. Dizem: “[...] with these refashioned links between domesticity and subjectivity, the homeowner was increasingly expected to be acquisitive, aspirational, and financially competitive” (Allon & Redden, 2012, p.380).

Enfatizam, nesta questão, que “[...] it was not the home per se that was the focus of this moral

68O conceito de “rizoma” é retirado de Deleuze e Guattari (1998). Inspirados pelo termo da área da botânica - que se refere ao caule subterrâneo a partir do qual são gerados muitos ramos e raízes -, os autores utilizam-no para se referir a um dispositivo que “[...] ceaselessly establishes connections between semiotic chains, organizations

of power, and circumstances relative to the arts, sciences, and social struggles” (Deleuze & Guattari, 1998, p. 7).

69 Essa escolha se dá pelo seu impacto no mercado de trabalho (trata-se do maior empregador privado do mundo), no volume de oferta de mercadorias, além de sua profunda influência sobre a rotina e cultura de milhões de cidadãos internacionalmente.

70Em outras palavras, essa nova categoria de welfare aparece, do ponto de vista das famílias, como uma “solução” privada à perda de acesso ao fornecimento público de bens e serviços.

economy; it was the transformed home, the made-over home and, most importantly, the home ‘bought low and ‘sold high’” (Allon & Redden, 2012, p. 382). O resultado desse fenômeno,

exacerbado pelo estouro da crise de 2008, é a maior instabilidade macroeconômica, uma vez que parcelas relativamente grandes da população passam a consumir menos como função de suas rendas e mais pelo efeito-riqueza de sua posse – e de suas dívidas contraída para esse objetivo – de rendas imobiliárias.

Langley (2004), por sua vez, procura situar a causa (e os resultados subsequentes) da crise de 2001 como também uma manifestação da financeirização do capitalismo anglo- americano. A causa da crise está, argumenta, nas práticas de investimento de fundos de pensões – e não em eventos anômalos ou em coincidências de conjunturas improváveis (“a

perfect storm”). Essas instituições, com maior destaque a partir da década de 1970, passam a

admitir maior risco associado às suas aplicações, sobretudo pelo aumento da inflação observada na economia norte-americana, o que reduz o rendimento real dos títulos públicos do Federal Reserve. A mudança de tal estrutura de aplicação deve-se, segundo o autor, e de maneira compatível com a ênfase do poder transformador das narrativas, também às “teorias modernas de investimentos” surgidas em universidades americanas e inglesas e propagandeadas por consultorias, mídia e instituições do mercado financeiro.

Meanings attached to equity investment practices by pension funds that previously focused on avoiding the corrosive consequences of inflation for fixed-interest investments were jettisoned. Not only does the discourse of asset management suggest the need for a diversified portfolio of pension fund investment but, on the basis of comparative historical analysis of risk and return, also tends to assert the primacy of equity investment (Langley, 2004, p. 544).

Os maiores fundos de pensão foram responsáveis pelos processos de downsize &

distribute (Lazonick & O’Sullivan, 2000) da década de 1980, além de direcionarem grande

volume de recursos para os “mercados emergentes” e para a “nova economia” na década seguinte. Esta última teria sido um período de excepcional otimismo – convertido em uma enorme bolha – baseado na crença em favor da “indústria do conhecimento” e “da informação”71. Já ao longo dos 2000, esses fundos adquirem características contraditórias em

que, se por um lado são conservadores ao preferirem “marcas conhecidas” para suas aplicações,

71 Nesse quesito, o artigo de Feng et al.. (2001) situam-se, pelo seu objeto de investigação e abordagem, entre o grupo CSA e a financeirização do cotidiano aqui apresentada.

por outro tornam-se especulativos por seguirem “modas” do mercado financeiro sem profundas avaliações técnicas. Além do padrão crescentemente favorável ao risco, essa transformação é manifestada pela composição das modalidades de pensão, que passam a privilegiar as “defined

contributions” (DC) – em que o trabalhador recebe de acordo com a sua contribuição – em

detrimento das “defined benefit” (DB) – nas quais o benefício é concedido em função de um valor absoluto final ou calculado com base no tempo de serviço. Segundo o autor, assim, a financeirização – causa de crises como a dos fundos de pensão nos EUA e Reino Unido – deve ser entendida também como um conjunto de processos constituídos, na prática, por discursos de economia. Para ele, “the current crisis is not simply a crisis of DB schemes, but a crisis of

the place of stock market investment in saving for retirement” (Langley, 2004, p.554). Em

outras palavras, no esquema DC,

The individual worker is responsible for deciding the scale of their contributions and between investment options and ultimately bears the risk that returns may not be sufficient to provide for their retirement income (Langley, 2007, p. 78)

Outro elemento comum às leituras da financeirização do cotidiano – também característico da abordagem CSA – é o destaque à educação financeira (financial literacy), como programa de firmas de consultorias e como políticas públicas de educação, na formação do “sujeito investidor” (Langley, 2007). O discurso aparece como uma solução à “financial illiteracy” dominante na população em geral e que seria capaz de elevar a performance econômica com resultados socialmente responsáveis. Significa, assim, diretrizes – ou promessas – gerais, que traduzem para os cidadãos as relações entre riscos financeiros (assumidos) e o prêmio por “embracing the risk”. Para os autores desta abordagem, trata-se de um processo de formação ideológica de investidores (Greenfield & Williams, 2007)72 que busca algum respaldo empírico, mas que não depende dele para sua introjeção na mente dos sujeitos.

Em suma, este grupo ocupa-se de analisar as fluidas relações de causalidade entre a materialidade e subjetividade características da financeirização da economia e, mais do que isso, da vida social e cultural. Como resultado da influência profunda e generalizada das finanças, a vida cotidiana passa a ser quantificada e ter sua performance medida, em grande

72 Embora nem sempre explícita em sua análise, a formação subjetiva tratada depende do processo de perda de direitos trabalhistas e sociais e de redução do salário médio real.

parte, pelo sujeito que, “responsável pelo próprio destino”, assume riscos com o objetivo de suprir suas necessidades materiais e de afirmar suas qualidades sociais e pessoais.