• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: Análise dos grupos identificados

2.4. A Geografia Econômica da Financeirização

Para além das abordagens anteriormente tratadas, há um outro grupo de acadêmicos que se propõem a realizar contribuições à literatura sobre financeirização, agora na área da geografia econômica. Esses autores passam a atribuir grande importância teórica e empírica ao conceito de financeirização após o estouro da crise do subprime nos Estados Unidos, que se espalha de maneira profunda e desigual para o sistema econômico-financeiro e urbano da grande maioria dos países. De modo representativo, French et al.. (2011) afirmam que

“[...] the financialization literature in general has tended to treat the corporation as a subnational space within which the generalized pressures of financialized capitalism are most readily expressed, which understates the manner in which the ‘geographies of financialization and shareholder value … unfold in uneven ways across the range of interdependent, social constructed, and contested scales’ (Pike, 2006: 206)” (French et a, 2011, p.808).

Contestam O’Brien (1992), que argumentou pelo “fim da geografia” (para mercados financeiros, negócios e economia em geral) (Pike, 2006; Wainwright, 2012). Por isso, este grupo procura demonstrar a necessidade e relevância de análises acerca de características das geografias locais, em particular, em sua interação com a tendência “homogeneizadora” das finanças (Aalbers, 2015). Nesta questão, autores como Lee et al.. (2009) atribuem a pouca atenção dada às “geografias como circuitos de valores” e à spaciality do money and finance como resultado da fragmentação do discurso acadêmico e práticas empresariais, que atribuiriam ao setor financeiro características apolíticas e exclusivamente técnicas.

Pode-se agrupar as contribuições da geografia econômica em dois grupos principais73. Um primeiro conjunto de textos tem como objetivo central a avaliação crítica – em geral, a partir de referenciais da geografia econômica e, em menor grau, de contribuições como Krippner (2005) e Froud et al. (2000) – da literatura já relativamente consolidada sobre o tema da financeirização, apontando ausências analíticas críticas referentes à questão geográfica do

73 Vale ressaltar, esta separação é meramente esquemática. Os textos, em sua maioria, apresentam elementos teóricos e empíricos de forma complementar.

fenômeno. É necessário, para estes autores, renovar o conceito introduzindo elementos da “geografia do dinheiro e das finanças”. Um segundo grupo, por sua vez, procura analisar a dinâmica das cidades e políticas urbanas de desenvolvimento resultantes de um longo processo de crescente influência das finanças e que culmina numa crise sistêmica profunda, no centro da qual está o mercado imobiliário de hipotecas locally embedded que se converte num elemento relevante dos mercados financeiros globais.

De maneira representativa para o grupo de autores que se propõem a realizar avanços teóricos, Pike & Pollard (2010) argumentam que o processo de financeirização representaria uma oportunidade analítica de estabelecer as finanças como componente central da abordagem da geografia econômica74. Para eles, a financeirização

[...] is broadening and deepening the array of agents, relations, and sites that require consideration in economic geography and is generating tensions between territorial and relational spatialities of geographic differentiation. (Pike & Pollard, 2010, p.29)

French et al.. (2009, p.289) afirmam, no mesmo sentido, que “money and finance does

not just have a geography, it is inherently geographical, and money and finance have evolved as a technology for bridging space and time”. A financeirização, que teria culminado e

permanecido após o estouro da crise do subprime, seria “a crisis of financial space”. Esse processo, conduzido nos “grandes centros financeiros”, teria o objetivo de atrair grandes volumes de capitais para si, teriam buscado desregulamentar seus espaços locais para criar vantagens monetárias e estratégicas aos ingressantes (Fernandez & Aalbers, 2016).

Segundo autores como Aalbers (2009a), como efeito de abordagens cujos focos são instituições globais, tais como investidores institucionais, e pelo recorrente argumento das finanças como forças que tenderiam a reduzir o elemento analítico “local”, a literatura de financeirização, em sua maioria, tenderia a tratar o fenômeno de forma indiferenciada em termos de seus efeitos sobre diferentes regiões do sistema. Para French et al... (2011), a reformulação do conceito de financeirização requer a consideração de elementos essenciais e complementares, tais como uma profunda análise da economia política do dinheiro, finanças e neoliberalismo; a necessidade de compreender e analisar a interação de sistemas e instrumentos financeiros internacionais e locais; além das causas e consequências espaciais desiguais do

74

Argumenta-se, portanto, que é necessário introduzir uma análise geográfica à financeirização, ao mesmo tempo em que o próprio elemento “dinheiro e finanças” deve passar a ocupar maior destaque nas abordagens da geografia (Lee et al.., 2009; Pike & Pollard, 2010; French et al.., 2011)

fluxo de fundos75. Neste último aspecto, em particular, argumentam haver uma necessidade teórica urgente de abordar a financeirização como um fenômeno que se refere ao modo pelo qual “[...] credit, leverage, financial speculation and financial engineering act to displace in

time and across space, the contradictions of contemporary Anglo-American capitalism”

(French et al.., 2011, p.812).

Coloca-se, assim, a financeirização como um processo que, não apenas interliga diversos agentes espacialmente distantes, mas também que reconfigura social, econômica e espacialmente os agentes econômicos, práticas financeiras e articulações dentro do mercado financeiro (Pike & Pollard, 2010); além de ser caracterizada como uma tendência que permite interligar espaços locais com o processo geral de acumulação e movimento de capitais.

O segundo grupo, composto pela financeirização como um fenômeno urbano e, em particular, referente ao direito social à habitação, apresenta algumas influências seminais comuns. Pode-se destacar o papel fundamental de autores como Harvey (1975, 1982, 1989) e Lefebvre (1970, 1991), que teriam se ocupado da crescente necessidade e importância para a acumulação capitalista das cidades como ambientes físicos e delimitados (physical

landscapes), cujo crescimento passa da expressão dos produtores industriais para a expressão

do poder das finanças. Trata-se de uma fundamental contradição, segundo esses autores, o capitalismo se apresentar como um sistema baseado na expansão e valorização perpétuas e que, ao mesmo tempo, cria as cidades, loci fisicamente delimitados de polarização e agitações.

Esse subgrupo procura, de modo geral, avaliar o funcionamento desse novo significado econômico e social do housing urbano. Como argumentado por Rolnik (2013),

[...] the new paradigm was primarily based on the implementation of policies designed to create stronger and larger housing-based financial markets, to include middle- and low-income consumers (Rolnik, 2013, p. 1059).

Identificam a transformação da atuação do Estado – de seu formato de “Welfare” para a sua versão “neoliberal” – em geral e, em particular, referente à cidade como um componente central à financeirização, acompanhado pelos novos instrumentos financeiros, novas formas de investimento, geração de empregos e competição na indústria e novos tipos de crédito para famílias. Seu foco, portanto, recai sobre os:

75

De maneira análoga, Pike & Pollard (2010) afirmam que análises da financeirização devem passar analiticamente pela proliferação dos grandes intermediários financeiros (que crescem em escala e escopo); pela questão da elevação geral do ‘risco’ e da ‘incerteza’ sistêmicos e volatilidade dos preços dos ativos; além da financeirização referente ao ‘social, espacial e político’ desigualmente distribuído.

[...] developments since the 1970s, as the post-Bretton Woods period can, arguably, be considered the era when financialized globalization came about in earnest. Taking seriously this new articulation of world cities under financial globalization, however, ultimately begs the question to what extent there are continuities and discontinuities in the role of world cities in accumulation processes in the longue durée (Bassens & van Meeteren, 2015, p.767)

Apoiados em Harvey e no conceito do “circuito secundário do capital”76 (Rutland,

2010; Torrance, 2008; Bassens & van Meeteren, 2015; Rouanet & Halbert, 2016) – argumentam que o mercado imobiliário “[…] is permeated by significant contradictions and

irrationalities that reflect the disruptive and unstable financial process of transforming illiquid commodities into liquid resources” (Gotham, 2009, p. 357). O processo de securitização – tido

como o “componente crítico” da financeirização – passa a ser compreendido, nesse sentido, como uma inovação que cria liquidez e mobilidade a partir de elementos espaciais fixos, i.e., permite a geração e circulação de recursos a partir de elementos geograficamente distintos que, a princípio, seriam de difícil comparação. Nesse sentido, as residential mortgage backed

securities (RMBSs)

[…] are by nature much more transparent than mortgage products in the primary market. Local knowledge, which is so important in the primary market and a barrier to foreign mortgage lenders, is much less important in the secondary market because products have been standardized and made more transparent to make them more interesting for investors (cf. Clark and O’Connor, 1997). Investors in return, have the ability to compare the price, risk and expected profitability of RMBS between countries, but also to compare them to other possible investments (Aalbers, 2009a, p.403)

Alguns autores ocupam-se, nessa abordagem geográfica da financeirização, de analisar seus mecanismos formais e informais em cidades e regiões específicas – demonstrando suas especificidades e sua adequação ao fenômeno de fundo. Weber (2010) procura analisar a forma pela qual instituições do mercado financeiro internacional se inserem nas finanças públicas de governos locais nos Estados Unidos77. Utiliza o caso emblemático (e extremo) da cidade de Chicago que, entre 1996 e 2007, subsidiou projetos de desenvolvimento urbano com o

76 Harvey (1985) utiliza os conceitos de “circuito primário”, referente aos movimentos de capital na esfera da produção de mercadorias, e de “circuito secundário”, que se refere aos investimentos em terra, imóveis e “housing”. Este segundo configura-se, para este grupo de autores, como um conceito importante para a compreensão da dinâmica urbana de propriedade e políticas de habitação.

77

Para o autor, o grau de financeirização das políticas públicas é refletido “[...] in the increase in municipal debt,

the privatization and securitization of public assets, the size and scope of the financial services available to city governments, and the investor-orientation of critical collective consumption decisions” (Weber, 2010, p. 252).

instrumento Tax Increment Financing (TIF). A TIF permite que os direitos aos impostos futuros de determinada localidade definida para revitalização sejam transformados em títulos e vendidos ao mercado; com isso, o poder público local seria capaz de “arrecadar fundos” sem incorrer em maiores déficits orçamentários. Com isso, segundo o autor, a securitização do financiamento dos governos locais – de forma desigual dada a diminuição das obrigações federais de provisão de serviços e bens públicos – teria sido responsável por passarem de simples “general obligation bonds” para adicionarem “[...] risk-laden instruments to their debt

portfolios, including variable rate debt, interest rate swaps, auction bonds, and derivatives— often with disastrous effects” (Weber, 2010, p. 256).

Em sentido semelhante, Torrance (2008) procura demonstrar que a provisão de infraestrutura urbana vem passando, em ritmo acelerado, da responsabilidade dos poderes públicos para o capital privado (financeiro) em nível global. A transferência de responsabilidade é entendida como a financeirização da infraestrutura urbana, com o caso da privatização da Highway 407 de Toronto (Canadá) como exemplo significativo. Com ele, o autor procura demonstrar a interação de um grande banco internacional de investimentos (Macquarie Bank) altera (e, em parte, se conforma) com a legislação, governo e atores locais e cria uma nova “governança glocal”: em que os produtos e serviços providos são de propriedade de agentes globais e submetidos às leis e dinâmicas locais. Assim, para ele

If the perspective of financial institutions is recognized in these reconfiguring urban landscapes, financial institutions are interlinking the geographically diverse assets into global or regional portfolios at the international level as financial institutions’ specialist funds have expanded to comprise international portfolios of roads, airports and utilities.” (Torrance, 2008, p.17)

Newman (2009) sugere que os empréstimos subprime securitizados do mercado hipotecário norte-americano devem ser analisados como componentes principais da financeirização da economia, sobretudo ao longo dos anos 2000. Esse processo é iniciado já na década de 1980 com reformas como o Secondary Mortgage Market Enhancement Act, o

Financial Institutions Reform, Recovery and Enforcement Act e o Tax Reform Act, que, de

modo geral, aprofundam o mercado secundário de títulos norte-americano e criam incentivos fiscais para que as famílias apliquem seus recursos no mercado financeiro78. Para a autora,

78 Gotham (2009) chama atenção para o papel do Office of the Comptroller of the Currency do Tesouro norte- americano – graças ao qual subsidiárias de bancos deixariam de estar sujeitas às regulações estatais - e do

paulatinamente “as finance has become a more significant component of the US economy, the

state and the ‘Street’ have shared a common interest in financial services sector growth”

(Newman, 2009, p. 315). Com isso, ela procura analisar o processo dos “empréstimos predatórios” concedidos pelos bancos aos cidadãos de baixa renda e investiga os casos de despejos familiares em diversas cidades norte-americanas79.

De maneira complementar ao subconjunto de textos que analisam as manifestações da financeirização em território norte-americano, outros autores como buscam considerá-la em países da Europa continental e Reino Unido. Concordante com os autores anteriores acerca da financeirização – expressa na globalização e liberalização comercial e financeira – como uma agenda neoliberal, Aalbers (2009b) argumenta que os mercados de hipotecas dos países da Europa permanecem altamente nacionais (relativamente distantes entre si). Para ele, não há uma anulação do local por uma europeanization, mas sim “sobreposição das regulações existentes, adicionando camadas e reestruturando regulações nacionais” (Aalbers, 2009b, p. 391). O autor chama atenção para casos extremos, como o da Itália – país de alta renda média com um pequeno mercado hipotecário – e da Holanda – economia “pequena” que apresenta uma grande participação desse mercado em relação ao seu PIB. Esses países seriam casos representativos no contexto europeu de economias e estruturas bastante diversas que apresentam, no entanto, certa tendência de convergência de seus marcos e normas regulatórias80.

Avaliando o caso do Reino Unido, diversos autores procuram analisar os mecanismos (e resultados) da financeirização referentes à forma dominante de consumo, propriedade e concorrência. São avaliados casos como o fechamento de uma tradicional cervejaria ao norte da Inglaterra – a Vaux Brewery em Sunderland – cujas causa seriam pressões vindas do mercado financeiro e com resultado de perdas de milhares de empregos (Pike, 2006); o mercado especulativo “buy-to-let”, cujos objetivos são ganhos de capital via propriedade de imóveis (Leyshon & French, 2009). Montgomerie & Büdenbender (2014), por sua vez, analisam a dinâmica do mercado imobiliário do Reino Unido de forma ampla, argumentando que a sua financeirização e os ganhos realizados a partir dela representam “a one-off wealth

contabilizassem suas compras de títulos subprime como incentivos à propriedade de casas entre famílias de baixa renda.

79

A conclusão da autora é diretamente concordante com a de Rolnik (2013), segundo a qual o mercado, deixado livre de regulações, não é capaz de fornecer adequadamente casas para a maioria da população.

80 Segundo o autor, é possível conceber processos pelos quais marcos regulatórios de diferentes países aproximam-se (ou padronizam-se) sem que isso, no entanto, constitua “globalização”.

windfall to particular (lucky) groups within society” (Montgomerie & Büdenbender, 2014, p.

387)81.

Nesse sentido, vale ainda ressaltar trabalhos como Savini & Aalbers (2016) e Kaika & Ruggiero (2016) sobre a financeirização dos projetos urbanos em constante revisão e da constituição de conflitos e alianças (entre elite, sindicatos, governança local) no processo em que a terra se torna um ativo financeiro em regiões da Itália; na França, Guironnet et al.. (2016) questionam o espaço de manobra para políticas urbanas de governos locais que, em diversos casos, objetivam realizar projetos que não estão em consonância com grandes instituições financeiras; Coq-Huelva (2013) e Palomera (2013), no caso espanhol, chamam atenção para o papel desempenhado pelos maiores bancos e complexo financeiro no processo de securitização do mercado hipotecário, que penalizou as famílias de média e baixa renda e “[...] not only

promoted a dramatic growth in new houses but also exerted an increasing pressure on city councils that in turn had an effect on the overall structure of the state.” (Coq-Huelva, 2013,

p.15).

Em suma, o plano geral da literatura de geografia da financeirização revela um conjunto de autores e textos que procuram enfatizar mecanismos e resultados da interação de elementos específicos – agentes, leis, instituições, convenções – com fenômenos gerais, como a financeirização. Suas análises procuram avaliar, com isso, o impacto do crescimento das finanças – entendido e medido de diferentes formas – e de outros fenômenos relativamente recentes, como a securitização de dívidas, sobre a sociedade urbana (espacial e economicamente). Para eles, a financeirização da infraestrutura e das políticas de desenvolvimento urbano significam uma permanente relação de cooperação e tensão entre unidades contraditórias, como o privado e o público, o local e o global ou interno e o externo. O resultado, considerado em suas formas específicas, tende a ser o agravamento dos conflitos entre classes (em termos de renda e acesso à moradia), elevação da instabilidade e da incerteza sistêmicas.