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Capítulo 2: Análise dos grupos identificados

2.5. Financeirização das commodities

Por último, cabe aqui elencar um grupo de expressão relativamente marginal no plano geral da literatura de financeirização, mas que se apresentam de modo recorrente no tema além

de se destacarem de modo marcante, sobretudo no que se refere ao caráter mainstream de suas análises82. Trata-se do conjunto de autores que procuram situar a financeirização como um

fenômeno relativo à produção e comércio de commodities, sendo caracterizada pela importância crescente de agentes e instituições financeiras neste mercado e pela elevação da volatilidade dos seus preços. Este cluster pode ser decomposto em duas linhas principais dentro do tema das commodities: uma primeira procura investigar os mecanismos pelos quais as instituições e instrumentos financeiros passam a influenciar a estrutura global de propriedade e usufruto comercial das terras agrícolas (farmlands) com seus efeitos sobre o “corporate food

regime”83 (Edelman et al.., 2013; McMichael, 2012; Fairbairn, 2014; Clapp, 2012, 2014)84; um segundo subgrupo é referente a investigações acerca da constituição e dinâmica dos índices de

commodities e do papel de atores financeiros de postura predominantemente especulativa sobre

esses preços (Irwin & Sanders, 2011; Tang & Xiong, 2012; Cheng & Xiong, 2014; Silvennoinen & Thorp, 2013; Adams & Glück, 2015). Estes sub-grupos guardam relações próximas em termos do objeto por eles tratado – inclusive conferindo destacados papéis aos agentes “hedgers” e aos “especuladores” – mas divergem em termos conceituais, abordagem e conclusões.

O primeiro grupo ocupa-se especificamente de analisar a dinâmica dos alimentos (dentro da categoria de commodities) e terras agrícolas, além do impacto da dinâmica de décadas recentes de seus preços sobre as famílias de rendas média e baixa. Referindo-se à conceituação de financeirização de autores como Arrighi (1994) e Krippner (2005)85, esse sub-

grupo identifica uma mudança na estrutura do capitalismo global, segundo a qual políticas econômicas de ordem neoliberal seriam as maiores responsáveis pelo encolhimento geral das funções do Estado e por conferir aos mercados privados – com ênfase no crescimento do mercado e instituições financeiras – a primazia de determinar a dinâmica do mercado de alimentos.

82 Isto é, trata-se de um grupo de autores que, apesar de internamente divergente, pode ser entendido como uma

exceção a ideias como as de van der Zwan (2014), segundo as quais qualquer conceito de “financeirização” carregaria uma heterodoxia “inerente”.

83 "[...] the ‘food regime’ can be considered to be simply an analytical device to pose specific questions about the

structuring processes in the global political-economy, and/or global food relations, at any particular moment. Here the ‘food regime’ is not so much an episodic structure, or set of rules, but becomes a method of analysis"

(McMichael, 2009, p.148) 84

Vale ressaltar, parte relevante dos trabalhos deste subgrupo foi publicada pelo Journal of Peasant Studies, que possui alto “fator de impacto” (avaliado em 4.149 em 2016, fator que o coloca dentre os 10% mais destacados segundo esse critério).

Como efeito da “crise de acumulação” – expressa nos preços de alimentos, energia e finanças – os mercados financeiros teriam passado a gravitar em torno da agricultura como um “porto relativamente seguro” para aplicações financeiras (McMichael, 2012) e por vê-la como uma forma de hedge contra inflação. Essa “afinidade” crescente entre as finanças e a dinâmica das farmlands torna tênue a distinção entre a “economia real” e a “economia financeira” (Fairbairn, 2014; Isakson, 2014). Fairbairn (2014), em particular, chama atenção para o caráter

dual da terra agrícola como ativo produtivo e, ao mesmo tempo, financeiro. Para ela,

Rather than a situation in which land is treated as a pure financial asset, land’s financial qualities are increasingly valued but not necessarily divorced from its productive qualities. We may be seeing the emergence of a new type of financialization for an era of growing resource scarcity – one in which farmland’s role as a quasi-financial asset will be even more prominent (Fairbairn, 2014, p. 15)

Nesse sentido, a autora se aproxima de McMichael (2012), para quem a financeirização representa uma mudança estrutural na estrutura de propriedade, produção e comércio internacional de alimentos. Trata-se de uma “agro-industrialização” do regime alimentar baseada na grande propriedade e grandes corporações – em detrimento do pequeno agricultor de menor escala. Nesse regime, mecanismos legais e de comércio (como propostos pela Organização Mundial do Comércio, OMC) induziriam o “universal agro-exporting” e países em desenvolvimento a abrir suas economias para o comércio “dominado pelo hemisfério norte” (McMichael, 2012)86, eliminando proteções aos setores agrícolas nacionais e adotando proteções de propriedades intelectuais.

Isakson (2014) procura demonstrar que a financeirização teria conferido destacado papel às grandes firmas varejistas de alimentos, sobretudo a partir da década de 1990, como atores “dominantes” nesse sistema ainda que sejam “[...] largely subject to the dictates of

finance capital and face renewed competition from financialized commodity traders” (Isakson,

p. 752). Para o autor, esse fenômeno – para além do movimento de centralização e concentração desses capitais – refere-se à financeirização do risco agrário e do estabelecimento de preços: os agricultores ver-se-iam forçados a gerenciar seus riscos com recurso a instrumentos financeiros, como os derivativos. Vale dizer, a própria rede de fornecimento de insumos, tais como fertilizantes, passaria a ser alvo do interesse de fundos de investimentos, por serem essenciais ao funcionamento das farmlands.

86 Na análise do autor - e de outros, como Patel (2013) - é tratado o conflito nos termos “norte-sul” ou “desenvolvidos-subdesenvolvidos”

Clapp (2014), por sua vez, procura dar ênfase às implicações políticas da financeirização dos alimentos: para ela, esse fenômeno obscurece os impactos sociais e ambientais da produção de alimentos ao elevar a quantidade de (inclusive novos) agentes envolvidos nas cadeias globais e por introduzir instrumentos financeiros altamente complexos. Estes atuam via “[...] provision of funding, extraction of profits and their broader influence

over market and price trends” (Clapp, 2014, p. 5). Clapp & Helleiner (2012) associam a

volatilidade dos preços internacionais de alimentos em anos recentes à insuficiência de regulamentação desse mercado (em função da opacidade de seus agentes e instrumentos). A “crise alimentar global” de 2007/2008 teria, para eles, propiciado debate acerca das consequências do rápido crescimento das aplicações financeiras em derivativos agrícolas, além da renovada importância atribuída ao mercado norte-americano como determinante desses preços e regulamentações.

Um segundo subgrupo, em contraste com este primeiro, ocupa-se de investigar a crescente importância dos investidores institucionais e dos índices de commodities como ativos financeiros, bem como procura-se analisar o mecanismo de interação entre os mercados futuros de commodities e os mercados financeiros em geral. Anteriormente à década de 2000, os mercados internacionais de commodities eram pouco correlacionados entre si e com mercados financeiros (a eles) externos. Como ressaltado por Tang & Xiong (2012),

Recognition of the potential diversification benefits of investing in the segmented commodity markets prompted the rapid growth of commodity index investment after the early 2000s and precipitated a fundamental process of financialization among commodity markets (Tang & Xiong, 2012, p. 54).

Com isso, as commodities passam a se configurar – pela via de índices como o S&P GSCI e Dow-Jones-UBSCI – como um “alvo unitário” para a aplicação financeira de agentes diversificando suas carteiras. Como resultado desse “processo de financeirização”, o preço individual de cada commodity deixa de ser determinado pela interação entre oferta e demanda; passam a sofrer a influência determinante do “apetite agregado pelo risco” de ativos financeiros (Tang & Xiong, 2012, p. 72) e pelo comportamento diversificador de commodity index

investors. Assim, Tang & Xiong (2012) elencam duas consequências importantes para a

dinâmica deste mercado. Primeiramente, a presença crescente de grandes instituições financeiras deve, em geral, conduzir a uma administração (e diluição) mais eficiente do risco dos preços das commodities. Por outro lado, podem trazer a volatilidade de ativos de outros

mercados “para dentro” do mercado de commodities, sobretudo na medida em que esses agentes procuram, com frequência, desfazer suas posições para restabelecer exposições desejadas ao risco.

Em sentido correlato, Büyüksahin & Robe (2014) – utilizando uma base de dados não- pública da US Commodity Futures Trading Commission referente às posições dos maiores negociadores em 17 mercados futuros de commodities e de equities – procuram investigar a hipótese de que a composição dos atores de determinado mercado impacta a precificação dos ativos. Nesse sentido, se diferentes atores se deparam com restrições orçamentárias variáveis, a entrada de instituições altamente líquidas (e interligadas com outros mercados e agentes) deve, à semelhança do argumentado por Tang & Xiong (2012), favorecer a diluição do risco. De modo geral, os dados utilizados pelos autores parecem fornecer forte evidência em favor da hipótese levantada. Chegam à conclusão de que, para além dos “fundamentos macroeconômicos”87, as atividades dos hedge funds (especialmente os “cross-market”) e o

nível de “stress financeiro”88 fornecem bons indicadores para previsão das flutuações de longo-

prazo da correlação commodity-equity.

Irwin & Sanders (2011) procuram avaliar as evidências e autores acerca da influência dos index fund investors (ou commodity index traders) como causadores da “bolha de commodities”. Contestam conclusões de Tang & Xiong (2010, 2012) – segundo os quais os preços das commodities passam a ser ditados pelo apetite de ativos financeiros e decisões de investimento dos commodity index traders – e se aproximam das análises que sugerem a influência dos hedge funds na interação entre mercados futuros de commodities e outros setores. Para eles, no entanto, a influência dos index fund investors, ainda que não verificada empiricamente, pode influenciar outros elementos-chave desse mercado, tais como a estrutura e custo de armazenagem. Sugere a possibilidade de que “[...] the introduction of futures trading

in a commodity market flattens the supply of storage curve because the activity of futures speculators increases risk-carrying capacity” (Irwin & Sanders, 2011, p. 26).

Vale, por fim, ressaltar a abordagem proposta por Cheng & Xiong (2014), que rejeitam a posição “business as usual” bem como a dos especuladores como “sopradores de bolhas”: procuram argumentar em favor de uma análise que dê conta dos fatores que influenciam os mercados de commodities, tais como armazenagem, compartilhamento do risco e acesso e

87 Embora não exponham de maneira explícita os “fundamentos” a que se referem, afirmam utilizar os retornos associados aos índices S&P 500 e J.P. Morgan U.S. Aggregate Bond Index para isolar seus efeitos em sua análise. 88 Para o qual a proxy utilizada é o “TED spread”.

difusão das informações89. Para eles, a financeirização dos mercados de commodities eleva a quantidade de “fricções”, como o fato de que “producers cannot differentiate whether futures

prices move due to financial investor trading or due to changes in global economic fundamentals” (Cheng & Xiong, 2014, p. 421).

Em suma, para além das diferenças formais e referenciais teóricos de cada um desses grupos, um elemento divisivo refere-se às suas recomendações de política: para o primeiro, a regulação dos mercados de commodities se faz necessária, uma vez que as grandes instituições financeiras seriam responsáveis pela volatilidade dos seus preços, às quais aliam-se corporações do segmento tradicional de provisão e produção de alimentos (com efeitos deletérios para a maioria da população). Já o segundo grupo, de forma geral, avalia a com maior cautela necessidade de influência de regras legais nesse mercado. É necessário, para estes, que a regulação não impeça a correta precificação desses ativos e que o “risco” seja eficientemente distribuído entre os agentes, não se colocando assim como um desincentivo à aplicação financeira90. Uma segunda diferença marcante entre os dois grupos está na questão do movimento dos preços das commodities ao longo da primeira década de 2000: para os primeiros, houve um evidente movimento de formação de bolha dos preços das commodities (principalmente no caso dos alimentos); no segundo grupo, no entanto, este é um elemento bastante menos consensual. De modo geral, acabam por contestar o caráter de “bolha”, além de elencar efeitos potencialmente positivos da crescente influência das finanças no mercado de commodities.

89 Para os autores, parte da investigação empírica tem procurado, de maneira pouco efetiva, avaliar o impacto da especulação em mercados futuros sobre o “canal da armazenagem”. A investigação pela via dos canais informacional e de compartilhamento de risco forneceriam perspectivas mais promissoras à pesquisa, afirmam. 90

Como posto por Irwin & Sanders (2011, p. 25), que negam os especuladores financeiros como formadores de “bolhas”: “New limits on speculation are not grounded in well-established empirical findings and could impede