• Nenhum resultado encontrado

Apresentada a heterogeneidade da literatura sobre financeirização e introduzida a bibliometria como conhecimento e técnica, a presente dissertação buscou fornecer um panorama relativamente abrangente da progressiva literatura acerca da financeirização a partir de uma abordagem bibliométrica – com o uso do software VOSViewer. Em particular, por meio do agrupamento de veículos de publicação (revistas, livros, capítulos de livro etc.), referências, citações, autores e termos relacionados à financeirização, com a utilização de técnicas bibliométricas, foi possível identificar determinadas linhas de pesquisa nas quais o tema tem sido tratado. Desse modo, ainda que se admita a relevância da pesquisa bibliográfica convencional para a sistematização da literatura sobre determinado objeto, o uso da bibliometria aqui proposto oferece uma abordagem complementar à pesquisa, necessária considerando a extensão tomada pelo tema. Com efeito, os eventuais agrupamentos identificados adquirem um contorno mais preciso em termos de subáreas específicas, meios de publicação e autores, de modo a complementar os trabalhos já existentes sobre a temática. Vale ressaltar, nesse sentido, que parte dos elementos e grupos identificados anteriormente por esforços de sistematização da literatura de financeirização – tais como propostos por van der Zwan (2014), Gkanoutas-Leventis (2017) e van Treeck (2009), elencados no início desta dissertação – reaparecem e são confirmados, em linhas gerais, pela técnica e análise aqui sugeridas. Outros grupos, tais como a “financeirização das commodities” e parte relevante da “geografia da financeirização”, por sua vez, passam a se configurar como abordagens internamente coesas e relevantes no plano geral da literatura de financeirização (bem como de suas respectivas áreas do conhecimento). No mais, a presente forma de organização da

literatura procurou, ainda, sugerir diferenças e eventuais contribuições cruzadas entre os diferentes grupos.

Algumas limitações, no entanto, se colocam de maneira incontornável à aplicação da técnica bibliométrica, tais como a incompletude das bases de indexação e a especificidade do

software utilizada para os fins desse tipo de análise e, por conseguinte, do algoritmo utilizado

para a identificação dos agrupamentos na literatura. Optou-se, na presente dissertação, pela utilização da base de dados mais completa encontrada para o tema proposto (Scopus) e pela utilização de um programa amplamente reconhecido e disseminado entre especialistas da área. Além disso, uma limitação à replicação precisa do trabalho bibliométrico está na forma de acesso aos dados das bases de indexação, condicionando-se os dados obtidos ao momento de coleta. Isso porque a adição retroativa de publicações na base indexada faz com que a pesquisa bibliográfica realizada em tempos diferentes possa conduzir a resultados, ainda que ligeiramente, diferentes. Portanto, é necessário esclarecer que mapeamento referente ao período de 1992 a 2017 aqui sugerido para a literatura de financeirização é um retrato feito neste momento do tempo.

Assim, naturalmente, a sistematização proposta não significa a existência de áreas estanques no interior da literatura sobre a financeirização. Boa parte das abordagens identificadas não apenas se afasta das teorias convencionais como também adota uma perspectiva que busca reunir disciplinas distintas (economia, sociologia, ciência política, geografia econômica etc). Tampouco se sugere que esta é uma lista definitiva das vertentes da literatura acerca do tema. A fluidez e o dinamismo característicos da atividade científica não possibilitam tais ilações. Não obstante, é possível – como se pretendeu fazer aqui – traçar um quadro geral da literatura e, a partir dele, investigar o interior de cada grupo sugerido e questões próprias de cada um deles – além, evidentemente, de questões que perpassam a literatura como um todo.

Com isso, a análise interna e particular dos grupos que compõem a literatura de financeirização revela o panorama de um conceito ainda “em disputa”. Ela recebe contribuições de áreas diversas – tais como a Ciência Econômica, a Geografia Econômica, Sociologia e Contabilidade – entre as quais, embora o objeto no interior de cada uma delas possa apresentar certa coesão, tem-se grande discordância teórica e empírica.

Dentre tais grupos, a abordagem “macroeconômica” – que recebe contribuições, em sua maioria, de autores da Ciência Econômica – identifica a financeirização como um fenômeno historicamente demarcado pela dissolução dos arranjos Bretton-Woods e pela ascensão das finanças, de modo geral, e de determinadas instituições financeiras, de modo

particular, em escala global. Estas últimas, com maior destaque para as décadas de 1980 em diante, tornar-se-iam a referência principal para a lógica e dinâmica de acumulação: cabe à análise acerca da financeirização a descrição de um processo histórico de acumulação que tem se tornado progressivamente volátil e cujas bases de sustentação parecem frágeis. Dois subgrupos principais são identificados de maneira coesa. Um primeiro se refere à utilização de modelos macroeconômicos – com referencial teórico kaleckiano e pós-keynesiano – cujo objetivo é a identificação e mensuração do efeito de desaceleração do investimento (e acumulação) resultante da preferência por aplicações financeiras. O segundo subgrupo aborda a financeirização como um fenômeno associado ao endividamento e gerenciamento de ativos das famílias e firmas não-financeiras de um ponto de vista agregado; Lapavitsas (2009, 2011) enfatiza a necessidade de analisar o comportamento de todos os “agentes econômicos relevantes”.

As abordagens CSA, de autores como Julie Froud e Karel Williams, e a “Economia cultural”, de Randy Martin e Paul Langley, representam contribuições à literatura de financeirização que convergem nos termos de seus referenciais teóricos. A partir de autores seminais do pós-modernismo francês, como Foucault, Deleuze, Latour e Derrida, os dois grupos investigam a interação entre o plano do discurso e da linguagem com os processos concretos da economia e sociedade. No caso dos autores associados à CSA, seu objeto centra- se na “maximização de valor do acionista” como um discurso cuja prática, do ponto de vista agregado, está fadada ao não cumprimento de suas promessas. Em outras palavras, tratam-se de “movimentos estratégicos” propagandeados por empresas de consultoria financeira que não são capazes de funcionar para as firmas como um todo. Em contrapartida, a literatura associada à “financeirização do cotidiano” procura analisar a dinâmica pela qual o imperativo das finanças é introjetado na subjetividade do indivíduo e das famílias sob o neoliberalismo: com a redução das responsabilidades do Estado em fornecer direitos, serviços e bens, passa a caber ao indivíduo atingir e garantir a satisfação de suas necessidades materiais e simbólicas. Estas, assim, passam a ter as finanças como referência a lógica para a mensuração de suas conquistas.

Em seguida, encontram-se os autores associados ao entendimento da financeirização como um processo geograficamente desigual, cujas especificidades precisam ser consideradas para uma análise teórica e empírica mais abrangente. Procuram, de modo geral, contribuir teoricamente para uma conceituação mais ampla do fenômeno da financeirização com as “geografias do dinheiro”, além de analisarem os mecanismos, sobretudo formais, em que o elemento idiossincrático local é submetido à lógica geral do capital e finanças, em particular. Em outras palavras, procuram demonstrar que o elemento local não é “eliminado” em nome de

determinações gerais supostamente característica da financeirização, mas sim promovem-se diferentes configurações em que essas duas dimensões transformam uma à outra.

Por último, pode-se elencar um grupo de publicações dedicado ao tema das

commodities. De maneira pouco consensual referente aos mecanismos, essa literatura considera

que as finanças, sobretudo a partir dos anos 2000, tem desempenhado papel crescentemente dominante no movimento de preços de commodities e na propriedade e no usufruto comercial das terras agrícolas. Um primeiro subgrupo procura associar a “crise dos alimentos” de 2008 e a estrutura agrária internacional cada vez mais concentrada e industrializada à tendência de centralização e concentração perpetrada pelo capital financeiro. Um segundo, por sua vez, investiga os canais e atores financeiros que impactariam os preços de commodities, sobretudo tendo como referência a emergência dos índices de commodities como ativos financeiros relevantes.

Diante, portanto, do caráter multidisciplinar da literatura (e do próprio conceito) de financeirização, têm se consolidado de maneira vigorosa nas décadas recentes abordagens bastante diversas entre si, com temáticas e instrumentais teóricos (e empíricos) particulares. Nesse sentido, o presente trabalho contribui para pesquisadores na área de financeirização ao facilitar o diálogo entre as diferentes correntes, além de abrir espaço para pesquisas relacionadas à identificação de linhas emergentes na literatura e a formação de novas subdivisões. Convém observar que se trata de um esforço referente a uma literatura ainda em processo de consolidação, fato que abre espaço para contribuições ulteriores para o detalhamento dessa literatura em disputa. Por último, vale ressaltar que o presente estudo é meramente um exemplo da aplicação de um determinado conjunto de ferramentas bibliométricas a um tema dentro das ciências sociais, de modo geral, e da economia, de modo particular; este método, como sugerido, tem se mostrado progressivamente relevante para a pesquisa em praticamente todas as áreas do conhecimento e caso o presente esforço tenha sido bem-sucedido sua utilização para a sistematização da literatura econômica em suas várias ramificações parece promissora.