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CAPÍTULO 3 – FUNDAMENTOS DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA

3.4. A flexibilização no direito brasileiro

A questão da flexibilização no Direito brasileiro liga-se ao tema anteriormente tratado da indisponibilidade. Posto que, fora da atividade legislativa, isto é, no âmbito do Ordenamento Jurídico, só se poderá flexibilizar aqueles direitos que forem considerados disponíveis. Ambos os temas apresentam-se de forma bastante controversa no direito brasileiro devido ao posicionamento ideológico daqueles que a analisam, bem como a julgados às vezes imprecisos quanto a autorização e limites desta.

O marco legal para a questão da disponibilidade dos direitos laborais no Brasil se encontra no art. 7º, VI, XIII, XIV da Constituição Federal, que permite a negociação coletiva para flexibilizar certos direitos constitucionais laborais e o artigo 444 da CLT:

As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Romita refere-se a três pontos em que se legitima a flexibilização dos direitos laborais: “1ª) a distinção entre o momento genético do direito e o direito já adquirido; 2ª) distinção entre indisponibilidade absoluta e indisponibilidade relativa; 3ª) indisponibilidade no plano individual e no plano coletivo.” (ROMITA, 2009a, p. 429)

O primeiro ponto refere-se à crença, aqui já colocada, de que a indisponibilidade dos direitos laborais se funda na hipossuficiência do obreiro durante a vigência do contrato de trabalho. Por tal razão, então, sustenta-se que a indisponibilidade existe apenas na durante a

relação laboral e que os direitos já adquiridos poderiam ser flexibilizados depois de cessada aquela relação. Esta tese é criticada por aqueles que sustentam que o fundamento da indisponibilidade das normas trabalhistas não reside na hipossuficiência, mas no fato de que estes são preceitos de ordem pública de interesse social e não individual. Além disto, os críticos ainda sustentam que a hipossuficiência obreira ainda perdura com o rompimento do contrato laboral, pois a procura de empregos sempre excede a oferta além de que o rompimento daria ensejo a um estado de necessidade econômica que pressionaria suas decisões.

O segundo ponto pressupõe que os direitos se classificam em: a) primários, aqueles que derivam da Constituição, sendo assim inderrogáveis; b) secundários, aqueles outros direitos que derivam de normas ordinárias, considerados assim patrimoniais e derrogáveis. Assim só os direitos secundários poderiam ser flexibilizados enquanto que os constitucionais não. Este ponto de vista também pode variar em relação aos sujeitos que poderiam flexibilizar as normas secundárias. Há os que sustentem que estas normas só poderiam ser flexibilizadas a partir da autonomia coletiva e outros também consideram válida a autonomia individual. (ROMITA, 2009a, p. 429)

Este ponto de vista assemelha-se muito ao de Maurício Godinho Delgado que classifica as normas trabalhistas como de: a) indisponibilidade absoluta, que seriam aqueles que garantiriam um patamar mínimo civilizatório; b) de indisponibilidade relativa: que seriam todos os outros direitos. Estes últimos poderiam ser flexibilizados pela autonomia coletiva (DELGADO, 2006b, p. 218). O problema desta teoria é que os contornos do que seria este patamar mínimo civilizatório são muito imprecisos, considera-se como absolutamente indisponíveis aqueles insertos na Constituição, as convenções internacionais ratificadas pelo país e as normas infraconstitucionais que assegurem patamares de cidadania ao trabalhador.

Vólia Bomfim Cassar defende que sejam considerados como de indisponibilidade absoluta87 todos os direitos, princípios e valores que tenham origem heterônoma como os previstos na Constituição, nas leis, decretos e normas de medicina e segurança do trabalho. Já os de indisponibilidade relativa seriam aqueles que tenham fonte autônoma como os estipulados em normas coletivas, regulamentos de empresa, contrato de trabalho, dentre

87 Para Romita são de indisponibilidade absoluta: os direitos de personalidade, a liberdade ideológica, liberdade

de expressão e informação, igualdade de oportunidades de tratamento, não discriminação, idade mínima de admissão ao emprego, salário mínimo, saúde e segurança do trabalho, proteção contra a despedida injustificada, direito ao repouso, direito à sindicalização, direito de representação dos trabalhadores, direito à negociação coletiva, direito de greve, direito ao ambiente de trabalho saudável.

outros (CASSAR, 2009, p. 31). O presente trabalho se filia ao entendimento desta autora, explicitando ainda que, além das normas de fonte autônoma, para o presente trabalho também é permitido flexibilizar normas que permitam explicitamente que a autonomia coletiva o faça.

O terceiro ponto diz respeito à possibilidade de flexibilização no plano coletivo ou individual e, de certo modo, confunde o fundamento da indisponibilidade das leis laborais ao argumentar que este desaparece diante da autonomia coletiva, pois a hipossuficiência cessaria com a união da coletividade em sindicato. Assim, defende-se que a autonomia coletiva está apta a fixar níveis de direitos inferiores ao estabelecido em lei. Romita faz uma crítica pertinente a esta corrente ao explicitar que o fundamento da indisponibilidade não é a hipossuficiência, mas sim a caracterização da norma como de ordem pública (ROMITA, 2009a, p. 430-431). Neste sentido, se esta lógica se levasse ao extremo, se o sindicato tivesse a legitimação de dispor dos direitos fundamentais do trabalhador, este também poderia dispor do seu direito à vida. Assim, nas palavras daquele autor:

Quando se considera a negociação coletiva, não se está diante de uma hipótese de “disposição” de direito, mas de regulamentação desse mesmo direito. O sindicato age não “dispondo” do interesse individual de cada trabalhador, porém disciplinando suas relações futuras com o empregador. Observa Piera Fabris que, não obstante, tal negociação não tem por objeto a composição de interesses individuais contrapostos, isto é, os conflitos individuais entre empregado e empregador, mas sim a melhor composição final de interesses da própria coletividade interessada.

Convém não confundir aquisição do direito com modo de exercício do direito. Não se confundem as duas noções: a aquisição do direito não pode ser objeto de renúncia antecipada, mas o modo de exercê-lo pode perfeitamente ser negociado. (ROMITA, 2009a, p. 431)

É interessante observar que a doutrina brasileira muito se dedica à analise do tema da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos laborais, mas muito pouco se dedica à incidência deste tema no âmbito da conciliação judicial trabalhista, o que é de se espantar diante do alto índice de processos conciliados na seara laboral.

Mesmo diante da defesa ardorosa de Romita visando limitar a flexibilização dos direitos laborais, este tratamento não é o mesmo em face da conciliação. No único parágrafo que o autor dedica ao tema, coloca-se que os atos de renúncia operados em juízo em face da conciliação escapam a anulabilidade, pois se pressupõe que haja havido uma transação (em que há concessões recíprocas) e que, sem mais, esta traria vantagens às partes que assim evitariam o processo judicial. (ROMITA, 2009a, p. 428)

A mesma mudança de comportamento se vê em Vólia Bomfim Cassar que, mesmo encarando a flexibilização de forma bastante rígida, defende que ela se dê no âmbito da conciliação por que, nesta, o que se concilia é o risco da demanda (CASSAR, 2009, p. 179), como se as demandas, no fundo, não tratassem de direitos constitucionais e sociais de primeira importância.

Plá Rodriguez segue a mesma tendência de Cassar e admite que por mais que a conciliação não implique necessariamente uma renúncia, pode conduzir a esta, porém esta se legitima, pois:

[...] em face da dificuldade em conseguir sempre uma justiça certa, pela inadequação dos meios de prova e de aproximação à verdade, e diante da impossibilidade de lograr uma justiça oportuna pela lentidão dos procedimentos jurisdicionais, almejasse a conciliação como uma esperança de solução pronta e concreta, ainda que importe ela em renunciar à possibilidade de lograr tudo o que se cria ter direito. (PLÁ RODRIGUEZ, 1978, p. 108)

Maurício Godinho Delgado trata da conciliação como uma figura correlata à disponibilidade dos direitos, situando-a como par da renúncia e da transação, sendo, diferentemente daqueles, um ato judicial, que poderia abarcar parcelas trabalhistas não transacionáveis na esfera estritamente privada (DELGADO, 2006b, p. 217). Neste sentido também se posiciona a jurisprudência majoritária do TST:

A transação realizada antes da prolação de sentença de mérito caracteriza-se pela ‘res dubia’, isto é, há incerteza subjetiva quanto ao devido. Verbas discriminadas nos moldes exigidos pelo art. 832, § 3º da CLT. Não há se falar em indisponibilidade do crédito previdenciário, pois somente existirão no caso de ocorrer pagamento de valores salariais (fato gerador). (TST apud CASSAR, 2009, p. 179)

A grande maioria dos autores brasileiros pouco trata da conciliação e nada diz sobre os motivos que faz com que este instrumento seja autorizado a desrespeitar direitos fundamentais constitucionais e a ordem pública. Impressiona ver que toda crítica tão bem construída por diversos autores quanto à impossibilidade de flexibilização se torne inexistente em se tratando de um meio de resolução de litígios que é responsável por cerca da metade de conflitos laborais no país. Nada se tem colocado nos manuais para que se ensine como se defender os direitos fundamentais em face da constituição e esta deveria ser a meta maior dos ordenamentos jurídicos e não apenas a pura e simples solução de conflitos.

Como se observou em tópicos passados a conciliação tem sido um dos meios mais efetivos para que a flexibilização das normas trabalhistas se dê no Brasil e este instrumento tem sido potencializado por ações de instituições internacionais e empresariais visando a mercantilização dos direitos fundamentais sociais, muitas vezes de maneira a fraudar o ordenamento jurídico brasileiro. A flexibilização está sendo institucionalizada do país através de várias reformas processuais e campanhas que partem do próprio Judiciário (como o Projeto Conciliar é Legal) sem que haja um debate profundo (ou pelo menos explícito) sobre o que se pretende com a inserção no nosso Ordenamento da primazia do negociado frente ao legislado.