• Nenhum resultado encontrado

A FORMAÇÃO DA BURGUESIA INDUSTRIAL E O CAPITALISMO BRASILEIRO

Retrocedendo um pouco mais ao episódio das encampações, constataremos que o processo histórico de formação da burguesia industrial brasileira, segundo o historiador e cientista político, René Armand Dreifuss (1945-2003), ocorreu sob a tutela político-ideológica da oligarquia agro-comercial. É justamente em torno da formação dessa classe social burguesa que ocorrerão os desdobramentos das políticas econômica e sociais.(DREIFUSS, 1981, p.21).

No final do século XIX, enquanto os países desenvolvidos faziam a sua Segunda Revolução Industrial, no Brasil, com o fim da escravidão e com a marcha acentuada da imigração, principalmente de italianos e ibéricos, teve início a industrialização. Primeiramente de produtos e artigos de menor valor, consumidos pela massa assalariada, cuja importação

tornava-se inviável devido aos altos custos de transporte. Além do que, tal iniciativa proporcionava "substancial margem de proteção à produção local". Margem que se ampliaria com a elevação das tarifas aduaneiras. Além de aumentar a receita fiscal do Estado e de proporcionar o desenvolvimento da indústria têxtil, como também de outros ramos da indústria leve. Esse quadro tomou maior impulso com as dificuldades de importação causadas pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Estabelecendo-se assim o processo de industrialização que ficou conhecido por substituição das importações. (SINGER, 2004, p. 212-213).

As dificuldades impostas à marcha para a industrialização antes de 1930 estão associadas ao temor que as oligarquias cafeicultoras tinham de provocar represálias contra uma política protecionista para os produtos brasileiros. Por outro lado, o economista, Paul Singer, afirma que além dessa prioridade da produção voltada para o mercado externo, havia forte desaprovação e rejeição, por parte das oligarquias e da classe média urbana, ao produto nacional. Que na sua fase inicial, observa o economista, provavelmente deveria ser de qualidade inferior e de preço mais elevado do que o importado similar. Situação que teria provocado "arraigadas convicções livre-cambistas [...] à proteção das indústrias consideradas 'artificiais' num país cuja vocação agrícola não era disputada por ninguém." Paul Singer afirma ainda que o processo inicial de industrialização do "Brasil entre 1885 e 1930 não passou de uma consequência secundária de reorganização capitalista do Sistema de Mercado Externo - SME, particularmente de sua parte mais dinâmica: a cafeicultura". (SINGER, 2004, p.215-216).

A longa depressão dos anos 1930, que se manteve durante a Segunda Guerra Mundial fez com que o SME fosse destituído da sua importância. Situação extremamente desfavorável "para um país tão dependente da economia mundial como o Brasil." Essa crise trouxe a ruína para as oligarquias agroexportadoras que perderam a sua força política. "Em seu lugar ocupou o poder uma coligação de capitais agrícolas e industriais ligados ao Setor de Mercado Interno - SMI." (SINGER, 2004, p.216-217).

Nesse sentido, a grande mudança no setor industrial do País ocorrida no pós 1930 foi a de que o poder político passou a dar máxima prioridade ao desenvolvimento do mercado interno, no crescimento 'para dentro'. Seu objetivo era o de tornar a economia nacional "o menos dependente possível do mercado mundial". Para tanto, teve de passar à fase do capital monopolista. Representada pela Companhia Siderúrgica Nacional, construída durante a Segunda Guerra Mundial e que começou a produzir em 1946, reduzindo a dependência

externa no setor metalúrgico. Período em que também foi travada grande batalha contra a entrega do petróleo brasileiro para empresas estrangeiras. Vencida pelo governo de Getúlio Vargas, em 1953, e que estabeleceu o monopólio estatal da exploração e do refino do petróleo para a Petrobrás. (SINGER, 2004, p.224).

Entre as décadas de 1940 e 1950 iniciaram as inversões estatais em energia elétrica, cujo evento representativo foi a construção da grande usina hidrelétrica de Paulo Afonso, no Rio São Francisco. Mas, as concessionárias privadas do setor demonstraram incapacidade ou desinteresse em estender o abastecimento de acordo com a demanda, o que levou à lenta e progressiva estatização do setor, "que culminou com a proposta de criação da Eletrobrás, simultaneamente holding e órgão de financiamento das empresas estatais de energia elétrica, que se multiplicaram a partir dos anos cinquenta." (SINGER, 2004, p.224).

Aqui, temos uma questão pertinente proposta por Paul Singer, que passaremos a examinar. Questiona o economista:

Poder-se-ia perguntar por que o Brasil, após ter lançado os fundamentos de uma estrutura industrial moderna com recursos próprios, abriu a economia ao capital estrangeiro a tal ponto que este acabou dominando suas indústrias mais dinâmicas.20

A resposta mais óbvia é que o aporte de capital das multinacionais era indispensável. Mas os dados não chegam a confirmar essa hipótese. (SINGER, 2004, p.226). Singer conclui que:

Embora somando empréstimos e inversões se pudesse chegar à conclusão que o capital estrangeiro pode ter contribuído com algo mais de 20% para a formação bruta do capital fixo no período 1956-62, é mais provável que seu aporte tenha sido de maior importância para elevar a capacidade de importar, condição possivelmente essencial para se atingir as metas de industrialização propostas pelo governo Kubitschek. Mas mesmo isso é duvidoso. Em primeiro lugar porque descontando os rendimentos do capital estrangeiro (juros, lucros e dividendos) remetidos ao exterior e as amortizações, a entrada líquida cai a uma média de 159,6 milhões de dólares.21

E em segundo lugar porque das inversões diretas entradas no país, entre 1956 e 1960, 69,3% vieram sob a forma de equipamentos, em grande parte já usados, havendo boas razões para se crer que seu valor tenha sido superestimado por ocasião do seu registro. (SINGER, 2004, p.227).

Paul Singer afirma ainda que entre os anos 1933 e 1955 foram lançadas as raízes do capital monopolista no Brasil. Antes de 1930 restrito aos serviços de infraestrutura, e que

20 Singer (2004, p. 226), aponta entre essas empresas, em 1960: a farmacêutica, 86%; máquinas 59%; autopeças,

62%; veículos a motor, 100%; vidro, 90%; pneus (borracha), 100%.

21 Valor que representa 5,28%da formação bruta do capital fixo, que chegou a 3019 milhões, em 1962. (FGV

passaram a dominar o processo de industrialização a partir de 1956. Mas que em sua maior parte, continuou sendo estatal e multinacional. (SINGER, 2004, p.228).

Por outro lado, o intelectual, ativista de esquerda e historiador Jacob Gorender (1923- 2013) defende a tese de que o investimento industrial estrangeiro apresentava dois aspectos combinados: o da 'bomba de sucção', metáfora que representa o envio de remessas de amortizações e rendimentos para as matrizes, com flagrante exorbitância sobre o montante original. Mas que, por outro lado, esse capital também dinamizou o mercado interno. Como é o caso das montadoras de automóveis, que carecem de aço, metais não-ferrosos, vidros, borracha, materiais plásticos, tintas, peças e componentes. Dinamização da economia que aumentou a massa de empregos e refletiu no crescimento do setor de bens de consumo. (GORENDER, 1990, p.88-89).

Segundo Gorender, a burguesia nacional assumiu uma posição consensual, "na qual se aliou o protecionismo alfandegário à aceitação do investimento estrangeiro dentro do País, uma vez que se subordine a critérios seletivos e condições especiais de operação." O autor sustenta sua argumentação com um documento: 'Carta Econômica de Teresópolis', 1945. Documento assinado pelos mais representativos empresários entre o empresariado nacional e que foi ratificado em 1977. No referido documento, os empresários reconhecem a contribuição da empresa estrangeira na construção da economia do Brasil, mas alertam a necessidade da fixação de políticas que regulem a entrada de capital de risco. Regras bem definidas para o ingresso de empresas estrangeiras, a partir do interesse nacional.(GORENDER, 1990, p.88-89).

Conclui Jacob Gorender que "o capital estrangeiro não entrou no Brasil por manobra solerte de uma 'camarilha', ou de um grupelho, [...]. Foi a própria burguesia, como classe, que precisou do capital estrangeiro e o incentivou a vir para o Brasil". (GORENDER, 1990, p.88- 93).

Some-se ao que foi exposto acima a contribuição de René Armand Dreifuss, quando afirma que, ao se aproximar o final da Segunda Guerra Mundial, a retomada das aspirações democráticas provocou agitação nas classes trabalhadoras dos centros urbanos, em função da sua condição miserável que alcançou o ponto máximo em meados da década de 1940. O que parecia uma séria ameaça ao status quo. Foi nesse contexto "que as associações empresariais convocaram convenções e congressos nacionais, a fim de repensar o seu papel no período pós-guerra." Entre esses eventos destacou-se a Primeira Conferência das Classes Produtoras do Brasil, realizada em Teresópolis, em maio de 1945. Cuja 'Declaração de Princípios' adotou

a "repressão pacífica" como estratégia para esvaziar o descontentamento popular e absorver suas lideranças, através da burocratização das suas demandas, estabelecidas pelo Estado patrimonialista e cartorial. (DREIFUSS, 1981, p.26).

Dreifuss afirma, também, que embora limitada, a mobilização das classes trabalhadoras "era temida pelas classes dominantes, pois poderia dar a Getúlio Vargas o apoio necessário para o estabelecimento de um executivo relativamente independente." O que colocaria "Vargas acima do controle das Forças Armadas. Mas não era apenas isso, o presidente tinha uma estratégia de desenvolvimento econômico nacionalista e estatizante- distributivo". Que obstaculizaria as ligações dos industriais nacionais com interesses multinacionais na tentativa de conseguir capital e tecnologia. Mas, antes que Vargas pudesse consolidar seu bloco de poder, um grupo composto de industriais locais, pelas oligarquias, pelas classes médias e por empresas multinacionais, sob o comando do "Exército, tendo como ponta-de-lança os oficiais da FEB," depôs o presidente. (DREIFUSS, 1981, p.28).

O Marechal Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), eleito com o apoio de Getúlio Vargas, pela coligação PSD e PTB, assumiu a presidência e demonstrou "que suas ideias políticas diferiam grandemente das de seu predecessor, principalmente no que dizia respeito às suas posições quanto ao nacionalismo e à participação das classes trabalhadoras." Influenciado por empresários, o governo Dutra favoreceu o laissez-faire na economia e a empresa privada, em detrimento das classes subordinadas, que sofreram um forte controle político. Dutra desativou organizações estatais "e a tendência para o nacionalismo e desenvolvimento estatizante sofreu retrocesso. [...] a economia foi reaberta ao capital estrangeiro em condições muito favoráveis." (DREIFUSS, 1981, p.28-29).