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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

Avaliando os acontecimentos, passados mais de cinquenta anos da Campanha da Legalidade e privilegiados pelo distanciamento dos fatos, acreditamos que João Goulart ao ceder ao parlamentarismo teria dado um ‘salto no escuro’, ou, literalmente, "para trás", no sentido histórico, apostado na sua capacidade de mediador e contado com o apoio popular e de seu partido, que crescera consideravelmente. Porém, lhe faltou a capacidade de interpretar adequadamente o momento histórico que estava vivendo.

Caio Prado Jr. chamou de “agudeza política” o atributo desenvolvido por poucos políticos, mas indispensável para a tomada de decisões irreversíveis, como era o caso em análise. Diante de um modelo econômico que se esgotava pela falta de avanço tecnológico; pela dificuldade em compor novas possibilidades de exploração do país pelos grupos empresariais privilegiados; pelo aumento das demandas de inserção social e econômica, de consumo, segundo Mário Maestri, adquiridas desde a Greve dos 300 mil, de março-abril de 1953 e também, pela derrota do golpe em 1961. “Eventos em que os trabalhadores teriam conhecido nos anos pré-golpe o momento de maior força na história do Brasil”. Ou, como afirmou Florestan Fernandes, pela falta de “coragem em romper com a dominação imperialista e com os liames que as prendiam às várias formas de subdesenvolvimento interno”. (PRADO Jr., 1966, p.19; MAESTRI, 2⃰⃰5; FERNANDES, 2⃰⃰6, p.365).

Em matéria publicada no jornal Correio do Povo o governador do Rio Grande do Sul fez uma síntese de todo o episódio da Legalidade. Advertiu que o governo seria representado por um Congresso conservador. Disse, também, estar inconformado com a mudança na estrutura do sistema político, pela sua profundidade incompatível “para uma legislatura ordinária, efetuada com tanta rapidez e ainda tão desconhecida”. Modificação incompreendida pela população, até aquele momento. E que somente “poderia ser acatada, respeitada e prestigiada pelo povo, quando ungida de um referendo popular, através de plebiscito.” E afirma: “Nenhum país, dentro da ordem democrática, modifica profundamente o seu regime sem a concordância popular”. Sua crítica também demonstra uma visão contextualizada dos regimes políticos da América Latina, quando afirma existirem diversos regimes, de ditaduras brandas as ferozes, passando pelas eventuais que se instalam por longos anos. Mas, afirma que “todas se identificam pela miséria e subdesenvolvimento.” E adverte: “Não nos devemos iludir. O atual sistema pode ser uma solução política e até mesmo administrativa, mas o que o país necessita é de reformas. Esta jornada provou que o povo é capaz de reagir”. No mesmo

jornal também são muitas as manifestações de apoio à Campanha da Legalidade desencadeada pelo governador rio-grandense. São comícios populares, na capital do Rio Grande do Sul; manifestação de apoio dos trabalhadores unidos pela Legalidade; de estudantes; greves de sindicatos cariocas, dos Ferroviários da Santos-Jundiaí, na Fábrica Nacional de Motores – FNMA, dos Ferroviários da Leopoldina e dos operários navais; apoio, também, dos de governadores, como Mauro Borges, de Goiás, Luís Cavalcante, de Alagoas, Cid Sampaio, Pernambuco, Juracy Magalhães, Bahia; das Assembleias dos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo que também se posicionaram favoráveis à posse de João Goulart. Todas essas anteriores a aceitação dos militares a emenda parlamentarista. O que talvez tenha também pesado na decisão dos ministros golpistas. (CORREIO DO POVO, 6-9- 1961, p. 12).

Quando Jango aceitou o condicionamento de sua posse à emenda parlamentarista, teria esvaziado o apoio popular e sua capacidade de reagir ao golpe. Frustrando toda a estratégia construída por Brizola e seus apoiadores, que Flávio Tavares afirma ter sido unânime, por parte da imprensa - local, nacional e estrangeira - que cobria a Campanha da Legalidade, no Palácio Piratini. Além da Rede da Legalidade (através das ondas da Rádio Guaíba de Porto Alegre), estrategicamente organizada por Leonel Brizola e que teria alcançado grande parte do território nacional, dando conta do que estava acontecendo, a partir da sua análise. (TAVARES, 2012).

Com base no exposto, nos parece aceitável a hipótese lançada acima para justificar a impunidade dos militares golpistas, pois a integridade da instituição teria sido o elemento essencial para a defesa do Estado burguês. Assim como, a incompreensível ausência de Leonel Brizola no primeiro escalão do Governo Goulart. Não apenas pela sua estratégia vitoriosa na Campanha da Legalidade, mas, também, pela liderança que passaria a representar, dentro e fora do seu partido, o PTB.

6 A EDUCAÇÃO POPULAR: NENHUMA CRIANÇA SEM ESCOLA

É espantoso, é monstruoso, que um país onde toda a educação intelectual está por fazer, onde a massa popular é ignorantíssima, onde não há instrução industrial nem técnica (...) é monstruoso que num tal país, para um orçamento de 300 mil contos, reservem-se 73 mil contos para a força pública, mas apenas 3.200 contos para tudo, tudo que interessa à vida intelectual - ensino, biblioteca, museus, escolas especiais, observatórios, etc.!

(Manuel Bonfim) No presente capítulo analisaremos o item considerado mais importante do decálogo do Programa de Governo25 de Leonel Brizola: a educação popular26. Episódio marcante da gestão

trabalhista que precisa ser melhor compreendido, pois reúne elementos que compõem o projeto de Estado do referido governo, ditado pelo seu caráter desenvolvimentista, assim como pelo aspecto simbólico das brizoletas que o particularizou entre os demais governos do Rio Grande. Mais ainda, a proposta do presente capítulo é a de destacar o elemento novo, em termos de gestão pública rio-grandense: a inclusão das camadas populares. Desafio do contexto dos anos 1950, que, segundo Skidmore (2010) se consubstanciava em dirigir os benefícios do crescimento econômico a uma faixa maior da população.

A educação ganhou um papel de destaque como meio de mobilidade social, dentro de uma lógica voltada para as novas potencialidades das formas de organização do trabalho, representadas pela industrialização e pela urbanização. Assim também como a escola pública, instituição que desempenharia um papel-chave para alcançar tais objetivos, em um estado com elevados índices de analfabetismo. Educação e desenvolvimento passariam a compor o eixo do projeto político implementado pelo Piratini, com vistas à superação da crise

25 RIO GRANDE DO SUL. Roteiro do Programa de Governo do Engº Leonel Brizola. Gabinete de

Administração e Planejamento. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1962, p. 12.

26 Segundo César Picon (2⃰⃰6) “o que tipifica a Educação Popular não é um método, mas sua concepção e

intenção transformadora.” E segue: “A consolidação e aprofundamento do resgate do espaço público, em que haja uma convergência da participação e ação do Estado e da sociedade civil, é uma tarefa da Educação Popular [...]”. E segue: “Tal tarefa, dentro das correspondentes circunstâncias nacionais, pode ser impulsionada por meio de mecanismos já estabelecidos pelos Estados nacionais. Caso não existam esses mecanismos, impõe-se o desafio de promovê-los e estabelecê-los pela ação cidadã.” Com efeito, Picon afirma ainda que: “A Educação Popular possui um papel fundamental no processo de construção de tal resposta.” No que se refere à participação dos cidadãos no controle social da qualidade da educação e “ na elaboração e avaliação das políticas públicas de educação, no que diz respeito à qualidade, equidade, gestão, cumprimento de objetivos e metas, resultados a serem medidos com indicadores específicos.” Afirma ainda que: “Na maioria dos países latino-americanos, não existe ainda uma cultura de avaliação e de prestação de contas. A Educação Popular, por meio de seus espaços e experiências, pode compartilhar solidariamente suas contribuições, reflexões e propostas.” (PICON, Cesar. A educação popular caminhando para o futuro. In: PONTUAL, Pedro; IRELAND, Timothy. (Orgs.). Educação Popular na América Latina. Brasília: UNESCO; CEAAL; MEC, 2006, p. 163-171).

econômica e à inserção do Rio Grande do Sul no patamar compatível com aquele ocupado pelos estados industrializados do sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Antes, porém, destacaremos algumas análises relevantes da conjuntura nacional e regional do período, no que se refere à política educacional, em que pese a carência de trabalhos sobre a história da educação pública no Rio Grande dos Sul no referido período. Constatação que indica o potencial do tema para a pesquisa, no sentido de aprofundar o conhecimento sobre o longo caminho percorrido para reunir as condições históricas necessárias à consolidação da escola primária para o povo. Embora o sociólogo Celso de Rui Beisiegel advirta que a educação para o povo teria sido concebida e conduzida pelas elites intelectuais, com vistas à preparação da coletividade para a realização de certos fins dentro de uma dimensão ideológica voltada para o controle social. (BEISIEGEL, 1974).

Examinaremos de forma objetiva a evolução histórica das políticas voltadas para o que, provisoriamente denominaremos de “educação para o povo”. Nesse sentido, destacamos que a partir das Cortes Constituintes de 1821, instaladas em Lisboa com o objetivo de reestruturar o poder político lusitano, já aparecem manifestações dos constituintes em defesa da instrução pública como forma de possibilitar a evolução da situação político-social, também como fator de progresso econômico, pois: “Assim como a classe comerciante prosperava no reino precedente graças a uma educação bem concebida, assim o setor agrícola conheceria doravante sólidos avanços mediante uma atualizada instrução teórica.” Na oportunidade, o professor Rogério Fernandes afirma que os deputados paulistas foram portadores das “Instruções” de 9/1⃰/1821, das Câmaras Municipais, que entre outros temas reivindicavam um sistema de ensino próprio do Brasil. Este deveria ser “capaz de formar o capital humano necessário ao seu desenvolvimento.” O autor chama a atenção, também para o “elevado grau de consciência cultural e de capacidade para desenhar alternativas às políticas conservadoras” desses deputados brasileiros, destacando Francisco Moniz Tavares, representante do Maranhão, para quem deveria ser superada a visão da educação de base colonial, a qual temia os efeitos “potencialmente revolucionários do acesso à escolarização e à cultura”. (FERNANDES, 2011, p. 20-31).

As discussões sobre a criação de escolas para o povo no Brasil datam da segunda metade do século XIX. Com vistas a expansão destas escolas, Maria Helena Câmara Bastos (2011, p.40) faz referência à adoção do método monitorial/mútuo (método Lancaster) no período 1819 a 1827. Mas, alerta que, diferente dos países centrais em processo de industrialização que necessitavam formar cidadãos preparados para essa realidade, no Brasil,

agroexportador e escravocrata, a proposta acabaria por se transformar “num fator a mais para a fragilização, em termos de qualidade, do ensino público elementar no período.” (BASTOS, 2011, p.48).

Maria Cristina G. Machado afirma que nas últimas décadas do século XIX as transformações sociais, políticas e econômicas na Europa, em grande parte decorrentes da Segunda Revolução Industrial, geraram a necessidade de adequação da educação a essas transformações. “O Brasil, para acompanhar esse movimento, precisava modernizar-se, isto implicava em transformações na forma de trabalho.” Seria preciso formar cidadãos-eleitores e superar o estigma do trabalho manual, até então relegado aos escravos. Missão ideológica que se faria através da educação. O grande número de analfabetos impunha a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, o que desencadeou a preocupação com a educação do liberto, pois era preciso “ ‘ensinar-lhe’ a amar o trabalho.” A autora destaca ainda a existência de vários projetos relativos à instrução pública, em especial o Decreto nº 7.247 de Leôncio de Carvalho (1879), e os Pareceres /Projeto de Rui Barbosa (1882-1883) que, segundo a mesma fonte, estariam indicando a urgência do investimento em educação por parte do governo brasileiro. (MACHADO, 2011, p.91-101).

No Decreto nº 7247 de Leôncio de Carvalho, de 1879, é possível perceber o início do processo de organização da escola pública. A educação deveria ser obrigatória dos 7 aos 14 anos, para ambos os sexos. Pelo mesmo Decreto, seria garantida ainda a livre frequência e a possibilidade de prestação de exames nas escolas, a qualquer pessoa que quisesse prestar exames, mesmo sem estar matriculada. Mas, o ensino deveria ser totalmente livre. Sua proposta tinha por objetivo incentivar a livre concorrência que, no seu entendimento, beneficiaria alunos e professores, por um lado, e destituiria o Estado do monopólio da educação, por outro. Maria Cristina Machado (2011, p.97) destaca ainda que o Decreto dava conta da precariedade do ensino no país, afirmando que “as escolas eram escassas e organizadas de forma precária, cada província determinava, independentemente, seu programa e sua legislação de ensino.” Fato que estaria evidenciando a necessidade de uma “uniformização do ensino”.

Rui Barbosa, nos seus Pareceres/Projeto sobre o ensino primário, rejeita in totum o que existia. Faz uso de dados estatísticos para mostrar o estado caótico em que se encontrava o ensino brasileiro. Aponta como condição para reverter a situação, a “interferência do Estado, financiando diretamente ou fiscalizando o trabalho realizado nas escolas.” A condição para tanto seria a centralização das ações num “Ministério da Instrução Pública, que deveria

coordenar a organização do sistema nacional de ensino.” O parlamentar defendia ainda a criação de escolas públicas em número suficiente para atender a demanda da obrigatoriedade do ensino, dos 7 aos 14 anos; o controle pelo Estado das emissões de títulos universitários e a liberdade de ensino. No caso do Brasil, a liberdade de ensino para ele significaria o monopólio da Igreja Católica, única instituição devidamente estruturada no período. Seu posicionamento enfatiza que somente com o apoio do Estado seria possível alcançar o ensino livre, mas que o mesmo não supriria a falta do ensino oficial, que carecia de investimento. Afirmava que: “O Estado, no Brasil, consagra a esse serviço apenas 1,99% do orçamento geral, enquanto as despesas militares nos devoram 20,86% da despesa total.” ( MACHADO, 2011, p.98).

Maria Cristina Gomes Machado, professora da Universidade Estadual do Paraná, destaca que, embora a insistência de alguns parlamentares e de setores da sociedade, o Estado, durante o Império, se omitiu diante das necessidades de uma escola primária para o povo. Instituição que deveria ser capaz de atender às exigências dos novos tempos, representadas pelas mudanças no processo produtivo, a partir da abolição da escravidão; da construção de uma sociedade nacional que buscava mão de obra livre para a agricultura e a indústria, através da imigração; do processo de urbanização e suas implicações estruturais. A autora finaliza com a convicção de que a criação da escola primária para as classes populares foi uma construção conquistada pelas “lutas travadas em meio às contradições da sociedade” que somente se concretizou na segunda metade do século XX. Quando foram reunidas as condições históricas necessárias para que se consolidasse essa instituição. (MACHADO, 2011, p. 100-101).