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4 A FORMAÇÃO DISCURSIVA DA ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA

4.5 A formação discursiva para uma arqueologia do modernismo brasileiro

arquitetura moderna brasileira não tem como referencial um objeto único, totalizante, identificável em todos os fragmentos textuais que a integram. Num dado domínio de enunciados, a arquitetura, enquanto disciplina, pode assumir a posição de objeto dominante, privilegiado, na discussão acerca da produção em questão. Da mesma forma, um texto que discorra sobre determinado arquiteto moderno, relacionando-o a aspectos críticos e teóricos do modernismo brasileiro, pode inserir-se, adequadamente, nessa formação discursiva. Muitos textos referentes, por exemplo, a Gregori Warchavchik, Lucio Costa ou Oscar Niemeyer têm esta dimensão. Noutra direção, há artigos que

17 COMAS, Carlos Eduardo Dias. Casa e cidade: reflexão gaúcha, realizações européias. AU –

tratam da arquitetura brasileira ou da arquitetura moderna brasileira remetendo- as, exclusivamente, à ascensão dos arquitetos modernos do Rio de Janeiro. Em todos esses casos, os objetos analisados podem ser articulados a pelo menos um dos múltiplos acontecimentos que compõem o referencial desse período do modernismo brasileiro.

A correlação dos fragmentos textuais permitiu traçar quatro modos de formação de objetos, distribuídos entre arquitetura, arquiteto brasileiro, arquitetura brasileira e arquitetura moderna brasileira. Esses demonstram que a repartição dos objetos no discurso em análise envolve processos de objetivação dos sujeitos atuantes e de diferenciação ou identificação dos construtos na relação com o “outro”. A objetivação do arquiteto feita na instância discursiva, em especial da sua possibilidade de atuar como protagonista da arquitetura, o transforma num referencial de dispersão de objetos privilegiados desse saber. Por outro lado, o que se apresenta nos processos de diferenciação ou identificação é o reconhecer-se, na relação com o outro, como participante do jogo de alteridades que opõem ou aproximam semelhanças e diferenças, centralidades e periferias, o vernacular e o universal. Como exemplo, tem-se o citado enquadramento que parte da crítica européia fez da arquitetura moderna brasileira, a partir dos anos 1950, tipificando-a como uma corrente nacional do movimento moderno (COMAS, 2004). De fato, procedeu-se a um modo de identificação que obedeceu a critérios de diferenciação frente à suposta condição universal do modernismo europeu. Num outro grupo de enunciados, recusar ou aceitar a produção dos arquitetos cariocas como simplesmente arquitetura pode significar demarcá-la ou não como algo local e particular de uma cultura, confrontando-a com as temáticas da universalidade e da especificidade.

O nível das modalidades enunciativas possibilita inferir os vários graus de epistemologização do discurso sobre o modernismo brasileiro. Foucault (1987) define epistemologização pelo jogo no qual um conjunto de enunciados delineia normas de verificação e coerência, exercendo em relação ao saber uma função dominante - de modelo, crítica ou verificação. Nesta dissertação, as modalidades de enunciação do discurso sobre a arquitetura moderna

brasileira distribuem-se entre tipos de encadeamento menos formais, como a entrevista e o depoimento, e outros que requerem maior coerência na articulação dos seus elementos, como o artigo, a resenha ou a narrativa.

A rede de conceitos atribuídos nos enunciados pesquisados descreve as relações da arquitetura moderna brasileira com o meio, o aparato oficial, a realidade sócio-econômica, as artes, os critérios técnicos e construtivos, sua repercussão e divulgação. A arquitetura também é tratada quanto a sua expressão plástica e formal e em suas relações com os arquitetos, com a tradição e com a sua identidade própria, entre outros aspectos. São relações de exterioridade que se entrelaçam e orientam o próprio lugar do sujeito. Na sua dependência topológica do enunciado, o sujeito liga-se ao fenômeno arquitetônico cuja dimensão estética, técnica e funcional lhe pré-existe ou advém da alteridade, seja ele participante ou espectador do fazer da arquitetura. Imerge nas marcas impressas de sua finitude que determinam a sua relação discursiva com o objeto construído, entre elas, a técnica que não é totalmente sua, o meio que revela a sua insuficiência e o governo que é sempre o exercício de delegação ao outro, por mais democrática que essa delegação se institua. Como afirma Lebrun (1985, p. 12): “E no entanto, por estranhos que me sejam estes elementos, não resido neles como um piloto em seu navio.” Na situação específica desta arqueologia, se o nível do referencial subsidia a identidade dos diversos objetos vinculados à vertente carioca da arquitetura moderna brasileira, a rede conceitual ou teórica contempla a multiplicidade imanente ao sujeito do discurso.

No discurso da arquitetura brasileira, o nível das possibilidades estratégicas encerra os embates que a situam, de um lado, como fato social e ideológico e, de outro, como fato estético e cultural. A dimensão utilitária da arquitetura sempre limitou a sua descrição como fato estético puro e, assim sendo, a sua condição de objeto estético e cultural diz respeito, predominantemente, à convergência que mantém com as disciplinas artísticas, à força imagética dos seus construtos, às condições tectônicas que a envolvem e às implicações filosóficas de sua existência material. Por sua vez, apropriá-la como fato social e ideológico significa exigir que essa avance para além de

suas funções arquiteturais fundamentais, atuando, por exemplo, sobre a realidade social e econômica ou sendo vetor de um projeto de civilização. Essa dicotomia no discurso da arte e da arquitetura não se restringiu ao modernismo brasileiro. O contraste encontrou eco na dura realidade social européia do fim da Primeira Grande Guerra, tornando imperioso reconsiderar o sentido de “arte pela arte” e de “poesia pura”, com seus desdobramentos na “arte abstrata” ou “não objetiva”, que havia sido defendido pelas vanguardas artísticas do século XIX, as quais, segundo Greenberg (1996), desligaram-se tanto da política revolucionária quanto da burguesia.

Superada a fase mais aguda das vanguardas artísticas, o movimento moderno europeu dos anos 1920 retomou o ordenamento no campo das artes e da arquitetura. A importância dada por Le Corbusier aos princípios da composição, aliada à valorização dos elementos estéticos como expressão de seu tempo, são traços do revigoramento dessa tradição. A necessidade de solução das demandas sociais tornou os arquitetos modernos mais pragmáticos, refratários a experimentações e, como conseqüência, tributários de um repertório largamente testado que se converteu em código doutrinário.

Um novo deslocamento se impôs ao projeto racional europeu com a iminência da nova guerra. Referenciando-se em Husserl18, Argan (1992) analisa a crise das “ciências européias” e de seu sistema cultural racional, verificada no período que antecedeu a Segunda Grande Guerra. Destaca a constatação feita pelo filósofo acerca dos limites dessa racionalidade e da necessidade de sua complementaridade por processos de imaginação e fantasia, ou seja, pela arte. Expõe, como visto anteriormente, que, na cultura norte-americana do pós-Segunda Grande Guerra, a arte e a arquitetura passaram a ser tratadas, predominantemente, como fatos estéticos, resultando numa percepção diferente da européia. Nesta, as disciplinas mantiveram-se integrantes do seu projeto racional, ideológico e civilizatório de ciência, que almejava impor-se como o mais universal possível.

18 Em Husserl, o projeto do ocidente é considerado enquanto desdobramento universal da razão e do

positivismo, sendo questionada a sua validade incondicional e argüiada a sua atuação simultânea como forma de despotismo e esclarecimento (FOUCAULT, 2005).

Transportado para o Brasil, o sentido ideológico do modernismo europeu não contemplou diretamente um projeto de civilização, dado que o contato com a dura realidade local fez aparecer o viés mais lógico da crítica sócio- econômica, que se tornou a estratégia de afirmação do seu discurso. A dimensão estética da arquitetura e a sua solidariedade e congruência com a realidade brasileira são as duas estratégias diferenciadas que foram identificadas nos fragmentos catalogados. Essas permitem desenvolver conceitos, tipificar objetos e situar os sujeitos do discurso.

Como primeiro passo da arqueologia proposta, o QUADRO 1 apresenta os critérios e as regras da formação discursiva inerente aos enunciados selecionados. Ressalta-se que, restrita ao discurso veiculado nas publicações especializadas, esta arqueologia “funciona”, predominantemente, no “interior” do próprio campo da arquitetura. Assim, a sua operação não amplia a fronteira dessa disciplina com a mesma contundência obtida por Foucault nas suas investigações da loucura19 e da medicina, por exemplo. De fato, o que se amplia é o entendimento das transformações “internas” que marcaram a própria arquitetura moderna brasileira na sua condição de objeto do saber e, principalmente, a compreensão do sujeito alojado no seu discurso, a partir da identificação das diversas regras de formação desses enunciados e de sua articulação com as múltiplas forças presentes na história do país no século XX.

19 No caso particular da loucura, Machado (2006) avalia que Foucault estende as fronteiras de sua análise

para além da disciplina psiquiátrica, mostrando a articulação do saber médico com as práticas de internamento e destas com instâncias sociais como a política, a família, a Igreja, a justiça, entre outras.

QUADRO 1

Regras de formação discursiva para uma arqueologia do modernismo brasileiro

Critérios de formação discursiva Regras de formação

Nível do referente Arquiteto brasileiro Arquitetura

Arquitetura brasileira

Arquitetura moderna brasileira Nível das modalidades enunciativas Artigo

Depoimento Entrevista Resenha Narrativa

Nível da rede teórica e conceitual Arquitetura e arquiteto Arquitetura, arte e cultura Arquitetura e espaço urbano

Arquitetura e realidade econômica e social Criatividade

Critérios técnicos construtivos Expressão plástica e formal Identidade arquitetônica Perspectivas

Política e apoio oficial Precursores, pioneirismo Repercussão, divulgação

Nível das possibilidades estratégicas Arquitetura como fato estético e cultural Arquitetura como fato social e ideológico

4.6 Os fragmentos textuais transformados em arquivo na relação entre