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3 A EXPERIÊNCIA DO SUJEITO ATRAVESSADO PELA MULTIPLICIDADE

3.3 As relações entre história e discurso na investigação arqueológica

A démarche foucaultiana ensejou novas relações entre o sujeito, o enunciado e a história. Nessa reorientação epistemológica, o discurso tem a condição de acontecimento: um fato da história que, em conjunto com o domínio visível dos acontecimentos não discursivos, exprime as condições de historicidade de uma época. Segundo Deleuze (2005, p.58), “O que Foucault espera da história é esta determinação dos visíveis e dos enunciáveis em cada época, que ultrapassa os comportamentos, as mentalidades, as idéias, tornando-as possíveis.”

Associada à instauração dessa nova historicidade, a própria noção de sujeito foi desalojada de sua superioridade imanente, revelando a sua incapacidade de constituir-se em ente ordenador da história e do discurso. Foucault (1987) argumenta que tratar a história como um discurso contínuo e a consciência humana como o sujeito originário de toda a prática são faces de um mesmo sistema de pensamento, onde o tempo é concebido sempre em termos de totalização. Destaca que é preciso acolher o discurso no momento de sua irrupção, tratando-o no jogo da instância do seu acontecimento e não sendo necessário remetê-lo à longínqua presença da origem.

A crítica à gravitação dos acontecimentos históricos em torno de uma “linha mestra” central, tranqüilizadora de todo o devir, é uma das referências

mais presentes na sua arqueologia. Como discutido, o seu pensamento posicionou-se em favor da desconstrução dos processos de totalização que aprisionavam o sujeito na hegemonia de uma continuidade irremediável. Foucault (1987) propõe que a formulação dessa nova história, efetivamente contemporânea das pesquisas psicanalíticas, lingüísticas e etnológicas iniciadas no século XX, deva ser pautada pela primazia do descontínuo e pela ruptura com a noção das grandes estruturas fixas do pensamento histórico clássico.

Para a história, na sua forma clássica, o descontínuo era simultaneamente o dado e o impensável: o que oferecia sob a forma de acontecimentos, instituições, idéias ou práticas diversas; era o que devia ser contornado, reduzido, apagado pelo discurso da história (FOUCAULT, 2005, p. 84).

Assim, destaca o papel privilegiado a ser exercido pelo descontínuo, que se transforma de obstáculo a prática, num conceito operatório que inverte o negativo da leitura histórica e dos fenômenos de ruptura, revelando-os como elementos positivos e fazendo reaparecer os saberes desqualificados pelos discursos hierarquizados. Desta forma, a operação foucaultiana incorpora a nova noção de finitude, que se instituiu a partir do século XIX, aos domínios do conhecimento que têm a condição humana como objeto.

Ao imprimir às marcas históricas da descontinuidade as noções do jogo e do acaso, a sua construção teórica aproximou-se do “Nietzsche jovem” da crítica à excessiva sistematização científica da história. Percorrendo toda a démarche nietzschiana, Foucault (2006, p. 26) considera que esta não parou de se opor, desde a segunda das Considerações Extemporâneas, a “[...] uma história que teria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, [...] e dar a todos os deslocamentos passados a forma de reconciliação.”

A rejeição a estruturas de totalidade e o sentido da história e dos enunciados como expressão da multiplicidade são alicerces presentes em A arqueologia do saber: “Eis o que é um grupo de enunciados, ou mesmo um enunciado sozinho: multiplicidades.” (DELEUZE, 2005, p. 24). Segundo Souza

(2000), Foucault refuta um lugar privilegiado de onde se possa encarar a verdade12 e a vê como múltipla, se exprimindo a partir de formulações diversas em que cada nova experiência produz uma contribuição inédita. De fato, a sua noção de verdade é tributária de Nietzsche, se dispersando muito mais pela superfície do que no interior idealizado, como ilustra a exterioridade do percurso de Zaratustra.

Deleuze (2005) afirma que o livro de Foucault significou o passo mais decisivo rumo a uma teoria-prática das multiplicidades, aproximando-se do caminho literário de Maurice Blanchot. Argumenta que, de forma similar, este último toma, na lógica de sua literatura, a ligação mais rigorosa entre o singular, o plural, o neutro e a repetição, rejeitando a forma de uma consciência, de um sujeito e do sempre fundo de um abismo indiferenciado.

No âmbito do estatuto do discurso-objeto, A arqueologia do saber sintetizou os quatro pontos principais presentes em sua investigação: a) o discurso não deve ser tratado como documento, ou seja, como matéria inerte que opera como signo de uma outra coisa. Deve ser compreendido na qualidade de monumento, um objeto com volume próprio, relacionado e organizado em séries de repartições com outros enunciados, ocupando uma posição específica que nenhum outro discurso poderia ocupar; b) a arqueologia não procura ser uma transição contínua entre um discurso e outros que o precedem ou sucedem; c) a arqueologia não se ordena pela figura soberana da obra, dado que define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais. A instância do sujeito criador lhe é insuficiente; d) finalmente, a arqueologia não busca resgatar o núcleo fugidio em que ocorre a troca de identidade entre o autor e a obra, onde o pensamento permanece o mais próximo de si, de forma quase inalterada, e a linguagem ainda não se desdobrou na dispersão espacial e sucessiva do discurso. O que apresenta é a descrição sistemática do discurso-objeto (FOUCAULT, 1987).

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Para Charaudeau e Maingueneau (2004), o saber, na abordagem foucaultiana, não se submete às regras lógicas do verdadeiro/falso, uma vez que a sua eficácia deriva da historicidade dos discursos que o constituem.

A contribuição de sua pesquisa arqueológica estabelece um deslocamento em relação à hermenêutica tradicional e recupera as impressões materiais e enunciáveis que o discurso deixa de si próprio. Assim sendo, os dispositivos de enunciação relacionam-se com as materialidades não discursivas, ou visibilidades, de forma não subordinada, ativando, num segundo momento, um sistema de forças e trocas entre saberes e poderes. Como bem rememora Foucault (1985), ao final do segundo capítulo de As palavras e as coisas, o sentimento transcendental e a erudição clássica partilhavam uma hermenêutica comum, não havendo diferenças entre as marcas visíveis dispostas por Deus na superfície da Terra (as coisas) e as palavras legíveis da Escritura ou dos sábios da Antiguidade.

3.4 A noção de formação discursiva como regra de dispersão dos enunciados