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2 A EMERGÊNCIA DA NOVA ARQUITETURA BRASILEIRA

2.4 ACONTECIMENTO 4: a reforma do ensino da Escola Nacional de Belas-

2.5.10 Brasília e a poiesis utópica moderna

Sob o aspecto político-estratégico, a construção de Brasília fez parte das ações desenvolvidas pelo Governo Juscelino Kubitschek (1956-1960) na direção da modernização do Brasil e de sua inserção no grupo das nações desenvolvidas. A necessidade de integrar vastas áreas do interior do país ao projeto de desenvolvimento nacional foi a justificativa da transferência da capital federal para o Planalto Central, tornando-a o marco da ocupação e incorporação de novas fronteiras sociais, culturais e econômicas. Para Holston (2004, p. 159), fixando-se no centro dessa terra plana, ”Brasília aparece como um ponto de exclamação no horizonte, como uma idéia heróica e romântica, a acrópole de uma enorme e vazia extensão.”

Para coordenar os trabalhos de implantação da nova capital, o Presidente Juscelino Kubitschek instituiu em 1956 a NOVACAP - Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. Oscar Niemeyer, nomeado diretor técnico da Companhia, foi responsável pelo desenvolvimento dos projetos de seus principais edifícios. No ano seguinte, o concurso público para a escolha do plano piloto teve 26 concorrentes, que seguiram, em sua maioria, as teses do urbanismo modernista, com a espacialização das funções de habitação, trabalho, lazer e circulação, defendidas na Carta de Atenas (CAVALCANTI, 2006). Elaborada por Lucio Costa, a proposta escolhida diferenciou-se por

adotar, de forma contundente, a escala monumental no espaço cívico do poder, numa aproximação com o ideário neoclássico. A Esplanada dos Ministérios expressou essa monumentalidade, emoldurando um eixo de grande vigor hierárquico que tinha na Praça dos Três Poderes o seu ponto terminal (FIG. 25).

Como irrupção de uma nova centralidade, Brasília foi concebida como cidade-capital: uma civitas moderna que atribuiria à civilização brasileira a condição de vanguarda no mundo contemporâneo; o objeto-signo da ruptura com o passado não industrial que ainda identificava o país. No memorial descritivo, Costa (1997, p. 283) afirma que a cidade foi planejada não apenas para “[...] preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital.” Conforme Arantes (2004, p. 101), nos anos 1950 a arquitetura moderna representava para o país a “passagem de colônia à nação, simbolizada em sua plenitude retórica máxima, na fundação de uma capital.”

O caráter de civitas propiciou o primado do espaço público aberto sobre o espaço construído, das áreas de uso coletivo sobre as áreas privadas. O paradigma do espaço urbano tradicional das cidades brasileiras, no qual a “rua corredor” articula a relação entre o espaço público e as massas construídas, foi substituído pela inserção de grandes áreas verdes e por um sistema viário autônomo em relação ao espaço edificado. Segawa (1999) situa Brasília sob o signo da hierarquia, organizada segundo quatro grandes escalas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. Argumenta que o sentido de hierarquia permeou o desenho da cidade com uma clara definição da dimensão pública (eixo monumental), da dimensão privada (eixo residencial) e de setores especializados – hoteleiro, bancário, industrial, lazer, entre outros.

Em termos de espacialização, a nova capital partilhou valores herdados do urbanismo modernista de matriz corbusieriana, que passariam a ser fortemente combatidos, dos anos 1960 em diante, por críticos como Jane Jacobs (1916-2006). Mas, apesar dos atributos espaciais mencionados,

Brasília não se constituiu apenas no desdobramento tardio dos princípios da Carta de Atenas, visto que esses seriam insuficientes para traduzir a essência de sua criação. A sua fundação não foi motivada pelo objetivo ético de superação da crise da habitação coletiva e, portanto, a sua condição de cidade- capital a distancia das experiências urbanas do modernista europeu.

O plano urbanístico de Lucio Costa foi um gesto de criação “a partir do nada”, num sítio sem referências topológicas, no qual a arquitetura irrompeu como paisagem na imensidão plana do cerrado brasileiro. Brasília sinalizou um deslocamento no pensamento de Lucio Costa em relação às formulações teóricas que defendeu nos anos 1930 e 1940, de síntese entre o passado, o presente e o futuro. Para Wisnik (2004), no artigo Muita construção, alguma arquitetura, e um milagre, de 1951, o arquiteto, num gesto de autocrítica, reconheceu a ausência de uma tradição construtiva local determinante, capaz de se contrapor à força da indústria. Nesse texto, Costa7 (1951) apud Wisnik (2004) analisa que a arquitetura estaria sujeita a trilhar os rumos propostos pela força avassaladora da idade da máquina. De fato, como cidade construída para funcionar sob a velocidade do automóvel, Brasília representava o que a tecnologia brasileira poderia produzir de mais original e avançado, uma vez que nos outros campos da técnica a distância em relação aos países mais desenvolvidos era bem maior.

Zein (2005) avalia que o grupo moderno carioca não entrou coeso na década de 1950, explicitando-se as divergências e estranhamentos entre os seus principais protagonistas. Conclui que, sob o aspecto arquitetônico, Brasília não configurou um exercício de continuidade, muito menos de auge, de seu precedente moderno imediato realizado no Rio de Janeiro. Neste ponto, a arquitetura da nova capital não se filia de maneira congruente à experiência carioca, tendo em vista que esta extraía parte de seu valor visual do contraste entre as suas propostas e um entorno imediato constituído pela trama tradicional da cidade (ZEIN, 2005).

7 COSTA, Lucio. Muita construção, alguma arquitetura e um milagre. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,

Em relação ao trabalho de Oscar Niemeyer, a economia formal adotada pelo arquiteto nos edifícios que projetou para Brasília consolidou uma renovação, iniciada nos anos 1950, na sua trajetória profissional. Conforme o seu próprio depoimento, “As obras de Brasília marcam, juntamente com o projeto para o Museu de Caracas, uma nova etapa no meu trabalho profissional. Etapa que se caracteriza por uma procura constante de concisão e pureza [...]“ (NIEMEYER, 1958, p.3). Os primeiros sinais dessa ruptura estética foram percebidos no projeto desenvolvido entre 1951 e 1953 para o Conjunto Comemorativo do IV Centenário da Cidade de São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Segundo Zein (2005), Niemeyer desenhou dois projetos similares para o conjunto, sendo que o segundo inseriu-se nessa busca de maior concisão formal, tornando-se indicativo do teor das mudanças identificadas por Niemeyer em sua obra a partir do projeto do Museu de Caracas (1954). Para a autora, os novos territórios formais simplificados e escultóricos explorados pelo arquiteto foram demonstrados a plena força nos paradigmas que desenvolveu nas obras de Brasília. Como exemplo da reorientação de seu trabalho, os palácios da Alvorada e do Planalto foram concebidos como caixas de vidro sustentadas por elementos portantes escultóricos (FIG. 26 e 27). Numa constatação convergente com o pensamento de Lucio Costa das décadas de 1930 e 1940, Niemeyer (1960, p.7) afirma que “[...] essas formas garantiram aos Palácios, por modestas que sejam, características próprias e inéditas e – o que é mais importante para mim – uma ligação com a velha arquitetura do Brasil colonial.” Elemento dominante da Praça dos Três Poderes, a monumentalidade do edifício do Congresso Nacional é obtida na surpreendente combinação de sólidos geométricos que se tornam o risco referencial no horizonte da Esplanada dos Ministérios (FIG. 28).

Conforme Souza (2000), a acepção grega de poiesis ou de poiein vincula o conceito de arte ao ato de “imaginar e produzir”. O termo, articulado com a investigação filosófica de Michel Foucault, auxilia no entendimento dos processos de subjetivação e formação da individualidade como algo imaginado e construído pelo próprio sujeito (SOUZA, 2000). Brasília significou um acontecimento criativo de grande densidade, um momento de poiesis da

arquitetura moderna brasileira, engendrado por parte da elite política e intelectual do país. A sua inauguração em 1960 configura a materialização da utopia do primeiro construto moderno em escala urbana do mundo, originado num país periférico que buscava, justamente, se “imaginar e construir”.

2.6 ACONTECIMENTO 6: a repercussão internacional e o outro visto como