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2 A EMERGÊNCIA DA NOVA ARQUITETURA BRASILEIRA

2.3 ACONTECIMENTO 3: a contribuição estrangeira

Conforme discutido, o aspecto mais importante da Semana de Arte Moderna de 1922 foi ter incitado o debate cultural no país, com críticas à produção academicista vigente. Nesse ambiente de maior arejamento cultural, o tema da arquitetura moderna foi introduzido no Brasil através de Gregori Warchavchik, arquiteto russo, formado em Roma, que tinha sido contratado pela Companhia Construtora de Santos em 1923. Na edição de primeiro de novembro de 1925 do jornal carioca Correio da Manhã, o arquiteto publicou o artigo “Acerca da arquitetura moderna”. Tratava-se da tradução para o português do texto original veiculado, em 14 de junho do mesmo ano, no jornal da colônia italiana de São Paulo Il Piccolo, com o título de “Futurismo?” (FARIAS, 1992).

O artigo formulava uma proposta de arquitetura inspirada nos cânones modernistas de Le Corbusier. Entre outros pontos, condicionava a lógica da beleza à evolução de cada época, condenava a imposição das fachadas postiças da arquitetura eclética e exaltava a racionalidade das técnicas industriais, em especial da estandardização (WARCHAVCHIK, 2006a). Segundo Martins (2006), o texto não trouxe um impacto imediato significativo, mas continha as linhas mestras da argumentação que se desenvolveria nos anos seguintes, ligada à historicidade da noção de beleza, à oposição entre a racionalidade construtiva da engenharia e a aplicação do ornamento por parte dos arquitetos de formação acadêmica e à contradição entre a vida moderna e a adoção de estilos.

Em outubro de 1925, Rino Levi (1901-1965), à época estudante de arquitetura em Roma, assinou no jornal O Estado de São Paulo um artigo4 que era dividido em duas partes: a primeira tratou de aspectos da nova arquitetura,

reconhecendo a importância do movimento moderno em curso, pautado pela simplicidade e praticidade da técnica empregada, no qual se verificava a utilização de poucos elementos decorativos e a combinação da técnica e do elemento artístico; a segunda parte trouxe considerações do autor sobre a estética das cidades, que deveria ser um estudo necessário ao arquiteto, em especial no Brasil onde as cidades estavam em pleno desenvolvimento (LEVI, 2003). Para o futuro arquiteto, a partir da experiência do que ocorria no exterior, o tratamento a ser dado às cidades brasileiras deveria levar em conta as suas condições particulares de clima, natureza e costumes. Diferentemente do artigo pioneiro de Warchavchik, a visão crítica de Rino Levi apontava na direção de uma síntese entre o local e o universal que acompanharia a arquitetura moderna brasileira sob a liderança de Lucio Costa.

Após essa primeira discussão sobre a nova arquitetura, Le Corbusier exerceria, daí em diante, a sua notável influência sobre toda uma geração de arquitetos brasileiros. Em 1929, o mestre franco-suíço empreendeu a sua primeira viagem à América do Sul, passando pela Argentina e Uruguai, seguindo depois para São Paulo e Rio de Janeiro, onde proferiu uma série de palestras aos arquitetos locais. Conforme Mindlin (1956), esse encontrou um ambiente mais ou menos preparado para a disseminação de suas idéias, uma vez que já haviam ocorrido no país experiências modernistas, entre elas as residências de Warchavchik e o projeto de Flávio de Carvalho para o Palácio do Governo de São Paulo (1927).

A presença do elemento estrangeiro, referenciada em Gregori Warchavchik, Rino Levi e Le Corbusier, assinalou que o debate acerca da aplicabilidade da arquitetura moderna no Brasil não poderia ser de caráter inteiramente local, desvinculado de pressupostos teóricos oriundos do centralismo europeu que o legitimasse, ao menos, parcialmente. Mas, poderia ser o elemento estrangeiro deglutido na mesma velocidade de uma assimilação antropofágica? Certamente que não. Pela própria tectonicidade dos objetos arquitetônicos, a nova arquitetura exigiu que as influências externas fossem cautelosamente articuladas com os elementos locais, de forma a expressar o desenvolvimento de seu tempo e lugar.

Alguns anos depois, essa articulação foi necessária para validar os projetos que seriam desenvolvidos para o Edifício-Sede do Ministério da Educação e Saúde, bem como para a futura Cidade Universitária. Em 1936, Lucio Costa solicitou ao Governo Getúlio Vargas a contratação de Le Corbusier como consultor desses trabalhos em andamento. O objetivo foi buscar respaldo à proposta que vinha sendo conduzida por arquitetos ainda inexperientes no tratamento da linguagem moderna. Negociado diretamente por Gustavo Capanema (1901-1985), Ministro da Educação e Saúde, junto ao Presidente Vargas, o convite significou para Le Corbusier a oportunidade de produzir um construto moderno de grande porte para um programa estatal, tendo em vista as dificuldades de inserção de suas idéias na arquitetura oficial francesa, dominada pelos arquitetos da Escola de Belas-Artes (CAVALCANTI, 2006).

Em sua chegada ao país, Le Corbusier não aprovou o terreno definido para o prédio, junto à Esplanada do Castelo no centro do Rio de Janeiro. Conforme Costa (1975), Le Corbusier considerou o terreno inadequado, porque logo estaria cercado de edifícios inexpressivos; preferiu, por outro lado, que o Ministério estivesse voltado para o mar e o Pão de Açúcar. Em sua movimentação pela cidade, o arquiteto identificou outro terreno, junto à Baia da Guanabara, próximo ao atual Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM). Para esse terreno, desenhou um primeiro projeto. Diante da impossibilidade de dispor da área, foi-lhe solicitado um novo estudo para o terreno original. Bruand (1981) observa uma divergência característica entre as duas propostas de Le Corbusier e a versão final produzida pela equipe brasileira após a sua partida. Aponta a horizontalidade contida nas suas soluções em contraste com a verticalidade do projeto brasileiro, que liberava a área do terreno para a circulação. Destaca a solução inteiramente original da equipe comandada por Lucio Costa, dotada de lirismo próprio e distante da concepção mais clássica do mestre europeu, apesar de inspirada no seu traço inicial.

Os esboços para o Edifício-Sede do Ministério da Educação e Saúde e para a Cidade Universitária (projeto não executado) não foram as principais contribuições de Le Corbusier nas quatro semanas em que trabalhou com os

arquitetos locais. Tanto Bruand (1981) quanto Cavalcanti (2006) consideram a sua presença no país decisiva para o desenvolvimento da expressividade plástica e inventiva de Oscar Niemeyer, com quem partilhou a importância dos aspectos formais na arquitetura. Com o seu retorno à Europa, Niemeyer passou a ter ascendência sobre a equipe de trabalho, solucionando os problemas de maior relevo do projeto do Ministério (CAVALCANTI, 2006).

Bruand (1981) enumera outros legados de Le Corbusier ao grupo carioca: a convivência com o seu método de trabalho, pelo qual toda a reflexão gerava um desenho que, por sua vez, gerava outra reflexão; a já citada preocupação com aspectos formais; e a valorização dos elementos locais no uso de materiais construtivos. Este último enfoque convergia com as aspirações de Lucio Costa, que advogava para a nova arquitetura brasileira o profundo conhecimento das boas soluções do passado colonial. Estas, longe de fornecerem cópias para a arquitetura do presente, deveriam ser criticamente incorporadas ao repertório contemporâneo.

A convivência entre diferentes arquitetos indicou que, apesar do patrocínio do Governo Getúlio Vargas, uma nova trajetória na arquitetura do país iniciou-se longe do aparato estatal, surgida no contato diário de idéias decorrentes de uma microfísica de procedimentos e discussões que envolveram os sujeitos diretamente responsáveis pelo projeto que assinalaria uma démarche no modernismo brasileiro. O exemplo da concepção desse edifício permite desvelar regiões situadas, de forma autônoma, na periferia do núcleo central de uma estrutura de poder, as quais são decisivas para a produção dos construtos arquitetônicos.

2.4 ACONTECIMENTO 4: a reforma do ensino da Escola Nacional de Belas-