• Nenhum resultado encontrado

2 A EMERGÊNCIA DA NOVA ARQUITETURA BRASILEIRA

2.1 ACONTECIMENTO 1: o movimento moderno europeu como expressão da técnica

A Revolução Industrial produziu um surto de crescimento urbano no continente europeu sem precedentes em toda a sua história, com o deslocamento e reorientação das estruturas de poder que atuavam no domínio das cidades. De fato, o capitalismo que irrompeu no final do século XVIII encontrou no território da cidade a solução de sua equação econômica: novos meios de produção demandando simultaneamente uma maior atração de mão- de-obra e um maior mercado consumidor concentrado. Conforme Frampton (2000), a cidade finita, que chegou a existir nos quinhentos anos anteriores, foi totalmente transformada, no lapso de um século, pelas forças técnicas e sócio- econômicas inéditas que emergiram no período. As alterações da dinâmica urbana foram contempladas na estruturação de um novo domínio do saber. Esse refletiu sobre o grande contingente populacional e as condições insalubres reservadas à maior parte do proletariado, que caracterizaram a chamada crise da cidade industrial européia do século XIX e levaram ao surgimento das primeiras teorias pré-urbanistas de reorganização do espaço urbano (CHOAY, 2003).

O desenvolvimento da disciplina do urbanismo, naquele momento embrionária e quase utópica, foi incapaz, isoladamente, de produzir um novo ordenamento da paisagem urbana em degradação. A arquitetura do período foi marcada pela intensa profusão de revivals historicistas, os quais não se ligavam a uma expressão própria de seu tempo, mas, noutra direção, a uma apropriação superficial das formas passadas do repertório clássico. Destacava- se, inserido nesse cenário, o emprego acrítico do ornamento reproduzido em

série como signo de uma cultura material2 sem identidade própria. Diante das novas condições sociais e econômicas produzidas pelo crescimento urbano e industrial, o historicismo arquitetônico não se configurou numa linguagem dotada nem do instrumental técnico nem da legitimidade ética que lhe possibilitassem a solução dos problemas da cidade e da habitação do homem comum.

Essa ausência de significado atingiu uma parcela expressiva tanto das artes tradicionais quanto da arquitetura do século XIX. Os seus construtos não mais veiculavam conteúdos de verdade na articulação entre a técnica, a forma, o real e o simbólico, mas revelavam o simulacro de objetos-signo clássicos apropriados pela burguesia emergente. Neste sentido, a crítica ao ornamento na arquitetura abrigava uma similaridade com a crise do objeto na pintura. Para Santaella (2004), a suspeição quanto à presença do objeto na pintura era uma crise da representação pictórica, que lançava dúvidas sobre a sobrevivência da própria arte tradicional, cujo fim havia sido anunciado por Hegel. Uma nova relação de forças foi estabelecida e as vanguardas artísticas do período entrincheiraram-se na luta por uma mudança conceitual que promovesse, como observa a autora, a desconstrução gradual, sistemática e implacável dos valores herdados do Renascimento.

As inovações da técnica construtiva introduzidas pela Revolução Industrial, com a evolução da engenharia e dos materiais utilizados, abriram caminho, na segunda metade do século XIX, para o surgimento de experimentações da linguagem arquitetônica fundadas na expressão do progresso tecnológico. Como exemplo, as estruturas de ferro foram utilizadas largamente em edifícios públicos com o intuito de vencer grandes vãos. A racionalidade estrutural passou a dominar as soluções adotadas nos programas dos novos edifícios. Segundo Frampton (2000), o racionalismo estrutural de teóricos como Viollet-le-Duc (1814-1879) representava um contraponto às irrelevâncias ecléticas do historicismo e serviria de inspiração para a vanguarda do último quartel daquele século.

2 O termo cultura material pode ser entendido como a expressão plástica nos domínios estéticos da arte,

Na transição para o século XX, surgiram no panorama da arquitetura européia as primeiras vanguardas funcionalistas. Exemplo desses ideais racionalistas, o trabalho de Adolf Loos (1870-1933), arquiteto radicado em Viena, compreendeu a formulação de uma arquitetura orientada para a economia na construção, tendo como base a crítica radical à presença do ornamento no edifício, a qual foi objeto do seu ensaio Ornamento e crime de 1908. Precursor da arquitetura racionalista, Loos3 (1910) apud Frampton (2000, p. 105) reclamava a separação entre arte e arquitetura, como demonstra a sua citação de que “Só uma parte muito pequena da arquitetura pertence à arte: o túmulo e o monumento. Tudo o mais, tudo quanto serve a um fim, deve ser excluído dos domínios da arte.”

A crise da cidade industrial e a necessidade de solução do problema da habitação coletiva foram vetores de uma nova correlação de poder, na qual a arquitetura racional-funcionalista, ancorada na justificativa ética, se contrapôs ao historicismo e a sua latente alienação frente à realidade do espaço urbano. Na Alemanha, arquitetos como Peter Behrens (1868-1940) e Walter Gropius (1883-1969) tornaram o tema das instalações industriais um programa relevante para a arquitetura, que passou a diversificar o seu espectro de atuação. Nesse período, a arquitetura aproximou-se de outros domínios estéticos como o design industrial e os ofícios artesanais, em experiências como a Deutsche Werkbund e, principalmente, a Bauhaus. Na América do Norte, Frank Lloyd Wright (1867-1959) produziu uma arquitetura de características próprias, ligadas às tradições da cultura americana, que iria influenciar os arquitetos europeus especialmente pelo seu desenvolvimento da planta livre (GIEDION, 2004).

Na década de 1920, com o término da Primeira Grande Guerra (1914- 1918), esses deslocamentos integraram um conjunto de forças que consolidaram o chamado Movimento da Arquitetura Moderna. Esse não foi um projeto hegemônico, dispersando-se numa série de acontecimentos que envolveram atores diversos, como as vanguardas, os seus opositores

historicistas, os interesses da burguesia dominante, o pensamento ético e filosófico e as novas técnicas da engenharia. Todos esses fatos históricos, em suas irrupções e descontinuidades, encontravam-se imersos na efervescência social e econômica da cidade européia do início do século passado.

A figura proeminente de Le Corbusier irrompeu como o principal ideólogo do modernismo europeu a partir da década de 1920. Inspirado na eficiência e precisão da máquina, Le Corbusier (2002) propõe, nos textos reunidos em Por uma arquitetura, a utilização da lógica da concorrência para o estabelecimento de padrões que levem ao enfrentamento pela arquitetura do problema da perfeição. Mostra que, na lógica mecanicista, o arquiteto moderno deve encontrar o ideal de beleza, que se torna inseparável da racionalidade. Define, então, os cinco pontos do edifício modernista: o pilotis, a estrutura independente, a planta livre, a fachada livre e o terraço-jardim.

Giedion (2004) observa, por outro lado, que o ideário corbusieriano não abandonou pressupostos de composição da tradição clássica, entre eles o ordenamento e o sistema de proporções, aos quais o edifício deveria estar submetido. O seu posicionamento sinalizou o retorno e a atualização dos valores estéticos da cultura clássica, após o período em que vanguardas mais combativas criticavam paradigmas dessa tradição. A sua retórica não ficou restrita ao continente europeu, influenciando arquitetos em diversas partes do mundo. Notadamente no Brasil, a obra teórica de Le Corbusier impactou tanto a trajetória de Gregori Warchavchik e Flávio de Carvalho (1899-1973), em São Paulo, quanto o grupo moderno do Rio de Janeiro.

2.2 ACONTECIMENTO 2: o nacionalismo nas artes e arquitetura brasileira no início do século XX

O Brasil do início do século XX era uma nação periférica no cenário internacional, irrompendo no país com certo atraso o correlato local às vanguardas artísticas e arquitetônicas européias.

Os movimentos de renovação cultural, a partir da segunda metade da década de 1910, são pontuais, localizados, inicialmente, em São Paulo e, mais

tarde, também no Rio de Janeiro. Esse novo panorama cultural emergiu paralelamente à aceleração do processo de industrialização e urbanização do país, que caracterizou o período final da República Velha.

Conforme destaca Bruand (1981), São Paulo, por exemplo, passou de 30.000 habitantes em 1870 para cerca de 500.000 moradores meio século depois. A industrialização rompeu o equilíbrio de forças no país, até então marcado pela acomodação regional dos interesses da aristocracia rural, expondo a ambição da burguesia urbana em deter uma maior parcela de poder (SODRÉ, 2003). Como centro financeiro emergente, São Paulo abrigou novas forças econômicas, políticas e artísticas que apoiaram um pensamento vanguardista e as primeiras manifestações contra os valores da arte tradicional acadêmica. Amaral (1979) aponta, além do desenvolvimento econômico, o sentimento nativista paulista desenvolvido com a Primeira Grande Guerra e a inexistência de escolas oficiais de arte entre os fatores que tornaram a cidade um centro renovador da cultura no país. Mostra que já em 1915 Oswald de Andrade reclamava a conscientização dos jovens artistas em torno de uma arte nacional autônoma.

Nesse período de revigoramento cultural, a exposição dos trabalhos da pintora Anita Malfatti na capital paulista, no ano de 1917, marcou o início do movimento moderno no país (SEGAWA, 1999). A exposição recebeu violentos ataques por parte do escritor Monteiro Lobato (1882-1948) e, em sua defesa, articularam-se artistas e intelectuais, entre eles Oswald de Andrade, Mário de Andrade, o escritor Guilherme de Almeida (1890-1969) e o pintor Di Cavalcanti (AMARAL, 1979). A esses nomes iriam se juntar o poeta Menotti del Picchia e o escultor Victor Brecheret (1894-1955) como futuros participantes da Semana de Arte Moderna de 1922.

A chamada corrente “futurista” foi além desses nomes e não se constituiu num núcleo intelectual homogêneo. Aquino (2003) afirma que assim eram denominados todos aqueles que se posicionaram contra o academicismo vigente. Avalia que as manifestações culturais nos anos de 1920 e 1921 foram marcadas por motivações díspares, destacando-se o nacionalismo artístico, o

individualismo, a exaltação do progresso da cidade de São Paulo e um certo caboclismo da vida agrária.

Para Amaral (1979), a Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, teve um claro objetivo destruidor de tudo aquilo que se convencionou denominar por passadismo. A autora avalia tratar-se de uma radical oposição a um tipo de arte e literatura importadas, com marcas de uma civilização, ainda do século XIX, que os protagonistas da Semana de 1922 consideravam superada. A idéia de organizar a mostra de artes e literatura no ano do centenário da independência é atribuída a Di Cavalcanti e a sua viabilização contou com o patrocínio de figuras da alta burguesia local (BRUAND, 1981). As propostas no campo da literatura dominaram o evento, sendo seguidas pela mostra de artes plásticas. A arquitetura teve uma participação inexpressiva, incompatível com a projeção que seria alcançada nas décadas seguintes pela nova arquitetura brasileira.

Bruand (1981) ressalta a ausência de unidade crítica entre os participantes e as significativas contradições internas, sendo a exposição de arquitetura um exemplo dessa falta de coerência. Descreve que a sessão consagrada à disciplina ficou a cargo de Antonio Garcia Moya, arquiteto espanhol radicado no Brasil e autor de projetos inspirados na tradição mourisca ibérica, que, nas horas livres, produzia desenhos de uma arquitetura visionária, bem ao gosto dos futuristas brasileiros.

A Semana de Arte Moderna de 1922, desenvolvida numa atmosfera de escândalo e relativa anarquia, não significou, por si só, um marco de revolução nas artes brasileiras, sendo a sua contribuição superestimada por muitos, como assinalam autores como Sodré (2003) e Bruand (1981). O mérito maior da mostra foi provocar uma tomada de consciência em artistas e intelectuais da época, produzindo efeitos positivos de renovação das tendências culturais, inclusive no campo da arquitetura (MINDLIN, 1956).

Amaral (1979) afirma que, somente num segundo estágio do movimento modernista, o viés nacional tornou-se mais concreto, destacando, como exemplo, a explicitação dessa temática, desde 1924, com o “Manifesto Pau

Brasil” de Oswald de Andrade. Ao final da década, o movimento antropofágico, liderado pelo escritor, tentou mergulhar até as raízes da cultura primitiva brasileira, ao mesmo tempo em que assimilava da influência estrangeira os atributos de seu interesse, num “ato de devoração” que buscava inverter a relação colonizador/colonizado (LINO, 2004).

Todos esses deslocamentos permitiram o surgimento de um modernismo nas artes brasileiras com feições próprias, que se revelou tributário de operações de empréstimo tanto de elementos locais quanto estrangeiros. A ausência de uma massa crítica suficientemente sedimentada tornou indispensável que esses intelectuais e artistas recorressem à “matriz” epistemológica européia, mas com a recusa a seu centralismo. Por outro lado, o viés nacionalista emergiu com o retorno a elementos da realidade próxima, produzindo uma renovação da prática cultural brasileira através do movimento de auto-identificação.

2.2.1 O movimento neocolonial e a busca de uma arquitetura nacional

Se nas artes e literatura a aproximação entre as tendências modernas e os valores nacionais consolidou-se após a Semana de Arte Moderna, na arquitetura essa inflexão nacionalista e com traços modernizadores ocorreu ainda na década de 1910. Amaral (1979) situa o surgimento, a partir de 1914, de um sentimento nativista na arquitetura brasileira com a conferência A arte tradicional brasileira, proferida pelo engenheiro português Ricardo Severo (1869-1940) na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. Em sua trajetória, Severo desenvolveu um discurso ambíguo, vinculando o passado colonial brasileiro a Portugal, reverenciando, por um lado, figuras como Valentin e Aleijadinho e, por outro, incorporando em seus projetos elementos do norte de sua pátria natal (LEMOS, 1998).

A autora analisa, na adoção inicial da linguagem no país, a sua predominância em obras residenciais dos estratos da população de maior renda, difundindo-se, posteriormente, para edifícios de uso coletivo, como escolas e igrejas, e nos de atividades institucionais. Segundo Segawa (1999), a

arquitetura neocolonial, introduzindo o contraponto regionalista na busca da identidade nacional, pode ser considerada um fator de renovação da cultura arquitetônica brasileira do período. De fato, ao propor a imersão no passado colonial brasileiro, a sua produção representou, mesmo com suas limitações, uma experiência de modernidade no país, resgatando preceitos racionais e formais de construção adequados às condições do país.

A partir de 1919, o neocolonial se tornou mais presente também no Rio de Janeiro, graças à atuação do médico e historiador de arte José Mariano Filho (1881-1946), que contou com o apoio de setores da sociedade carioca. Diferenciando-se da arquitetura acadêmica, o movimento neocolonial soube, estrategicamente, inserir o discurso nacionalista num momento da vida brasileira marcado pelo patriotismo oriundo das comemorações do Centenário da Independência. Bruand (1981) constata o sucesso obtido pela linguagem na Exposição Internacional do Centenário, inaugurada em 1922, o que lhe possibilitou contar com o apoio oficial declarado. Aponta que, a partir de 1925, cada vez mais formandos da ENBA passaram a apresentar projetos neocoloniais, destacando-se alunos que depois abraçariam o ideário moderno. Ao final da década, inclusive, José Mariano Filho tornou-se diretor da instituição, evidenciando-se a hegemonia dos defensores da corrente.

Em termos técnicos e formais, a arquitetura neocolonial não configurou uma linguagem arquitetônica autêntica, no sentido de expressar as condições de seu tempo. Embora contribuindo para o debate sobre a adequação da arquitetura brasileira às características locais específicas, particularmente de clima e tecnologia, essas obras significaram, tanto quanto o academicismo vigente, um retorno à reprodução de formas do passado. Portanto, o uso predominante da tradição luso-brasileira não era a resposta conveniente às novas demandas de uma sociedade em fase de urbanização e industrialização, dado que os seus processos construtivos não contemplavam toda a potencialidade das inovações tecnológicas do mundo em transformação. Neste sentido, para Segawa (1999, p. 38-39), o neocolonial “afigurou-se como uma variação do ecletismo no que busca eleger um ‘estilo’ mais adequado para o

fim que se tinha em vista, num contexto de desconcertantes dilemas sobre a nova arquitetura do século 20 [...]”.