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A formação docente na visão de pensadores progressistas

CAPÍTULO 1 ANALFABETISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

3. Formação de professores: uma visão crítica

3.1 A formação docente na visão de pensadores progressistas

Paulo Freire afirma que “Não há docência sem discência”, nomeando o primeiro capítulo de seu último livro publicado em vida – Pedagogia da autonomia (FREIRE, 2007, p. 21). Nele, expõe uma série de exigências que, ao serem consideradas fundamentais ao exercício da prática educativa crítica, constituem-se em saberes indispensáveis à formação docente.

Iniciando a discussão do primeiro tema, o autor diz que “[...] ensinar não é transferir

conhecimento,mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (Ibid., p.

22, grifos do autor). Anuncia, assim, uma concepção de educação que entende o ato pedagógico como processo de conhecimento, o professor e o aluno como sujeitos produtores de conhecimento e a relação pedagógica, necessariamente, uma relação democrática.

Essa concepção, cujas bases conceituais já se encontram em sua primeira obra -

Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1979) - contrapõe-se à pedagogia

tradicional, que o autor denomina de educação bancária, porque considera o ensino um ato estrito de transmissão de conhecimento, o professor, o detentor do saber e o aluno, o ser passivo a quem cabe absorver os conteúdos transmitidos pelo professor (grifos meus).

Nessa primeira obra, Paulo Freire apresenta uma análise da pedagogia tradicional, ao desenvolver uma crítica radical à escola brasileira. Intensifica sua análise no livro Pedagogia

do oprimido (FREIRE, 1981), escrito no exílio após o golpe militar de 1964 no Brasil, ao

mesmo tempo em que aprofunda sua concepção crítica de educação, denominando-a de

concepção problematizadora, que vai sendo revista e ampliada ao longo das suas obras, até

o final de sua vida, em 1997 (grifos meus).

Ao criticar a escola brasileira pelo ensino de conteúdos desconectados da realidade social, econômica, política e cultural, pelas práticas pedagógicas autoritárias, conservadoras e discriminatórias, pelos métodos de ensino arcaicos, desvinculados da pesquisa, da produção de conhecimentos, afeitos à verbosidade e à memorização mecânica, dentre outras características, Freire propõe uma educação contextualizada, que possibilite o desenvolvimento da consciência crítica das camadas oprimidas, na perspectiva da sua emancipação.

A concepção bancária, ao privilegiar a memorização mecânica como meio de aprendizagem, em resposta à transferência de conhecimentos como meio de ensino, poda a curiosidade e freia a criatividade do educando e do educador, impede o desenvolvimento da autonomia de ensinar, estudar e aprender. Nesse processo pedagógico, a função do professor é depositar, nos alunos, os “conteúdos que são retalhos da realidade, desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão eles ganhariam significação” (Ibid., p. 65). Aos alunos cabe, paciente e disciplinadamente, receber os conteúdos, memorizá-los e repeti- los em exercícios e provas, que definem sua ascensão na carreira escolar.

Na concepção pedagógica crítica, o ato de aprender, em interação com o ato de ensinar, constitui um processo vivenciado por sujeitos cognoscentes, no qual “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. Nesse processo, afirma Freire: “[...]

quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e desenvolve [...] a curiosidade epistemológica, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto” (FREIRE, 2007, p. 24-25).

Ao revelar a dimensão epistemológica e democrática do processo pedagógico, as reflexões acima mostram a interconexão entre o ato de ensinar e o ato de aprender, ancorando a afirmação do autor:

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender (FREIRE, 2007, p. 23-24).

Convém ressaltar que a democratização da relação pedagógica, segundo a concepção pedagógica freireana, não anula o papel do professor na direção do processo pedagógico. Pelo contrário, redimensiona e amplia sua responsabilidade, exigindo-lhe competência para exercer a ação docente, com a autoridade que o papel lhe confere, por meio de conhecimentos e habilidades necessárias à prática pedagógica, conforme afirma o autor:

Especificamente humana, a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística, é moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais ligados à minha atividade docente (Ibid., p. 70).

Reforçando sua posição sobre a exigência da competência técnica do professor, que não deixa de ser política, dirigindo-se especificamente ao professor-alfabetizador, Freire indaga: “Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia? Sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita?” (Ibid., p. 81).

À competência técnica, que implica rigorosidade metódica, o autor associa a dimensão afetiva da prática pedagógica, exigida na formação do professor, consequentemente, em sua ação docente:

Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e de outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação (Ibid., p. 45).

A reflexão sobre a prática é um dos princípios fundamentais da formação docente recorrente no pensamento freireano. Em suas primeiras obras, Freire aborda a questão por meio do conceito de práxis, entendida como movimento de ação e reflexão, correspondente ao “quefazer” exercido exclusivamente pelos seres humanos: “[...] se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. [...] é teoria e prática”. Assim sendo, toda prática exige uma teoria que a ilumine, do contrário, o fazer humano poderá reduzir-se a um verbalismo ou a um ativismo (FREIRE, 1981, p. 145).

O autor retoma, em outros textos ao longo de sua obra, o princípio da reflexão sobre a prática como exigência da prática pedagógica crítica: “A prática pedagógica crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (FREIRE, 2007, p. 38)15. Portanto, se o pensar certo é uma condição para a

prática pedagógica crítica e se a prática pedagógica crítica requer uma reflexão crítica, então, esses devem ser conteúdos indispensáveis à formação docente.

Essa posição é compartilhada por Feldmann, em artigo que defende uma formação docente com qualidade social e compromisso político, apontada como tendência em pesquisas recentes na área:

As recentes investigações nacionais e internacionais sobre a formação de professores apontam a necessidade de se tomar a prática pedagógica como fonte de estudo e construção de conhecimento sobre os problemas educacionais, ao mesmo tempo em que se evidencia a inadequação do modelo racionalista-instrumentista em dar resposta às dificuldades e angústias vividas pelos professores no cotidiano escolar, embora seja esse o paradigma mais presente em nossas escolas. (FELDMANN, 2009, p. 75).

Tardif e Lessard (2005) também entendem o trabalho docente como uma profissão que, associada a outros requisitos necessários ao seu exercício, exige formação específica.

No estudo que desenvolvem a esse respeito, criticam as visões normativas e moralizantes, prevalecentes nas pesquisas sobre o trabalho docente e optam por desenvolver uma análise que privilegia o fazer cotidiano dos professores em seus locais de trabalho, abordando suas atividades materiais e simbólicas, numa visão de totalidade.

Os autores entendem que, do ponto de vista sociológico, assim como todo trabalho humano socializado, é possível analisar o trabalho do professor em função de determinadas dimensões. Na análise que realizam, abordam o trabalho docente como atividade, status e experiência, ressaltando que, na prática, essas dimensões se mantêm interligadas. Entretanto,

15Para Freire, o pensar certo se contrapõe ao pensar ingênuo. Exige a rigorosidade metódica que caracteriza a

no plano teórico da análise, exigem distinção sem, contudo, perderem-se de vista as conexões entre elas (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 48-49).

Uma análise que aborde a dimensão do trabalho docente como atividade, em seus aspectos organizacionais e dinâmicos, foca o ensino como núcleo central do trabalho do professor. Nesse sentido, ensinar no contexto escolar “[...] é agir na classe e na escola em função da aprendizagem e da socialização dos alunos, atuando sobre sua capacidade de aprender, para educá-los e instruí-los com a ajuda de programas, métodos, livros, exercícios, normas, etc.” (Ibid., p. 49).

Considerar a atividade docente como um trabalho implica, necessariamente, entendê- la como uma atividade profissional exercida por profissionais especializados. Atividade que requer formação específica, com vistas ao cumprimento dos fins e objetivos inerentes à sua função precípua: a escolarização. Desse ponto de vista, a análise da atividade docente pode ter como foco as estruturas organizacionais, que condicionam seu desenvolvimento, ou seus aspectos dinâmicos que, na prática, são interligados, na medida em que o trabalho docente desenvolve-se num ambiente organizado - a escola.

Sendo uma atividade profissional a ser exercida por profissionais especializados, o trabalho docente confere ao professor um status, expresso numa identidade profissional que o distingue no interior da organização do trabalho e no espaço da organização social.

Tardif e Lessard (2005, p. 50 ) supõem que “[...] o status dos professores, tanto no plano normativo quanto no das funções cotidianas que eles precisam exercer, atualmente parece por demais fragilizado e como que sacudido por expectativas, necessidades, pressões antagônicas.” Nesse contexto, entendem esses autores que a identidade docente, além de se apresentar muito heterogênea, destaca mais o professor do que a instituição escolar. Decorrente dessa tendência, ou como consequência dela, a construção da identidade docente vem, progressivamente, se tornando uma tarefa mais do professor do que da instituição escolar.

Essas suposições mostram-se relevantes nas reflexões sobre a formação docente em função da qualificação da escolarização oferecida à população, tanto quanto sobre a organização e luta dos profissionais da educação, em prol da sua valorização enquanto categoria de trabalhadores, conforme dispõe a Constituição do País e a legislação pertinente.

A terceira dimensão, que os autores citados se dispuseram a examinar em sua análise, é a docência como experiência, que pode ser abordada sob dois ângulos. No primeiro, a experiência é compreendida como “[...] um processo de aprendizagem espontânea, que permite ao trabalhador adquirir certezas quanto ao modo de controlar fatos e situações do

trabalho que se repetem. Essas certezas correspondem a crenças e hábitos cuja pertinência vem da repetição de situações e de fatos” (Ibid., p.51).

A visão de experiência, como meio de aquisição de conhecimentos advindos da prática cotidiana no trabalho docente, corresponde ao que a maioria dos professores entende como competência profissional. A ela, os professores opõem a visão sobre a aquisição de conhecimentos nos processos de formação, predominante na fala da maioria ao se referir à relação teoria-prática, expressa na afirmação: “na prática, a teoria é outra”.

Com essa expressão, os professores pretendem, por um lado, justificar os procedimentos que adotam nas suas práticas pedagógicas, aprendidos no fazer cotidiano da escola e, especialmente, da sala de aula. Por outro lado, revelam a rejeição ou a falta de crença na eficácia dos conhecimentos e habilidades ensinados nos cursos de formação, os quais denominam de “conhecimentos teóricos”, em oposição aos “saberes práticos” construídos nas práticas escolares cotidianas.

Dentre os diferentes sentidos, que a expressão “na prática, a teoria é outra” sugere, está implícita uma crítica à dissociação entre teoria e prática nos cursos e em outras atividades de formação, levando os professores a supervalorizarem os saberes produzidos na prática e a desqualificarem os conhecimentos sistematizados, presentes nos livros e no discurso dos professores formadores.

A análise do trabalho como experiência pode incidir, também, sobre “[...] a intensidade e a significação de uma única situação vivida por um indivíduo” (TARDIF e LESSARD, 2005, p.51). No contexto do trabalho docente, esse tipo de experiência consiste em situações únicas vividas por um professor enquanto sujeito individual, por exemplo, na sua relação com os alunos. Trata-se de experiências singulares que podem marcar profundamente a vida profissional do professor:

Os docentes dizem muitas vezes: nas primeiras vezes que você entra numa sala de aula, você sabe se foi feito para essa profissão; essa experiência é única, mas ela tem valor de confirmação e de justificação. Trata-se, de qualquer modo, de uma experiência de identidade que não pertence ao saber teórico ou prático, mas da vivência, e onde se misturam intimamente aspectos pessoais e profissionais: sentimento de controle, descoberta de si no trabalho, etc. (Ibid., p. 52, grifos do autor).

Em relação às duas visões sobre a dimensão do trabalho docente como experiência, os autores alertam para a tendência que elas encerram de “[...] privilegiar uma concepção estritamente individualista, ou mesmo, ‘psicologizante’ da experiência”. Em contraposição, apelam para o pensamento de outros autores que defendem o caráter social do trabalho

docente, mesmo quando uma experiência é vivenciada individualmente por um único professor, posto que, como ator social, ele “[...] partilha o mesmo universo de trabalho, com todos os seus desafios e condições” (Ibid., p.52-53).

Ao consultar o pensamento de outros autores contemporâneos, que se dedicam ao estudo da formação de professores numa perspectiva crítica, observo que há um consenso quanto à defesa da profissionalização da função docente, tanto do ponto de vista da exigência de competência profissional, quanto da organização da carreira, no seio de uma concepção de totalidade, que entende o trabalho docente como trabalho humano socializado, desenvolvido em contextos sociais, econômicos, políticos e culturais determinados.

Feldmann (2004), por exemplo, compreendendo a formação docente como dimensão da identidade pessoal e profissional do professor, ressalta a necessidade de revisão da concepção de formação, de modo que assegure sua vinculação com contextos e relações sociais, enfatizando a necessidade da reflexão, pelos professores, das práticas e teorias do seu fazer pedagógico:

A formação docente, entendida como dimensão de reconstrução permanente da identidade pessoal e profissional, não pode mais ser vista como um processo de acumulação de conhecimentos dispostos de forma estática (cursos, teorias, livros, técnicas). Este processo deve estar vinculado à concepção e à análise dos contextos e relações sociais que produzem um conjunto de valores, saberes e atitudes, os quais imprimem significados ao saber educativo. Por essa razão, torna-se fundamental a valorização de paradigmas de formação que desencadeiem nos professores a reflexividade crítica sobre as suas práticas e teorias (FELDMANN, 2004, p. 75).

Garcia (1999), em estudo no qual discute a conceituação da formação de professores, sua formação inicial e seu desenvolvimento profissional, ressalta, entre outros aspectos, o caráter sistemático e organizado da ação docente e sua vinculação com a qualidade da educação. Entende que, sendo a docência uma profissão, os profissionais que a exercem precisam dominar, adequadamente, a ciência, a técnica e a arte de ensinar, ou seja, precisam possuir competência profissional para “[...] intervir profissionalmente no desenvolvimento do seu ensino, do currículo e da escola, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação que os alunos recebem” (Ibid, p. 26).

As ideias aqui expostas, representando uma pequena parcela do pensamento crítico contemporâneo no campo dos estudos sobre formação docente, dão contribuição significativa nas reflexões que desenvolvo ao longo deste trabalho, especialmente, na análise do

pensamento e da prática pedagógica dos professores-alfabetizadores, ou seja, na análise de suas representações sobre o analfabetismo e a alfabetização – objeto de estudo deste trabalho.