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CAPÍTULO 4 REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-

2. Professora Mariana

Conheci a professora Mariana no dia 09 de abril de 2010, durante um encontro de formação de professores do PBA, realizado em um salão da Secretaria Municipal de Educação de União dos Palmares.

Após ser apresentada a ela pela coordenadora pedagógica de sua área, falei sobre minha pesquisa, a possibilidade de entrevistá-la e de observar sua classe de alfabetização de jovens e adultos. Após concordar com minha solicitação, combinei com ela uma data para minha primeira visita à sua classe.

Na data agendada - 19 de maio de 2010 - visitei a classe da professora Mariana. Conforme procedi nas visitas às outras classes de alfabetização, apresentei-me aos alunos, falei sobre o direito constitucional de acesso da população brasileira à educação, expus o objetivo de minha pesquisa, esclareci o motivo da minha visita e solicitei a colaboração de todos para o meu trabalho. Aprovada minha solicitação, os alunos se interessaram em saber quando eu começaria as observações. Respondi que começaria após concluir meu acompanhamento à classe da professora Anita.

2.1. Dados biográficos da professora

Mariana tinha 20 anos de idade na época desta pesquisa. Era uma jovem nativa, de baixa estatura física, pele morena e cabelos crespos, que revelavam sua origem mestiça. Sua mãe tinha pele branca, cabelos claros e crespos, enquanto seu pai tinha a pele negra, além de outras características físicas marcantes da descendência africana. Morava com os pais, irmãos e sobrinhos, numa casa grande, localizada à margem de uma das vias de acesso ao centro de Muquém.

Durante nossa convivência, mostrou-se uma jovem alegre, expansiva, responsável e muito dinâmica. Qualidades que ela estendia para a sala de aula e que, me parece, conferiam- lhe autoridade e respeito dos educandos e de suas famílias.

Nas conversas que manteve comigo, nunca se referia a uma situação de pobreza extrema, como ocorreu com a outra professora, participante desta pesquisa. Aparentemente, sua família mantinha-se em melhores condições de vida.

A professora Mariana concluiu o curso normal de nível médio há dois anos e, há oito meses assumiu uma classe de alfabetização de jovens e adultos. Sua experiência limitava-se à docência de três meses, numa classe de educação infantil, substituindo uma professora.

Disse-me que não havia aprendido a alfabetizar jovens e adultos no curso normal: “[A educação de adultos] não era tratado muito não... Não ouvia falar muito, pegava mais da educação infantil à 4ª série”.

Mesmo tendo feito o curso normal médio, Mariana dominava mal a variante culta da língua portuguesa, tanto escrita, quanto falada. Suas dificuldades eram de ordem ortográfica e gramatical, assim como de construção do discurso, observadas em entrevistas, conversas informais e em sua atuação na sala de aula.

Entretanto, seus depoimentos demonstram acuidade, curiosidade e criatividade na abordagem de questões da vida cotidiana e, especialmente, em suas reflexões sobre as questões educacionais tratadas nesta pesquisa.

Nesse sentido, além de mostrar empenho na atividade docente, Mariana demonstrou interesse na aquisição de conhecimentos formais. Por diversas vezes, afirmou que gostava de ensinar e achava necessário que o professor, para alfabetizar, além do curso normal, tivesse um curso superior e até uma pós-graduação.

Disse-me que gostava de ler e de “inventar coisas novas” para as aulas serem mais dinâmicas. Acreditava que se o professor não motivar os alunos, a aula “fica chata”, eles não aprendem e abandonam a classe.

Embora a professora Mariana manifestasse o desejo de fazer um curso superior e depois uma pós-graduação, até aquele momento, a continuidade de sua formação docente sistematizada dava-se nos encontros de formação do PBA e no acompanhamento pedagógico da coordenação do PBA, que ela considerava insuficiente e inadequado.

2.2. Relação da professora com a questão étnico-racial

A relação da professora Mariana com a questão étnico-racial parece que se dá pelo sentimento de pertencimento a uma mesma família, descendente do Quilombo dos Palmares.

Mariana afirma, com muita ênfase na voz, orgulhar-se de ser descendente do Quilombo dos Palmares, fazer parte da comunidade de Muquém e poder contribuir, como professora, para ajudar as pessoas, conforme se observa, em seu depoimento:

Eu me vejo, também, uma descendente do Quilombo. Eu nasci aqui, fui criada aqui e minha família, todos são: tios, primos, tem vô. Eu me sinto bem orgulhosa. Eu não tenho vergonha de dizer que eu sou do Muquém. Porque tem pessoas que diz: “Ah! Eu num sou do Muquém, não”. Eu não sou negra. Eu tenho orgulho de dizer: “Eu moro no Muquém”. E eu fico orgulhosa! Eu não vou querer ter vergonha da pessoa que eu sou. Eu sou eu mesmo e sou isso. As pessoas dizem: “Ah, sou do Muquém não, o Muquém só tem negro”. Negro, mas de uma descendência boa e que se orgulha [de ser negro]. Por que qual a pessoa que não se orgulha de ter nascido numa comunidade dessa e ser bem valorizado? Eu fico bem orgulhosa de fazer parte dessa comunidade e ajudar as outras pessoas a subir mais na vida, ter mais uma vida adequada e saber ler e escrever ajuda mais.

Estendendo sua reflexão para a comunidade, como se vê no depoimento anterior, Mariana afirma existir um sentimento de negação à descendência negra, por parte de outras pessoas, ao dizerem que não são negras e não moram no Muquém, porque no “Muquém só tem negro”. Ela rechaça essa posição, afirmando: “Negro, mas de uma descendência boa e que se orgulha [de ser negro]”.

É temerário supor que Mariana reproduz, na sua fala, a discriminação disfarçada na ideologia do “negro de alma branca”. Pela entonação de sua voz no momento da entrevista e a análise do conjunto de seus depoimentos, parece-me mais provável que Mariana teve a intenção de acentuar e reforçar o orgulho de descender dos negros do Quilombo dos Palmares.

Na sequência da entrevista, pergunto à professora Mariana se ela trata das questões étnico-raciais na classe de alfabetização de jovens e adultos. Afirmando tratar do assunto, presente no plano pedagógico do curso de alfabetização, ela reproduz uma situação de diálogo na sala de aula, na qual o foco do debate entre os alfabetizandos é a história de Muquém:

A gente trata, quando vem [no planejamento do PBA] um assunto de história sobre família e sobre essa identidade de cada um. Tem o Quilombo dos Palmares, o Dia da Consciência Negra... A gente fala: “Por que é uma família só? E como foi a libertação dos negros?” Aí, na sala de aula, a gente debate: “O Muquém é o quê? É uma comunidade o quê? Tem história, né?” E todo mundo já sabe. Lá uns conta cada novidade! Porque [é] um mais velho que o outro... Aí - “Não é isso”. Aí já - “O Muquém faz parte disso por causa disso”. Aí vai, junta em uma história só, porque cada um tem uma história diferente, dos antepassados que já se foram e que eles sabem. Os antigos sabem mais do que os mais novos.

Parece-me relevante ressaltar que a professora aproveita, pedagogicamente, os temas do programa do curso de alfabetização para introduzir o estudo de questões do contexto local. Recurso pedagógico que presenciei, nas observações de suas aulas, ela usar com frequência.

2.3. A classe de alfabetização da professora Mariana

A classe de alfabetização da professora Mariana funcionava no Centro Social de Muquém, chamado pelos moradores de “centrinho”, localizado ao lado da casa de seus pais, com quem ela morava.

O prédio de alvenaria, coberto de telhas canal, foi construído e era mantido pelos moradores com ajuda da paróquia de União dos Palmares. Medindo, aproximadamente, 10m2 de área, tinha um salão, uma pequena cozinha com despensa e um gabinete sanitário, em estado médio de conservação.

Figura 7 – Sala de aula no Centro Comunitário de Muquém, decorada para evento religioso. Maio/2010. (Foto: Reneude Sá).

Nesse espaço, eram desenvolvidas atividades assistenciais e práticas religiosas, como a celebração de missa em alguns domingos do mês, novenas e terços. A classe de alfabetização funcionava à noite.

O salão era amplo, com capacidade para, aproximadamente, 30 pessoas. Além da porta de entrada, dispunha de uma porta de acesso à cozinha e janelas, que favoreciam a ventilação do ambiente. Durante o período em que observei a classe, o salão estava organizado em dois ambientes. De um lado, cinco bancos grandes de igreja e, do outro, dezesseis bancas escolares do tipo universitário, dispostas em fileiras de quatro em quatro.

Na parte da frente, havia uma mesa grande, utilizada pela professora, durante as aulas, para depositar o material escolar. Nas celebrações religiosas, virava altar. Na parede em frente, bem no centro, havia uma grande cruz de madeira, ladeada à direita por um pequeno oratório com uma imagem de Nossa Senhora, numa caixa de vidro. Do lado contrário, um pequeno quadro de giz, medindo cerca de 1m x 80 cm, colocado na frente das bancas escolares. No fundo da sala, havia alguns bancos de igreja, depositados uns sobre os outros. Provavelmente, para serem usados em eventos com maior número de pessoas.

Minhas observações ocorreram no mês de maio, denominado, pela igreja católica, de mês mariano, por ser dedicado a Maria, mãe de Jesus. Assim, em sua homenagem, o salão permaneceu decorado com flores artificiais, fitas e outros adereços. Todas as noites, antes da aula, a professora e os alunos rezavam o terço, conduzido por sua mãe, Dona Silvana, uma senhora muito dinâmica, que me pareceu ocupar um lugar de liderança junto aos moradores daquela área de Muquém.

Nos eventos festivos, tanto relacionados às atividades religiosas, quanto às escolares, era Dona Silvana que, também, assumia sua organização, tomando as providências necessárias, como a preparação de bolos e outros pratos, em sua residência, que ficava ao lado do “centrinho”.

Obtive essas informações por meio do relato dos alunos, mas, tive oportunidade de presenciar a ação de Dona Silvana na festinha que a turma promoveu na minha despedida, na última noite de observação.

O quadro de controle das turmas rurais registrava o total de 20 alfabetizandos na classe da professora Mariana67. Entretanto, a professora informou que, além de não comparecerem todos no início das aulas, parte deles abandonou a classe por diversos motivos.

Durante o período de minhas observações, 13 alfabetizandos frequentaram as aulas regularmente: um senhor com, aproximadamente, 53 anos de idade; oito mulheres adultas, na

67 Cf. BRASIL (2009). A matrícula inicial nas classes de alfabetização de jovens e adultos nas áreas rurais, de

acordo com as normas vigentes no período da pesquisa, era de, no mínimo 7 e, no máximo, 25 alfabetizandos. Nos quadros de controle da gestão local do PBA em União dos Palmares, o número de alfabetizandos matriculados por classe varia de 17 a 25, nas 95 turmas das áreas rurais.

faixa etária de 25 a 48 anos de idade; dois rapazes, um com 27 e outro com 37 anos e dois adolescentes com 14 e 15 anos de idade, respectivamente.

Guardada a interferência ou repercussão da minha presença na sala de aula, como pessoa estranha ao ambiente, durante o período de uma semana em que acompanhei, diariamente, a classe da professora Mariana, observei uma interação pedagógica positiva entre a professora e os alfabetizandos68.

Todas as noites, ela levava a aula preparada. Seguindo a programação pedagógica do PBA, adaptava os conteúdos, abordando situações cotidianas e variava as atividades de modo a envolver os educandos. Eles interagiam participando atentamente, demonstrando satisfação em estarem ali, com exceção dos dois adolescentes, que pareciam não fazer parte daquela turma, mesmo com o empenho pedagógico da professora Mariana para engajá-los nas atividades69.

Quase sempre, ao começar a aula, algum aluno perguntava – “E aí, professora, que temos hoje?” Eu interpretava essa pergunta como uma manifestação de interesse e curiosidade, expressão do que se poderia denominar de “motivação” do aluno para a atividade pedagógica.

A professora respondia com ar de satisfação. Às vezes, dizia que esperassem a surpresa e dava início às atividades da noite.

Mantinha-se em constante movimento na sala de aula. Após anunciar o assunto ou tema da noite e orientar a atividade a ser realizada, normalmente em grupo, ela passava a circular entre os grupos, olhando o trabalho, explicando, corrigindo, incentivando. Não presenciei nenhum momento de apatia, nenhuma atitude de impaciência ou indelicadeza com algum aluno ou desvalorização de seus trabalhos.

As aulas começavam e terminavam sempre no horário marcado e, havia dias em que se estendiam um pouco mais. Não vi, em nenhum momento, algum aluno insistindo para que a professora encerrasse a aula antes do horário.

68 Cf. Apêndice I - Uma aula da professora Mariana.