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CAPÍTULO 4 REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORAS-

1. Professora Anita

1.5 Representações sobre alfabetização

Na investigação das representações da professora Anita sobre alfabetização, parti de um depoimento no qual ela, falando sobre seus alunos da classe de alfabetização de jovens e adultos, ressaltou, como dificuldade pedagógica, a heterogeneidade da turma. Afirmou que tinha alunos que já eram alfabetizados, junto com alunos analfabetos, explicando essa configuração com o seguinte relato:

Tem a Renata que parou na 3ª ou 4ª série. Ela sabe escrever seu nome todo, mas não sabe escrever mais nada. Temos muitas pessoas assim. Os meninos que eu tinha, a maioria sabia de alguma coisinha: escrever o nome, ler umas palavrinhas e outros, não. Eu coloco o textinho [no quadro de giz] e leio duas vezes, depois eu soletro. Ali, eles não sabem, mas eles gravam e vão seguindo meu dedo. Quando eu pergunto: “que palavra é essa?” eles dizem: “Eu esqueci, professora”. Eu digo sempre para eles pegarem as letras e ir soletrando em casa para ter uma noção: “pesquise e recorte palavras em revista e cole no caderno, palavras com isso e aquilo”. Eu não sei se é falta de atenção, ou se ainda não deu para eles conseguir aprender aquilo (pausa). Eu não sei o que está acontecendo (pausa).

Nesse depoimento, as representações da professora sobre analfabetismo e alfabetização começam a aparecer no relato de habilidades de leitura e escrita, demonstradas por alguns alunos, assim como na inabilidade de outros, em relação aos mesmos aspectos: “Ela sabe escrever seu nome todo, mas não sabe escrever mais nada”; “Os meninos que eu tinha, a maioria sabia de alguma coisinha: escrever o nome, ler umas palavrinhas e outros, não”.

Do mesmo modo, as representações da professora são mostradas no relato de procedimentos pedagógicos utilizados por ela na perspectiva de promover a aprendizagem dos alunos: “Eu coloco o textinho e leio duas vezes, depois eu soletro. Ali, eles não sabem, mas eles gravam e vão seguindo meu dedo”.

É notável, na finalização do referido depoimento, a preocupação da professora em descobrir por que os alunos não estão conseguindo aprender. Levanta hipóteses sobre prováveis causas: “falta de atenção dos alunos” e, me parece que, insuficiência de tempo para a aprendizagem: “[...] ainda não deu pra eles conseguir [...]”, então, ela acaba concluindo, com um semblante, ao mesmo tempo, de dúvida e desânimo: “Eu não sei o que está acontecendo”.

Na mesma entrevista, solicitei à professora Anita que continuasse falando sobre a prática de alfabetização de adultos. Ela passou a relatar um procedimento pedagógico de

alfabetização, invocando sua vivência no cotidiano de sua classe de jovens e adultos, conforme constatei em observação64:

Quando eu iniciei foi com a, e, i, o, u. Aí, [um aluno falou]: “Ô Anita, eu já vi essa letra, só que eu não sei o que é... Ela parece uma xícara, mas eu não sei o nome dela”. Eu perguntei: “Que letra é essa?” Eles responderam: “É uma xícara.” Eu disse: “Você está vendo uma xícara, mas não é uma xícara, é a letra a”. Olhem pra mim: “Essa é a letra a”. Falem [junto] comigo: “a”. Vejam: “A xícara pode ter o formato do a, mas isso não é uma xícara, é a letra a.” Isso já aconteceu, também, com os pequenos.

Ao final desse relato, perguntei-lhe: “Então, você ensina primeiro as vogais? O que você ensina depois”? Ela me olhou com o semblante espantado, provavelmente, estranhando minha pergunta e me respondeu:

Sim. Depois, passo para as consoantes e ensino a juntar as letras: “b com a se lê o que?” Eles [respondem] “ba!”. Eu [pergunto]: Têm certeza? Um aluno [responde]: “Eu tenho, se a senhora falou que é ba, é porque é ba”. Agora, que está no fim, a gente pula para algo mais alto. Mas tem pessoas que não aprendem... Eu não sei por quê... Não sei se eu ensino de um modo errado ou se é porque [elas] não querem aprender...

O depoimento dá continuidade ao relato da técnica de ensino da leitura, começado no depoimento anterior. Porém, continua a angústia pedagógica da professora Anita com a aprendizagem dos alunos, ou melhor, com a não aprendizagem: “Mas tem pessoas que não aprendem...”. Persistem, também, suas dúvidas sobre as causas do problema: “Eu não sei por quê...”. Repete hipóteses levantadas em outros depoimentos: “[elas] não querem aprender”. Surge uma nova hipótese. Esta, relacionada à sua prática pedagógica, pondo-a em dúvida: “Não sei se eu ensino de um modo errado [...]”.

Em outro momento, perguntei à professora Anita se ela havia aprendido a alfabetizar adultos no curso normal. Ela me respondeu que não. No curso, aprendeu como alfabetizar crianças. Perguntei se ela achava que havia diferença entre alfabetizar criança e alfabetizar adulto. Sua resposta foi afirmativa e, sem nenhuma indagação, explicou-me, com um relato muito extenso, como ela se relacionava na sala de aula com os adultos, fazendo comparação com o tratamento dispensado às crianças:

Eu não vou estar aqui gritando com uma pessoa mais velha do que eu! Se eu disser: “Isso está errado”, com um tom mais alto, eles não voltam mais. Você tem que sempre ir brincando e rindo, se não for assim, no outro dia você não tem nenhum. E com os pequenos, às vezes, a professora fala em um tom mais alto. Tem uns [adultos] que levantam e saem. Quando voltam, eu pergunto: “Foi pra onde?” Eles dizem: “Fui lá fora fazer xixi”. Eu não digo nem que peçam licença! Se eu falar isso, no outro dia, eles não vêm. Isso eu não faço de jeito nenhum! Sempre é brincando com eles.

Conforme se observa no depoimento acima, não há referência à prática pedagógica, ao processo de ensino e aprendizagem. A professora limita-se a tratar de seu relacionamento com os adultos na sala de aula pautado na tolerância como meio de evitar que eles abandonem a classe.

No seu segundo depoimento sobre a mesma questão, a professora Anita, após reafirmar que é diferente alfabetizar uma criança de alfabetizar um adulto, começa justificando essa diferença apontando traços da prática pedagógica: “Porque com a criança você está mais ali brincando, é mais com pintura. Eles [adultos] já não gostam de pintura, não gostam de desenhar, querem que eu já traga feito.”

Entretanto, na evolução de sua fala, apesar de insistir que há diferença entre alfabetizar uma criança e alfabetizar um adulto, a professora continua apontando seu modo de se relacionar com os dois segmentos.

A diferença permanece na tolerância e no cuidado no trato com os adultos, evitando contrariá-los, o que, segundo sua visão, os levaria a abandonar a classe. Entretanto, apesar de afirmar que é necessário tratar os adultos como adultos, a professora infantiliza seu tratamento com eles, coforme se vê no depoimento a seguir, muito longo, mas importante nesta análise:

Eu digo: “Vocês não são nenhuma criancinha, já são bem adultinhos”. Eu falo assim com eles, num tom bem devagarinho. Às vezes eles dizem: “Professora, vem aqui. Como é isso?” Eu digo: “Mas já está feito. Está perguntando o quê, se já está feito? É assim mesmo, não está nada errado. Quando está errado, eu passo o X”. Eu vou assim nesse método, o mesmo que eu faço com os meninos da tarde eu faço à noite, só que eu não falo alto, não mando sentar, nada. E com os pequenos: “Vá sentar no seu lugar! Está em pé por quê?”. Com os grandes, não. Se eles chegam e ligam o som, eu peço para abaixar um pouquinho e digo: “Deixe só pra você ouvir, abaixe o som e fique bem quietinho no seu lugar”. As meninas dizem: “Anita, é pra descontrair! Deixa um pouquinho mais alto para nós ouvir, é ouvindo e aprendendo”. Eu digo: “Não! Deixe baixo”. E quando tem dia que uma mãe traz a filha, eu digo: “Fique quieta”. Ela já olha pra mim de cara feia. Se eu reclamar de novo, no outro dia ela não vem.

Procurando explorar mais questões relacionadas às políticas educacionais, indaguei à professora sobre material didático, planejamento e acompanhamento pedagógico às classes de

alfabetização. Sua primeira fala aponta inadequação do livro didático adotado pelo PBA, em relação às possibilidades de aprendizagem dos alfabetizandos:

Ela [coordenadora] falou: “Vocês, quando forem usar o livro, vão seguindo o planejamento65”. Só que quando vamos seguir o planejamento... Vamos supor: tem a

página 80 [do livro] que é para estudar os números, só que os números são altos demais, então eu não pego o livro [do PBA], pego outro livro e, às vezes, crio números menores e na próxima aula eu pego o livro. É assim que eu vou. Eu tive que parar já duas semanas com o livro porque eles não querem saber do livro, eles só querem no quadro. Eu uso muito [o livro didático], mas eu uso uma semana sim e uma semana não. Eu só pego pra mim e, aí, passo para o caderno com palavras menores, números menores, leituras menores, tudo menor.

Insisto na questão do uso do livro. A professora Anita reforça sua visão sobre a inadequação do material, porém, revela sua dificuldade no entendimento de perguntas que o livro contém. Entretanto, diante dessa constatação, ela mostra uma atitude, segundo Paulo Freire (2007), de humildade pedagógica, apontando a vontade de superar a falta do conhecimento em questão:

Ele vem como se o aluno já fosse bem alfabetizado. Tem pergunta do livro que eu não entendo e não vou passar para eles sem eu saber. Então, primeiro eu vou olhar o que aquilo está significando... Quando eu estou com dúvida, eu digo pra eles: amanhã eu trago a resposta.

Direcionando os questionamentos para o planejamento pedagógico, pergunto à professora Anita como é feito o plano pedagógico e peço que ela me fale mais sobre ele. Inicialmente ela informa que o planejamento “já vem pronto” e relata como ele é repassado para as professoras:

Já vem pronto. Nós vamos pra reunião [encontro de formação] e elas [coordenadoras] entregam o planejamento pra gente. Elas falam: “Esse planejamento é para um mês”. Tem vez que falamos: “Mas, do planejamento passado, ficou uns três assuntos”. Elas respondem: “Inclua nesse, se não deu para passar [no mês anterior] pode passar pra esse [mês]. Você pega os três [assuntos] que faltaram, inicia com os três e depois (...)”.

Perguntei-lhe, então, sobre os encontros de formação. Ela me explicou que são dois encontros mensais, nos quais é realizada uma palestra sobre temas do plano pedagógico, a ser trabalhado naquele mês. Em seguida, as coordenadoras distribuem o referido plano e orientam sua execução.

65 A entrevistada refere-se a um plano que é distribuído com todos os professores durante os encontros de

Entretanto, em seguida, ela falou que os encontros não ocorrem exatamente como deveriam ocorrer. Geralmente, começam atrasados, há muito barulho, a maioria dos professores não presta atenção na palestra e, ao final, as coordenadoras apenas entregam o plano às professoras. Às vezes, dão uma breve explicação e, em seguida, recolhem as fichas de frequência dos alfabetizandos.

O relato da professora Anita correspondeu à situação observada por mim no encontro que acompanhei, em abril/2010, realizado num salão da Secretaria Municipal de Educação.

Dando continuidade à busca de identificar as representações da professora Anita sobre alfabetização, passei a questioná-la sobre o acompanhamento pedagógico, feito em sua classe. Comecei perguntando-lhe em que consistia o acompanhamento pedagógico e qual sua periodicidade. Ela respondeu: “Era pra ela [coordenadora] vir duas vezes no mês, só que ela não vem porque diz que não tem carro disponível. Quando ela vem, fica aqui um instante, conversa e vai embora”.

Perguntei-lhe, então, como ela imaginava que deveria ser o acompanhamento pedagógico para ajudá-la no seu trabalho de alfabetização. Ela entende que a coordenadora deve assistir às suas aulas, a fim de ver se ela está “acertando ou não” e observar o comportamento dos alunos. Entretanto, voltou a ressaltar a falta de transporte para a coordenadora visitar as classes, acrescentando, a essa dificuldade, o fato de a coordenadora ter mais uma área para acompanhar66:

Ela deve vir duas vezes no mês para assistir [a aula] e ver se tou acertando ou não. Observar e ver o comportamento deles [alunos]. Tem dias que eles estão bem comportados, agora tem dias que eles estão virados! E conversar com eles. Eu acho que seria isso. Mas, ela não é só daqui. Ela é de dois ou três lugares. Aí, fica a dificuldade porque não tem carro e ela mora distante. Ficou essa dificuldade dela vir observar, porque isso sempre ocorreu da coordenadora vir (sic!).

66 De acordo com as normas do PBA (BRASIL, 2009) uma coordenadora pode acompanhar de uma a treze