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Capítulo I Do naturalismo ao positivismo 1 O direito moderno

3. A formação do positivismo

O positivismo jurídico normativista é a segunda grande matriz do pensamento jurídico moderno e, em suas diversas variações, tornou-se a concepção dominante no direito no decorrer do século XIX e ainda hoje domina o senso teórico dos juristas. Para manter essa posição hegemônica por tanto tempo, esse positivismo teve de modificar-se várias vezes, incorporando parcela das críticas que outras teorias concorrentes levantaram, mas sempre mantendo um certo núcleo: a pretensão de constituir em uma avaliação objetiva do direito positivo.

O positivismo maduro é um discurso que se pressupõe científico, na medida em que elege um objeto empírico determinado (o direito positivo), um arsenal teórico comum (a teoria geral do direito) e um método específico (os métodos de interpretação apresentados por cada escola para proporcionar uma

compreensão objetiva do direito positivo). Na medida em que adota o discurso científico, o positivismo aparentemente se liberta do jusracionalismo, pois enquanto este precisava justificar racionalmente a validade das normas que seus teóricos elaboravam, os positivistas percebem sua função como a de simplesmente

descrever o direito vigente. Na medida em que se desoneram da necessidade de justificar metafisicamente a validade das normas positivas (o que conduz fatalmente a raciocínios metafísicos) e se limitam a uma postura descritiva (ligada ao discurso científico da modernidade), os positivistas resolvem o problema da fundamentação do direito de modo bastante peculiar: eles simplesmente abandonam o problema, por entender que se trata de uma questão filosófica e não científica.

Essa separação entre filosofia e ciência permite que um mesmo jurista harmonize dentro de si o jusracionalismo contratualista dominante na filosofia jurídica (que lhe reforça o compromisso com o sistema e assegura um sentido ético para sua própria atividade) e o positivismo dominante no discurso prático (que limita-se à construção de uma dogmática que exclui de si mesma todo debate filosófico).

Não é por outro motivo que Alf Ross afirma que os normativistas dogmáticos são normalmente jusnaturalistas disfarçados, pois o seu positivismo se assenta sobre um jusnaturalismo implícito, que não encontra espaço na linguagem dogmática, mas que está na base do edifício de crenças ideológicas que organizam a atividade prática dos juristas. Trata-se, portanto, de uma concepção eminentemente moderna, tanto no tipo de racionalidade que o estrutura (cientificista, monológica e unitária) quanto no tipo de cegueira ideológica que o caracteriza (e que o torna incapaz de enxergar em si suas próprias bases filosóficas).

Cumpre ressaltar que embora o positivismo tenha se instaurado tanto no

Common law quanto na tradição romano-germânica, ele adquiriu feições peculiares em cada uma dessas tradições. No Common law, por mais que a autoridade do parlamento tenha sido afirmada pelas constituições burguesas, o

direito comum, de matriz jurisprudencial continuou sendo hegemônico, mesmo que o direito legislado ganhasse espaço em uma série de âmbitos do jurídico. Porém, tal como o statutory law (direito legislado), o common law é estatal, escrito e

positivo (é inferido da jurisprudência dos tribunais, a partir da leitura das suas decisões). Na Europa continental e em sua área de influência, a implantação dos Estados liberais envolveu um processo de redução do direito à lei, que erigiu ao status de fonte primária o direito legislado pelos parlamentos. Nessa nova realidade, o direito romano perdeu sua função de direito subsidiário e o direito costumeiro foi reduzido a fonte secundária, subordinada à lei.

Esse direito legislado moderno (no sentido do direito característico das sociedades modernas) impô-se em grande parte da Europa continental antes que fosse possível desenvolver um arsenal de conceitos adequados à sua compreensão e aplicação. Portanto, era preciso elaborar algo que ainda não existia: uma teoria jurídica capaz de lidar com o direito legislado, o que forçou uma ruptura com o jusnaturalismo e a tradição costumeira, pois a dogmática do direito moderno já não mais podia admitir como fonte primária senão o próprio direito legislado.

Nessa medida, várias correntes do positivismo contemporâneo podem ser vistas, ao menos parcialmente, como uma forma de adaptação da teoria jurídica a uma mudança efetiva na realidade político-jurídica subjacente. Ressalte-se que isso não significa afirmar uma espécie de primazia do empírico sobre o simbólico, como se o conhecimento jurídico fosse apenas uma superestrutura voltada à sustentação ideológica do direito existente. Em grande medida, o direito moderno foi moldado pelas pretensões jusnaturalistas, com suas pretensões de clareza e sistematicidade. Portanto, as concepções modernas de mundo estão inscritas na própria estrutura do direito, não se tratando apenas de uma forma derivada de justificação ideológica. Porém, o direito que nasceu influenciado pelas pressões ideológicas da modernidade escapava dos critérios tradicionais dos saberes jurídicos, o que fez com que, nesse caso específico, a teorização sobre o direito legislado fosse posterior ao seu próprio surgimento.

Peculiarmente, as bases metodológicas para pensar o direito legislado não foram desenvolvidas nos países de direito codificado, mas nos países germânicos, onde predominou até o final do século XIX uma mistura de direito costumeiro e de direito romano. A inexistência de um direito codificado fez com que a modernização do direito passasse por uma espécie de

“cientifização” dos saberes jurídicos, que se organizaram sob inspiração das ciências exatas e adquiriram um novo patamar de rigor sistemático e conceitual. Porém, essa sistematização dos saberes jurídicos terminou por consolidar- se na forma do Código Civil alemão de 1900, que uniu as duas grandes vertentes do positivismo oitocentista: o legalismo de origem francesa e o formalismo conceitual de origem germânica, que foram os grandes vetores da formação do senso comum que dominou o senso comum dos juristas no século XX.

Capítulo II - O legalismo positivista