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Capítulo III Hermenêutica e ciência 1 Hermenêutica e historicidade

97 H ABERMAS , Pensamento pós-metafísico, p 22.

A história humana, porém, não é a realização no mundo de leis universais prefixadas, ela não se deixa captar por uma redução abstrata em teorias matematizantes. O saber histórico trata das recorrências assim como do irredutível, do irrepetível, do único. Assim, a história é um objeto que não se deixa estudar nos laboratórios científicos, não se deixa apreender adequadamente por leis da indução, revela-se em fenômenos particulares e complexos que não podem ser vistos apenas como a repetição de fatos segundo leis constantes e predeterminadas. E a captação dessas individualidades dotadas de significação não é um papel que possa ser adequadamente desempenhado pelo discurso científico positivista porque, em sua reconstrução abstrata do universal, a ciência moderna precisa deixar de lado tudo o que é particular, acessório, contingente, ou seja, tudo que é propriamente histórico.

A percepção dessas dificuldades conduziu alguns pensadores do século XX a negar a cientificidade do próprio saber histórico. Para utilizar uma categoria de Lyotard, a história é um saber narrativo e não um saber científico, e por isso mesmo ele tem outros critérios de construção.98 Os saberes tradicionais têm

uma estrutura narrativa, pois se constituem em relatos significativos sobre o mundo e não em sistemas abstratos de explicação. A ciência é uma espécie de saber

desencantado, construído indutivamente sobre observações empíricas. E os saberes narrativos são encantados, pois eles oferecem critérios de legitimidade, padrões de avaliação, sentidos para o agir, modelos de identidades, e tudo o mais que a ciência recusou da tradição por considerar que nada disso é objetiva e racionalmente

demonstrável.

Porém, quando o homem fala de si, ele não se descreve, mas se interpreta. E o que possibilita essa interpretação não é uma explicação causal, mas uma compreensão dos sentidos dos atos individuais e coletivos, que ocorre por meio da construção de uma narrativa. É claro que o homem também constrói discursos explicativos sobre si mesmo, mas o limite desses discursos é justamente o fato que eles não oferecem uma abertura para a sua autocompreensão. E o homem se autocompreende como sentido.

O pensar científico é justamente aquele que observa o mundo como uma rede de relações causais, nas quais o sentido somente pode aparecer como um fenômeno psicológico: faz parte do discurso científico a afirmação de que os homens de certa comunidade percebem um ato como significativo, mas nunca pode fazer parte do discurso científico a afirmação de que um ato tem um determinado sentido. O modelo mecanicista não dá conta da história humana, que pede uma compreensão e não apenas uma explicação. E a ciência moderna não dá conta da compreensão, pois ela somente é capaz de lidar com a realidade dos fatos e não com a sua significação. Assim, um saber histórico que pretenda elaborar a história humana como uma narrativa dotada de sentido precisava ultrapassar o limite das explicações empíricas, o que significava romper as fronteiras de uma racionalidade inspirada nas ciências empíricas.

Assim, no sentido de Lyotard, o saber histórico é narrativo e não científico. E, para utilizar as categorias delineadas na introdução, o saber histórico é hermenêutico, e não científico. Porém, em pleno século XIX, por mais que fosse clara a deficiência dos métodos científicos para a compreensão histórica, tampouco havia ainda a possibilidade da afirmação de um saber racional que não fosse científico. O discurso filosófico estava em crise e as triunfantes ciências naturais eram o modelo incontrastável de racionalidade. Se ainda hoje essa concepção perdura no senso comum (em que a ciência continua sendo o único saber objetivamente confiável e a filosofia é vista como um exercício nefelibata de abstração), no final do século XIX isso era inda mais claro, pois sequer o conceito de ciência havia sofrido as duras críticas epistemológicas do século XX.

O século XIX foi o ápice do processo de cientificização do conhecimento, no qual o discurso científico firmou-se como o único discurso válido acerca da verdade. Toda disciplina oitocentista almejava ser ciência, inclusive a história e a hermenêutica. Porém, o desencantado discurso científico era tão mais puro quanto mais próximo de uma descrição causal de fenômenos empíricos, de tal forma que uma ciência da história propriamente dita não poderia encarar a história universal como uma totalidade dotada de significado. A redução da história a explicações causais teria como resultado a perda da própria idéia de sentido da história, que passaria a ser vista como um processo que tem explicação causal, mas não teleológica, o que se afigurava inadmissível. Assim,

não deve causar espanto que, frente à incompatibilidade entre os saberes históricos e os modelos matematizantes das ciências naturais, os pensadores novecentistas buscassem constituir modelos alternativos de cientificidade, capazes de assegurar o status de ciência ao seu ramo do conhecimento.

E a hermenêutica de Schleiermacher, com seu método de compreensão dos sentidos, oferecia um modelo que pareceu interessante a alguns pensadores da época. Embora ele próprio não pretendesse que a sua metodologia tivesse aplicação fora da hermenêutica filológica e teológica, seu trabalho inspirou alguns teóricos que buscavam um método científico capaz de lidar com aquilo que não é matematizável, mas histórico. Assim, ele inspirou a idéia de que a

ciência é método, mas o método científico utilizado pelas ciências do homem pode adotar um modelo que fosse diverso daquele oferecido pelas ciências naturais, mas que não fosse menos metódico nem menos científico.