• Nenhum resultado encontrado

Capítulo V Hermenêutica e linguagem 1 O giro lingüístico

4. Hermenêutica e verdade

Verdade e método é o nome do principal livro de Gadamer, no qual ele lançou as bases da sua teoria hermenêutica. Para um leitor desavisado, o título pode sugerir que a obra esclarecerá os métodos capazes de conduzir ao conhecimento verdadeiro. Porém, o objetivo de Gadamer é justamente o oposto, mostrar como o processo de compreensão não pode ser reduzido à aplicação de métodos predeterminados. Para ele, a hermenêutica não é nem envolve um método dogmático de interpretação, mas um estilo que organiza o modo humano de atribuir sentidos para o mundo.

Com isso, Gadamer segue na trilha de Heidegger, reafirmando a ruptura com a tradição hermenêutica que liga verdade e método, cuja expressão maior foi o historicismo de Dilthey, que apresentou a hermenêutica como um método que possibilitaria a superação da distância histórica e temporal, para a leitura da história como um texto. Nesse tipo de historicismo, Gadamer identifica uma ingenuidade que consiste em que, evitando esse refletir sobre seus próprios pressupostos e confiando em sua metodologia, o pensador “acaba por esquecer sua própria historicidade”150. Assim, a base da teoria gadameriana é a tese de que

149 GADAMER, Verdade e método, p. 463. 150 GADAMER, Verdade e método II, p. 81.

“um pensar verdadeiramente histórico deve pensar também sua própria historicidade”151.

Portanto, o objetivo de Gadamer não era o de oferecer um método interpretativo capaz de revelar o significado do objeto, mas esclarecer o modo como os homens conferem sentidos a sua própria atividade. Por isso mesmo é que ele afirma que o sentido da obra de arte é produzido em uma espécie de jogo que coloca em relação o intérprete e a obra. E apenas nesse jogo é que os textos ganham sentido, pois “somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto em sentido vivo”152. Então, não há

um significado escondido a ser descoberto mas um sentido a ser produzido em um jogo hermenêutico que coloca o intérprete frente à obra interpretada. Nem mesmo o sentido originalmente intencionado pelo autor deve ser entendido como o sentido verdadeiro a ser buscado, pois a interpretação não deve ser entendida, como propunha Schleiermacher, apenas como uma re-produção da produção original de sentido pelo artista153.

Então, se o milagre da compreensão é possível, não é porque existe um sentido imanente à obra, mas pelo fato de que a produção de sentidos pelo intérprete não é uma atividade arbitrária, pois não se pode atribuir aos textos um sentido qualquer. Por isso mesmo é que a idéia de jogo ganha espaço, na medida em que ela indica uma certa ordem (porque todo jogo tem as suas regras), mas uma ordem que não é método unificado, porque todo jogo é uma abertura para as diversas formas de jogar.

Assim, por mais que seja necessário haver critérios de produção de sentido, eles não podem ser reduzidos a um método interpretativo, como deixa clara a radical experiência da interpretação das obras de arte: o sentido de uma escultura não é unívoco nem imutável, o que não quer dizer que seja inexistente. Porém, ele somente existe como resultado da interação entre o intérprete e uma obra que não fala por si mesma. Portanto, o significado de uma obra de arte não é simplesmente atribuído (como se ele derivasse apenas da

151 GADAMER, Verdade e método II, p. 81. 152 GADAMER, Verdade e método, p. 262.

subjetividade do intérprete) nem descoberto (como se ele derivasse apenas da objetividade da obra), mas produzido pelo contato do homem com a obra.

E o contato com essa obra nos coloca frente à radical distância ontológica que temos frente ao Outro. Assim, em vez de acentuar o papel hermenêutico de reduzir as distâncias históricas, Gadamer acentuou o fato de que a distância está em toda comunicação, pois ela também se mostra na simultaneidade, pois está ligada ao momento hermenêutico em que nos encontramos com o Outro. O problema da hermenêutica é justamente a compreensão desse Outro, que “rompe a centralidade do meu eu, à medida que me dá a entender algo”154. E é

justamente nessa abertura para o outro que ele identifica o problema fundamental da hermenêutica.

E como é possível compreender o Outro contido na obra de arte? É na resposta a essa pergunta que a hermenêutica gadameriana se define, pois ele afirma que “a tarefa da hermenêutica é esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum”155. Se é possível falar que as obras têm um significado, isso não

pode ser feito senão em um sentido figurado, pois o sentido não está nas próprias obras, mas é produzido no processo de sua interpretação, inclusive pelo seu próprio autor.

Esse deslocamento do lugar do sentido fez com que a teoria de Gadamer fosse percebida por alguns autores como a defesa de uma espécie de niilismo, que negava a possibilidade da relação entre interpretação e verdade. Porém, essa é uma percepção equivocada, pois o que Gadamer faz não é anular a pretensão de veracidade das interpretações, mas torná-la relativa a uma determinada

tradição.

Gadamer acentua que o iluminismo pretendeu ancorar a objetividade do conhecimento em uma racionalidade universal, capaz de esclarecer a verdade. A aplicação dessa mentalidade à hermenêutica conduziu à tendência cientificizante, que via no método a garantia da correspondência objetiva entre o sentido imanente ao texto e o resultado da interpretação. Porém, Gadamer

154 GADAMER, Verdade e método II, p. 17. 155 GADAMER, Verdade e método II, p. 73.

rejeita essa universalidade na medida em que ela é baseada em um esquecimento da própria historicidade.

E, por meio da afirmação radical de uma autocompreensão histórica, Gadamer redescreve a trajetória do Iluminismo, conferindo-lhe um novo significado. A mentalidade moderna articulou um ataque à tradição medieval, afirmando uma racionalidade individual cujo caráter universal lhe confere uma validade para além de todas as tradições. O que marca a reforma protestante é que ela não propôs uma tradição alternativa de interpretação da Bíblia, mas a negação da própria necessidade de uma tradição hermenêutica. Radicalizando essa posição, os pensadores Iluministas, como Kant, Rousseau ou Hobbes, não se viam como portadores dos valores de sua cultura, mas como esclarecedores dos valores universalmente válidos porque racionais. Nesse contexto, a primazia do método era a garantia de uma verdade fundada na racionalidade e não em uma tradição.

Após séculos de tentativas de criar um lugar para além da tradição, percebe-se que o que se criou foi justamente uma nova tradição: uma nova autocompreensão, uma nova forma hegemônica de conferir significado à própria existência e ação humanas. É claro que toda tradição se coloca como detentora da verdade universal, e não se espera que uma religião deixe de afirmar que os seus dogmas, e somente eles, são objetiva e universalmente válidos. A tradição, seja ela religiosa, cultural ou epistemológica, nunca se posta como tal, pois ela não tem um caráter reflexivo com relação à própria historicidade. E, nesse ponto, a tradição iluminista não se diferencia da católica nem da islâmica nem da medieval.

Essa autoconsciência de que a modernidade é uma nova tradição, conduz a um pensamento renovado sobre o sentido da hermenêutica e sobre o papel da tradição na produção de conhecimento. Se mesmo nós, que vivemos dentro da tradição moderna, não podemos sair de dentro da nossa própria cultura, então as pretensões de veracidade não podem ser planteadas em nível universal, mas apenas em nível cultural. Por isso mesmo, o pertencimento a uma tradição é a

condição necessária para uma compreensão que nunca pode se pretender universal sem passar os seus próprios limites.

Toda verdade é contextual, toda interpretação é contextual, toda compreensão é contextual. Todo discurso é interno e, nessa medida, ele pode ter uma validade objetiva na medida em que ele se coaduna com os critérios de veracidade da tradição que define o jogo interpretativo que o intérprete joga. E joga sem decidir jogar, pois ninguém escolhe pertencer à tradição em que está inserido, na medida em que nossa subjetividade é constituída especialmente dentro da sociedade em que somos educados — e ninguém escolhe ser educado em uma determinada tradição.

Então, Gadamer não se contrapõe à objetividade da interpretação, mas apenas a sua universalidade. A verdade universal e imutável não encontra espaço no pensamento hermenêutico, embora a verdade seja um conceito operativo dentro de toda tradição interpretativa, pois é com base nela que avaliamos a validade objetiva de uma determinada interpretação. E daí vem a ênfase de Gadamer na afirmação de que “a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposição estar dentro de um acontecer tradicional”156. Portanto, é possível

falar em uma interpretação verdadeira, mas apenas no sentido de que ela é adequada aos cânones de uma determinada tradição cultural.

E uma parte relevante dessas tradições hermenêuticas é justamente o conjunto das regras de interpretação vigentes, estejam elas reunidas ou não de modo sistemático. Com isso, torna-se claro que o que Gadamer nega não é a necessidade do método, pois “nenhum pesquisador produtivo pode duvidar de que a pureza metodológica é indispensável à ciência”157. O discurso

metodológico linear pode até ser o modo específico de a ciência falar sobre o mundo, mas esse discurso é mudo sobre o processo de invenção dos novos métodos. Assim, o cientista não reflete sobre a legitimidade dos métodos que ele próprio usa nem os modos de sua constituição, e é nesse ponto que a hermenêutica tem o que dizer, pois ela coloca a autocompreensão (inclusive do cientista) no centro das atenções.

156 GADAMER, Verdade e método, p. 462. 157 GADAMER, Verdade e método II, p. 509.

Portanto, a questão da hermenêutica não é negar a validade dos métodos interpretativos, mas compreendê-los historicamente como expressões de uma tradição. Não se trata, pois, de oferecer uma metodologia interpretativa que supere as existentes, mas de compreender adequadamente como essas metodologias operam no processo de compreensão, contribuindo para que o intérprete não se aliene de sua própria subjetividade e historicidade.