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Capítulo II Hermenêutica e método 1 Modernidade e método

59 Vide S CHLEIERMACHER , Hermenêutica, pp 29-30.

Assim, enquanto o problema que interessava Schleiermacher era o de compreender textos com sentidos definidos, embora muitas vezes obscuros, ele entendia que o problema enfrentado pela hermenêutica jurídica era o de oferecer soluções concretas com base em normas que tinham caráter irremediavelmente genérico. Uma tal ligação do direito com a questão da

aplicação exige uma postura que não se coaduna perfeitamente com a metodologia que ele ofereceu para a hermenêutica, ligada à compreensão abstrata do sentido de um discurso e não à determinação prática das conseqüências de sua aplicação. Nessa medida, ele considerava que apesar de a hermenêutica jurídica ter um papel semelhante ao da teleológico-filológica, ela não era “completamente a mesma coisa”, o que o fez excluí-la do seu projeto de desenvolvimento de uma hermenêutica unificada.

Uma chave interessante para compreender essa recusa da hermenêutica jurídica é dada por Gadamer quando ele afirma que Schleiermacher opôs-se à hermenêutica tradicional de sua época porque passou a concentrar-se na compreensão do texto enquanto portador de significado e não no estudo dogmático do texto como um veículo que poderia conduzir à verdade. Esse estudo dogmático até hoje domina a teoria do direito, pois os textos jurídicos não são estudados para que sejam compreendidos, mas para que se possa extrair deles uma solução correta. Nessa medida, a análise do texto não é autônoma, mas subordinada a uma busca pela solução correta que o texto deve revelar.

Essa perspectiva dogmática era também a dominante tanto na hermenêutica teológica como na filológica. No caso da Bíblia, isso ocorria porque os estudos bíblicos não tinham como objetivo a compreensão do sentido do próprio texto, mas a apreensão da verdade que poderia ser revelada pela sua análise. No caso dos clássicos, o seu estudo não visava simplesmente à compreensão do sentido dos textos, pois eles eram entendidos não apenas como obras-primas de uma civilização passada, mas como textos canônicos que fixavam as regras adequadas da produção literária. O que se buscava neles não era simplesmente a sua compreensão, mas a identificação dos padrões que deveriam ser seguidos por qualquer literatura. Em nenhum desses casos, portanto, a finalidade do intérprete era compreender o sentido do texto em si, mas compreender o mundo a partir do próprio texto, a partir do desvelamento da verdade que ele encerrava.

Voltando-se contra esse tipo de interpretação dogmática, Schleiermacher defendeu a autonomia do sentido do texto, pois o seu objetivo já não era revelar a verdade oculta no texto, mas compreender o próprio sentido do texto, independentemente da veracidade ou não desse significado. Somente ao dar esse passo é que Schleiermacher pode unificar o estudo de textos sagrados e profanos, clássicos e modernos, submetendo a compreensão de todos eles à mesma metodologia. O seu objetivo já não era compreender a verdade revelada no texto, mas entender o sentido do texto como expressão de um indivíduo cuja atividade criadora encerrou em um texto um sentido determinado. E é por isso que Gadamer diz que, na teoria de Schleiermacher, “a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da Antigüidade clássica foram liberados do interesse dogmático”61.

Esse objetivo, contudo, parece inadequado à hermenêutica jurídica, pois a interpretação do direito tem sempre um caráter fortemente dogmático, pois parte do princípio de que a norma oferece solução para o caso analisado e tem como finalidade a tomada de decisões e não o conhecimento do sentido do texto, seja ele qual for. Então, é justamente o caráter inafastavelmente dogmático da hermenêutica jurídica que impediu que Schleiermacher a inserisse no seu projeto de uma hermenêutica geral, que deveria abandonar a postura dogmática tradicional, para concentrar-se em na compreensão do texto. Creio que isso não implica que Schleiermacher negava a possibilidade de aplicar as regras hermenêuticas gerais ao estudo do direito, mas simplesmente que ele reconhecia que o resultado dessa aplicação não seria suficiente para o campo jurídico, dado que, diversamente do teólogo e do filólogo, os juristas práticos não poderiam limitar sua atividade à mera compreensão do sentido dos textos.

b) A universalização do mal entendido

Como sempre ocorre com as grandes sistematizações, podemos identificar vários antecedentes para as idéias de Schleiermacher, inclusive para o seu projeto unificador. Ainda no início do século XVII, por exemplo (ou seja, quase duzentos anos antes de Schleiermacher), o teólogo germânico

Dannhauer62 concebeu a idéia de que era possível desenvolver uma

hermenêutica geral, que abrangesse todos os processos de interpretação de textos escritos. Tal como a lógica oferecia as regras para argumentar corretamente em todas as áreas do conhecimento, a hermenêutica deveria oferecer a todas as ciências as regras para interpretar corretamente. E cabe ressaltar que foi o próprio Dannhauer que inaugurou o uso da palavra

hermenêutica para designar especificamente a teoria da interpretação.

Dannhauer considerava que somente deveria existir uma hermenêutica, uma teoria da interpretação que abrangeria todos os processos de interpretação utilizados pelas ciências interpretativas particulares, especialmente o direito e a teologia. Com isso, o papel da hermenêutica deveria ser alinhar-se à lógica como uma disciplina auxiliar e propedêutica para as ciências interpretativas especiais. Entretanto, Dannhauer publicou apenas um livro de hermenêutica teológica, não chegando a elaborar a hermenêutica geral que havia projetado, a qual permaneceu sendo apenas um esboço, um programa que não foi realizado e que não teve influência concreta no desenvolvimento da hermenêutica.

Também o século XVIII assistiu a várias tentativas de elaborar teorias interpretativas gerais, como as de Chlaudenius (1742) e Meier (1757), mas elas ainda eram inspiradas por uma concepção dogmática e acessória da hermenêutica e não desenvolviam metodologias interpretativas suficientemente estruturadas para atender aos anseios metodológicos de uma cultura que tinha na física newtoniana o paradigma de sistematicidade. E o desafio de Schleiermacher, ao contrário dos seus antecessores, era o de elaborar uma hermenêutica tão próxima quanto possível dos padrões de cientificidade. E, sendo ele principalmente um teólogo, podemos identificar em sua busca a tentativa de elaborar uma teologia científica, por meio da elaboração de uma metodologia adequada de interpretação dos textos bíblicos63.

Os antecedentes imediatos das teorias de Schleiermacher foram as concepções de dois autores germânicos do final do século XVIII: Friedrich Ast