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Essa é uma tese de matriz platônico que Gadamer define como uma interpretação

Capítulo II Hermenêutica e método 1 Modernidade e método

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dogmática do mundo, pois ele não busca o sentido das obras, mas a verdade que elas portam. Vide GADAMER, Verdade e método.

Portanto, não basta observar passivamente o mundo, mas é preciso investigá-lo de um modo correto, pois a identificação das leis que regem o mundo exige que a nossa observação do mundo seja racional, e a garantia dessa racionalidade é feita mediante a definição de métodos racionais de observação, que devem ser aplicados pelo intérprete. Sem esses métodos, o observador até pode chegar à verdade, mas ele não terá certeza de que chegou lá, pois seguir as próprias intuições nunca é garantia do acesso à Verdade. Assim, por mais que seja possível alcançar a Verdade por intuição, somente é possível ter certeza objetiva acerca da verdade mediante uma demonstração racional, o que exige a aplicação de uma metodologia racional.

Nessa medida, por mais que haja uma forte carga intuitiva/irracional no processo de criação de novas hipóteses de interpretação, a comprovação ou refutação dessas hipóteses somente pode ser feita mediante a aplicação de metodologias objetivas, racionalmente definidas.

Essa é basicamente a concepção da ciência moderna, que tende a só confiar em conhecimentos que possam ser comprovados mediante a aplicação de métodos determinados. Os cientistas modernos abandonaram o ideal grego da filosofia contemplativa, ao entenderem que as verdades do mundo não são descobertas por uma observação cuidadosa, mas por uma investigação metódica que envolve a formulação criativa de idéias e a sua comprovação racional.

Portanto, a mentalidade científica moderna compartilha o pressuposto grego de que existe uma verdade a ser descoberta, mas inova ao defender que o modo de alcançar a certeza da verdade é a aplicação de um método correto. Essa visão metodologizante, que nasceu na filosofia e nas ciências, aos poucos tomou conta do pensamento ocidental, inclusive da hermenêutica. Os resultados da aplicação do método científico foram tão evidentes (pense-se, por exemplo, na física newtoniana) que ele se tornou o paradigma fundamental do pensamento moderno, de forma que a solidez dos vários ramos do conhecimento passou gradualmente a ser medida em razão da sua proximidade (ou distância) com relação às ciências naturais matematizadas.

O método, contudo, não nasce pronto da cabeça dos filósofos, cientistas, teólogos, juristas ou quaisquer outros intelectuais — e a construção de uma metodologia hermenêutica unificada e sistemática foi um processo lento, como

costuma ser todo processo desse tipo. A noção de que deveria haver um método correto de interpretar é apenas um primeiro passo para que as pessoas se dediquem à elaboração de uma tal metodologia. Por mais que Descartes tenha delineado um esboço geral do método de pensamento moderno, era preciso que cada área do conhecimento definisse metodologias adequadas aos seus objetos específicos.

Inicialmente, esse processo de metodologização consistia em uma espécie de mapeamento dos cânones interpretativos tradicionalmente utilizados. Esse movimento gerou compêndios de regras interpretativas tradicionalmente utilizadas nas atividades dos juristas, dos teólogos e dos filólogos, regras essas que normalmente contém em si muito bom senso, mas que não formam um todo coerente. Porém, por mais que esses conjuntos de cânones pudessem servir para orientar uma prática adequada, eles não formavam um sistema unificado e sistematizado de regras. Tratava-se ainda de uma compilação do senso comum, e não do desenvolvimento de um sistema moldado pelas exigências modernas de unicidade, racionalidade e coerência.

Além disso, nesses esforços iniciais não havia ainda um pensamento hermenêutico propriamente dito, pois os teóricos da interpretação simplesmente pretendiam extrair da prática filológica, teológica e jurídica os cânones adequados para orientar o intérprete no processo de extração dos sentidos corretos dos textos. Assim, não se procedeu propriamente a uma reflexão acerca dos métodos interpretativos, mas a uma coleção das regras que deveriam ser utilizadas na interpretação.

Após esse esforço de mapeamento, costuma vir uma época de sistematização, na qual os especialistas gradualmente harmonizam os cânones tradicionais, percebem os pontos em que eles se contradizem e se completam e inventam estratégias para contornar essas contradições. Com isso, os conhecimentos dispersos gradualmente adquirem unidade e os conjuntos de regras justapostas se transformam em um sistema organizado de maneira racional e sistematizada.

A reconstrução histórica desse processo de sistematização pode ser bastante enganadora, pois, em um dado momento, costuma surgir um teórico que estabelece um modelo sistemático e unificado, pretensamente fruto de uma

construção puramente racional. Isso dá uma ilusão de ruptura, pois pode gerar a aparência de que os teóricos anteriores eram indutivistas sem sofisticação suficiente para construir um sistema abstrato, baseado em princípios evidentes para a razão. Por trás dessa ruptura aparentemente revolucionária, esconde-se um longo período de maturação, em que se consolidam indutiva e praticamente, em uma obra coletiva e longa de maturação, os conceitos que permitem sair de um pensamento indutivo e tópico, passando por sistematizações parciais, para, enfim, chegar a um modelo sistemático universalizante, que é sempre o objetivo final da racionalidade moderna.

Quando o sistema está pronto, muitas vezes esquecemos de suas raízes históricas e o descrevemos como uma construção meramente racional e abstrata, descoberta pelo gênio de algum grande pensador. Creio que isso ocorre, ao menos em grande parte, porque a justificação de um sistema nunca é feita com base nas contingências de sua história, mas com base na lógica interna de sua própria construção e no modo como ele se assenta em premissas consideradas evidentes para a razão.

Esse furor sistematizador do racionalismo iluminista resulta no domínio do discurso normativo, que se impõe inclusive ao discurso científico, fundado da descoberta de leis naturais. Se há alguma atividade humana, devemos ser capazes de identificar as regras que devem orientar o proceder correto, que são justamente as regras derivadas da própria razão. A noção de que toda atividade deve ser regulada por um conjunto relativamente simples de regras gerais,

abstratas e claras parece envolver todo o conhecimento, especialmente por ser esse o modo de construção do saber científico paradigmático: a física. Essa tendência para a construção de sistemas abstratos e unificadores mostra-se inclusive nas áreas que hoje nos parecem menos normatizáveis, como é o caso da criação artística, sobre a qual Paul Valéry afirma:

Mas, pouco a pouco, e em nome da autoridade de grandes homens, a idéia de uma espécie de legalidade foi introduzida e substituiu as recomendações iniciais de origem empírica. Raciocinou-se e o rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em fórmulas precisas; a crítica armou-se; e então seguiu-se esta conseqüência paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos do poeta dificuldades racionais, conheceu um grande e durável prestígio devido à

extrema facilidade que ela dava para julgar e classificar as obras, a partir da simples referência a um código ou a um cânon bem definido.55

Apesar de ser o nome de Newton que entrou para a história como o grande sistematizador da física, não podemos deixar de perceber o seu trabalho como o ponto final de uma série quase infinita de esforços anteriores ao seu — e o mesmo vale para grandes sistematizadores de outras áreas do conhecimento, como os enciclopedistas franceses; como Kant e Hegel na filosofia; Wolff e Windscheid no direito; Darwin na biologia; Smith e Mill na economia; Mendelejev na química. Na hermenêutica, esse grande sistematizador é justamente Schleiermacher.