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Capítulo I Do naturalismo ao positivismo 1 O direito moderno

2. Crise do jusracionalismo

Os séculos XVII e XVIII foram o ápice do jusracionalismo, ou seja, das correntes jurídicas que entendiam ser possível descobrir regras jurídicas racionalmente necessárias e, nessa medida, universalmente válidas. Antes dessa época, o direito natural era entendido como um conjunto de princípios genéricos, ligados à idéia de justiça, que serviam como padrão para aferir a legitimidade do direito positivo173. Era assim, por exemplo, em São Tomás, que

afirmava que o direito natural resumia-se basicamente no princípio faz o bem e

evita o mal, sem decompô-lo em um sistema de regras específicas e hierarquicamente estruturadas, tal como vieram a fazer vários dos jusnaturalistas da Idade Moderna174.

Ademais, como ensina o historiador francês Michel Villey, tanto na Antigüidade clássica como na Idade Média, o próprio termo direito não se referia

a um conjunto de regras. Nessa época, a palavra empregada para designar o direito era derivada do adjetivo latino jus, sendo que o direito não era tratado como uma coisa (ou conjunto de coisas), mas como um predicado a ser atribuído. Assim, o termo “direito” não era utilizado como um substantivo que designava um objeto determinado, mas como um adjetivo que indicava aquilo

que é justo, sendo que esse modo de emprego, derivado da cultura greco-romana, permaneceu na cultura européia até a época do jusracionalismo iluminista, quando se consolidou o uso substantivo da palavra.175

Um dos motivos dessa mudança foi que, na modernidade, construiu-se a noção de que cada sujeito individualmente poderia estudar o mundo utilizando- se de sua própria razão e descobrir, a partir da observação acurada e da análise cuidadosa, as regras que o regiam. Era isso o que fizeram os físicos, como Newton, reduzindo a complexa natureza a reflexos da aplicação de um punhado de regras muito gerais. Era isso o que tentaram fazer os juristas, que utilizavam a razão para extrair da natureza das coisas os princípios fundamentais que eram válidos porque racionais. Dessa maneira, “o direito natural tornou-se não só uma mera coleção de algumas idéias importantes ou dogmas, mas um sistema jurídico detalhado semelhante àquele do direito positivo”176.

Porém, embora cada jurista considerasse que as regras que “descobria” eram universalmente válidas, cada um deles construía um sistema diferente,

175 Cf. VILLEY, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 [tradução

livre]. E continua Villey: “Esse fato mostra-se bastante claramente em um dos conceitos de direito mais repetidos da história: a do jurisconsulto romano Celso, que definia o direito como a arte do bom e do eqüitativo. Quase toda vez que essa frase é dita nos dias de hoje, antiga concepção de direito é repetida, mas não compreendida. O direito não era entendido como o conjunto de regras boas e eqüitativas, mas como uma qualidade das decisões e condutas que são boas e eqüitativas. A concepção do direito como conjunto de regras é bastante recente, mas introduziu-se de tal modo em nosso senso comum que é difícil perceber que é possível pensar de modo diverso. Certas regras são jurídicas porque são justas. Certas decisões são jurídicas porque são boas. Certas condutas são jurídicas porque são eqüitativas.”

fundado em seus próprios preconceitos. Afirmando descobrir regras universais a partir de critérios de evidência177, terminavam por afirmar como válidas

(porque lhe pareciam evidentes) as regras fundamentais de sua cultura e/ou ideologia.178 Como afirmou Michel Villey, por mais que soe absurdo aos

ouvidos contemporâneos (acostumados com o relativismo de valores que se implantou desde o momento em que se tentou levar às últimas conseqüências o direito de liberdade), houve um tempo em que as mentes mais brilhantes acreditavam que a racionalidade humana, fundada em raciocínios pensados conforme as regras da lógica, poderia nos mostrar quais eram os valores

naturalmente corretos, porque racionalmente necessários. 179

Torna-se, então, evidente o importante papel desempenhado pelo jusracionalismo na derrubada do antigo regime, pois muitos dos grandes jusracionalistas do séc. XVIII defendiam a naturalidade dos direitos vinculados ao ideário liberal. Nesse campo, especial destaque deve ser dado a Locke, que qualificou como naturais os direitos ligados à concepção liberal. Tão forte era essa ligação com a idéia de direitos naturais que, na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, os revolucionários franceses resolveram “declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”180, entre os quais a liberdade, a igualdade e a propriedade.

Entretanto, vitoriosa a revolução contra o antigo regime, um jusracionalismo muito livre transformava-se em um elemento de instabilidade, pois os juristas vinculados a essa corrente poderiam buscar, individualmente, os princípios do direito natural e, com isso, sobrepor as regras que encontrasse (ou

177 A evidência era o critério básico de verdade para as ciências e para a filosofia desde

Descartes (séc. XVII).

178 Sobre esse tema, convém ler o modo como Thomas Hobbes enuncia as várias

regras do direito natural nos capítulos XIV e XV do Leviatã.

179 VILLEY, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 e ss. [tradução

livre]

180

pensasse encontrar) ao direito positivo imposto pelo Estado181. Com isso, o

jusnaturalismo de combate que animou os revolucionários precisava ser convertido em um jusnaturalismo conservador, que justificasse a ordem de poder instaurada pela revolução.

A justificação de todo poder envolve uma espécie de mitologia, e as revoluções liberais substituíram o mito do direito divino dos reis pelo mito da

representação popular. Os deputados franceses não eram mais representantes do povo do que Luís XIV era representante do deus cristão, mas era impossível articular dentro da ideologia liberal um discurso que questionasse a sua legitimidade, pois as bases ideológicas que justificavam a instauração dos Estados Liberais, fundados no princípio da representação democrática, não permitiam a elaboração de uma crítica a modelo de organização política.

Além disso, no plano da filosofia, foi-se consolidando paulatinamente a idéia de que a razão não era capaz de discernir o justo do injusto, mas tratava-se de um instrumento capaz apenas de discernir o verdadeiro do falso182. Aos

poucos, foi sendo minada a confiança em que um indivíduo seria capaz de identificar as regras justas por natureza, mediante critérios de evidência racional.

Assim, embora não tenha sido abandonada a idéia do direito natural enquanto fundamento da ordem positiva, perdeu terreno a idéia jusracionalista de que cada jurista poderia descobrir os princípios justos por natureza, mediante um esforço individual de reflexão. Especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, somente ao legislador cabia a revelação do direito natural, restando ao juiz apenas o papel de aplicar o direito legislado aos casos concretos. Portanto, o juiz agia em nome do direito natural (que justificava a autoridade que o povo transmitia ao legislador), mas não poderia invocar o direito natural contra as decisões legislativas.

Foi, então, abandonado o ideal cartesiano, deveras revolucionário, do indivíduo que buscava identificar racionalmente na natureza as suas leis, e

181 Tal como veio a fazer, por exemplo, o bom juiz Magnaud, no final do século XIX.

Vide PERELMAN, Lógica jurídica, pp. 96.

consolidou-se a idéia de que as normas jurídicas válidas eram aquelas determinadas pelos poderes sociais estabelecidos. Assim, o jusnaturalismo liberal deixou de ter uma função iconoclasta, pois já não era mais uma arma para combater uma tradição hegemônica, mas a base mítico-ideológica para a instauração de uma nova tradição. Essa conversão exigiu que fosse inviabilizada uma ligação direta entre o juiz e o direito natural, estabelecendo-se entre esses dois elementos uma relação necessariamente mediada pela lei: a lei deveria refletir as regras naturais, mas os juristas não poderia questionar a validade da lei com base em argumentos jusnaturalistas. E, como no início do século XIX não havia um discurso crítico para além do jusnaturalismo iluminista, a perda do sentido revolucionário do jusnaturalismo privou o discurso jurídico de seus instrumentos de crítica.

Assim, como todo revolucionário que ascende ao poder, o jusnaturalismo tornou-se um conservador bastante inflexível, pois o que o movia não era o respeito relativista às diversidades, mas a afirmação apaixonada da utopia que ele ergueu contra a tradição que destronou. E, como esse jusnaturalismo propunha uma espécie de sacralização do direito positivo, a sua cristalização como discurso legitimador do direito moderno foi primeiro grande passo para a formação da mentalidade positivista, que veio a tornar-se hegemônica na teoria jurídica desde o século XIX.