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A FORMALIZAÇÃO DA P RÁXIS PSICANALÍTICA EM LACAN

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 150-153)

No capítulo anterior foi feito um percurso a partir da questão do uso feito do poder nas psicoterapias, como eixo norteador para uma distinção entre psicoterapias e psicanálise, visando identificar em que a consiste a especificidade da prática psicanalítica, se configurando como uma práxis com características singulares. Mas se reconhecemos a psicanálise como uma práxis singular, que não pode ser reduzida aos preceitos e objetivos das psicoterapias, de que modo podemos então pensar a questão das iatrogenias na psicanálise?

No capítulo 4 deste trabalho, foram apresentados resultados encontrados na literatura para o tema da iatrogenia no campo das psicoterapias. Porém, se aceitamos a distinção entre os campos da psicoterapia e da psicanálise, coloca-se em cheque a possibilidade de que as pesquisas realizadas no campo da psicoterapia possam ser aplicadas de maneira direta ao campo psicanalítico. A compreensão acerca da iatrogenia no campo das psicoterapias segue os preceitos desse campo. Já a prática psicanalítica, por sua especificidade, justifica a necessidade de pensar a questão do potencial iatrogênico de um modo coerente com os pressupostos de sua prática e, portanto, não coincidentes com o que é encontrado no campo das psicoterapias. Faz-se necessária outra via de abordagem, que permita configurar um modo de investigação alinhado às especificidades do campo psicanalítico.

A fim de possibilitar essa via de pesquisa no campo psicanalítico, entendemos que, primeiramente, seria necessário conduzir uma investigação acerca do modo de funcionamento da prática psicanalítica e de quais seriam as operações envolvidas em uma análise para que, a partir disso, seja possível eventualmente localizar as possíveis hipóteses de iatrogenia em seu interior.

151 Assim sendo, para avançar na investigação acerca do potencial iatrogênico da psicanálise, será apresentado e discutido neste capítulo o modelo apresentado por Lacan em seu Seminário 12, Problemas Cruciais para a Psicanálise (Lacan, 1964-65/2006), no qual Lacan coloca como objetivo delimitar os requisitos essenciais para caracterizar a prática do psicanalista ou, em suas palavras: “...gostaria que continuássemos hoje avançando naquilo que é o problema crucial. Procuramos propor uma forma e, para ser mais preciso, uma topologia essencial à práxis psicanalítica.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 138), ou ainda “...uma tentativa de reunião de condições lógicas onde se coloque a questão do que podemos conceber que seja o que se espera do saber do psicanalista.” (Lacan, 1964-65/2006 g. 325)

É certo que há ainda outros momentos da obra lacaniana em que é retomado esse esforço de caracterização da práxis psicanalítica. Podemos pensar no Seminário 15 (1967-68, inédito), O ato analítico, com as construções em torno do conceito de ato analítico, ou ainda o Seminário 17 (Lacan, 1969-70/1992), O avesso da psicanálise, com a teoria dos quatro discursos. Contudo, acreditamos que é no modelo do Seminário 12 que se mostra de modo mais detalhado a dinâmica dos elementos envolvidos na prática psicanalítica e as operações possíveis ao analista, a partir destes elementos.

Além disso, é insistente também nesse Seminário 12 a preocupação de Lacan com a responsabilidade do analista no exercício de sua prática, bem como os riscos de uma prática mal conduzida. Lacan destaca justamente o modo como a prática clínica, por sua relação com o poder, estaria sujeita também a erros em sua condução, o que traz implicações diretas para a questão da responsabilidade assumida pelo analista ao conduzir um tratamento. Assim, a importância de investigar quais seriam os fundamentos dessa prática psicanalítica se justifica também pelo interesse em orientar essa posição responsável assumida pelo analista.

Vimos no capítulo anterior as referências de Lacan acerca da relação entre a prática psicanalítica e o exercício de um poder o que, como consequência, representa risco de erros em sua condução. Mas, como visto também no capítulo anterior, na relação entre poder e psicanálise, trata-se de não permitir que se reduza a prática psicanalítica apenas a um exercício de poder. Ou seja, isso não significa dizer que não

152 cabe ao analista considerar os modos como a questão do poder atravessa sua prática, não apenas no sentido do poder que exerce sobre seu paciente, mas também no sentido do paciente em relação ao analista e indo além para considerar até mesmo outros atravessamentos de poder relacionados à sua prática. Foi neste sentido que destacamos que a responsabilidade do analista envolve a possibilidade de conduzir o tratamento de um modo que seja capaz de reconhecer e estar atento às dinâmicas de poder que atravessam o tratamento para, a partir daí, realizar operações que possam promover incrementos na liberdade do sujeito, em sua relação com seu desejo.

Nesta montagem, a responsabilidade do analista só pode ser pensada a partir de uma investigação que tome esse jogo de poder como campo de análise e que tenha no horizonte a liberdade do sujeito. Para isso, é necessário reconhecer o sujeito enquanto parte desse jogo, envolto também na disputa de poder e capaz de oferecer resistência. Trata-se, então de perquirir qual estatuto é conferido a este sujeito que busca a análise.

Uma maior clareza acerca do estatuto desse sujeito, e de suas implicações para o tratamento, é o ponto de partida para fornecer algum tipo de possibilidade de redução do risco mencionado por Lacan, de que o analista se considere como benfeitor quando na verdade comete um erro na condução do tratamento, exercendo seu poder no sentido de uma dominação e falhando em sua responsabilidade com o paciente. Não à toa, a questão do ser do sujeito é colocada como um dos principais temas desse Seminário 12, em sua relação também com a responsabilidade do psicanalista:

“A ontologia do sujeito - e qual é a ontologia do sujeito, a partir do momento em que há inconsciente? -, é sobre isso que tentarei este ano traçar para vocês as linhas. Isso tem consequências não somente no nível da crítica como se diz, mas da responsabilidade do psicanalista, termo tão difícil de evocar no contexto da sociedade psicanalítica.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 227)

Assim, o modelo proposto neste Seminário 12 para formalizar a prática psicanalítica tem como base uma discussão profunda acerca do estatuto do sujeito, tendo como mirada a questão da responsabilidade do analista na condução do

153 tratamento. Neste capítulo, então, será apresentado esse modelo para, em seguida, buscar situar os possíveis riscos de erros ou iatrogenias do tratamento psicanalítico.

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 150-153)