• Nenhum resultado encontrado

QUAL ESTATUTO PARA O SUJEITO NO TRATAMENTO PSICANALÍTICO?

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 158-165)

Ao longo deste Seminário 12, Lacan aborda a questão do ser do sujeito, tomando para isso referências em temas da lógica e da filosofia. Em particular, os desenvolvimentos no campo da lógica e da matemática com Frege (1884/1983) acerca do conceito de número (e, de modo destacado, o conceito de zero), bem como dos campos da linguística e da filosofia clássica, com o questionamento acerca de qual estatuto pode ser dado ao nome próprio e os efeitos da função de nomeação para o sujeito. Tais temas são discutidos sob o prisma da identificação e do modo como seria possível pensar a relação do sujeito com seu próprio ser, considerando o sujeito em sua relação com a linguagem e com o saber.

Esses desenvolvimentos irão culminar numa definição de significante tomada por Lacan como paradigma central para a discussão sobre o sujeito neste Seminário 12 (Lacan, 1964-65/2006, pg. 326), e que configuraria uma das “duas posições fundamentais do que lhes ensino quanto à nossa lógica, a lógica de nossa prática psicanalítica, a lógica implicada pela existência do inconsciente”. Tal definição é a de que “O significante é o que representa o sujeito para um outro significante” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 326) . De tal definição podem ser extraídas uma série de implicações que podem embasar a possibilidade de uma articulação acerca da prática psicanalítica.

Uma primeira derivação importante destacada por Lacan é a importância da diferenciação entre signo e significante, sendo o signo aquilo que representa alguma coisa para alguém e que, portanto, se aproxima da ideia de sinal e do uso para comunicação, da informação. Isso em oposição ao significante que, como dito, representa o sujeito para outro significante. Nesse sentido, Lacan afirma:

159 “O acento colocado aqui na fórmula, o significante representa o sujeito para um outro significante, vocês o observaram, consiste em diferenciar o significante, não do lado do receptor como se faz sempre, e onde ele se confunde com o sinal, mas do lado do emissor, pois se digo que o significante representa o sujeito para um outro significante, é na medida em que o sujeito do qual se trata é aquele que o emite.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 294).

O sujeito aqui tomado em sua relação com o significante e, consequentemente, com a falta, efeito de um descompasso neste processo de representação, em que o significante aparece como representante do sujeito. Por um lado, é por meio da articulação significante, enquanto representante do sujeito, que é possível emergirem os efeitos de sentido e toda significação possível. Por outro lado, tal processo relega o sujeito - e seu desejo - a esta posição de resíduo, a este momento de falha e de oscilação entre significantes. Seguindo com Lacan:

“Se é verdade que há a falha (...) se é verdade que essa representação do sujeito, que esse de quem o significante é seu representante, é o que se presentifica no efeito de sentido e que haja aí, entre isso e tudo o que se constrói como significação, essa espécie de campo neutro, de falha, de ponto de acaso, o que vem se encontrar não se articula absolutamente de maneira obrigatória.” (Lacan, 1964-65/2006, Pg. 23)

Essa falha e seus efeitos sobre toda significação resultam da inferência de que, se o significante é o que representa o sujeito para um outro significante, temos aí também que “o significante determina o sujeito, determinando-o, ele o barra e esta barra quer dizer por sua vez vacilação e divisão do sujeito.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 291). Assim, nesse efeito de representação do sujeito pelo significante, mas que ao mesmo tempo barra o sujeito, é que se estabelece o efeito de repetição e alternância em que o sujeito e seu desejo, em sua singularidade, apenas podem emergir nos vacilos do significante: “ao significante representando o sujeito numa função de alternância, de vel, de ‘ou bem isso, ou bem aquilo’, ou bem o significante que representa, ou bem o sujeito e o significante que desvanece.” (Lacan, 1964-65/2006, Pg. 343).

160 É nesse ponto que as referências de Lacan ao conceito de zero em Frege e à função do nome próprio na filosofia clássica ganham todo seu relevo: que o sujeito, em sua relação com a falta, e determinado pelo significante, se afasta da lógica de uma conotação ou classificação ou referência direta e universal ao ser do sujeito, mas, pelo contrário, se refere a algo de singular, particular e irredutível da dimensão do sujeito que se articula na falha da articulação significante. Sobre isso:

“Que esse sujeito se situe, se caracterize essencialmente, como sendo da ordem da falta, é o que tentei fazer-lhes sentir mostrando, nos dois níveis, do nome próprio por um lado, da numeração por outro, que o estatuto do nome próprio não é possível de articular, não como uma conotação cada vez mais aproximada disso que chegaria, na inclusão classificatória, a se reduzir ao indivíduo, mas ao contrário, como o preenchimento de alguma coisa de uma ordem outra, que é o que, na lógica clássica, se opunha à relação binária do universal com o particular, como alguma coisa terceira e irredutível a seu funcionamento, a saber, como o singular.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 325)

Assim, com o recurso à lógica moderna da numeração e, mais especificamente, ao conceito do próprio zero, Lacan encontra em Frege a possibilidade de conferir uma fundamentação desse estatuto singular do sujeito. Tal concepção, segundo Lacan (1964- 65/2006, pg. 327) “nos dá acesso à verdade e à prática analítica, (...) e que essa lógica pode convocar, que poderia convocar, se tenho êxito, a formalizar o desejo.”. E aqui temos outro ponto de grande importância para os desenvolvimentos subsequentes: a relação entre sujeito e verdade e as implicações dessa relação para que se possa pensar o desejo do sujeito, enquanto desejo determinado pelo jogo significante.

A partir desta relação com a verdade, pode-se extrair outra posição colocada por Lacan como fundamental para a lógica da prática psicanalítica e o estatuto do sujeito no tratamento. Se tomamos essa premissa do significante, enquanto aquilo que representa o sujeito para outro significante, qual deve ser então o estatuto do saber em sua relação com o sujeito e com a verdade? Tal questão se coloca como fundamental devido ao argumento de que a própria possibilidade e estabelecimento de uma análise,

161 possibilidade de início de um tratamento, está em um momento inicial de suposição de saber, ou seja, em que o paciente supõe ao analista um saber, colocando-o na posição de sujeito suposto saber. Assim, a segunda proposição fundamental colocada por Lacan neste Seminário (Lacan, 1964-65/2006, pg. 326): “O que quer dizer, em nosso campo, no campo que a psicanálise descobre, o que quer dizer a fórmula, o sujeito suposto

saber?”

Lacan propõe então uma discussão acerca da própria concepção de saber ao longo da história da ciência e, posteriormente, o modo como a questão do saber é subvertida no campo psicanalítico. Retomando a discussão colocada por Descartes ao propor seu cogito, Lacan retoma a questão do saber na história da Ciência. Amparada pelo argumento do cogito cartesiano, a ciência avança como uma acumulação contínua de informações, um saber que pode ser armazenado, acumulado, somado. Porém, para que isso se sustente, é necessária uma concepção de saber como nada mais do que um agrupamento de significantes. Desse modo, o que acaba se perdendo neste processo é justamente a questão da verdade e do real. Neste sentido, Lacan afirma:

“E o que não se vê é que esse real do sábio, a saber, o que é um saber, é exatamente um corpo de significantes e absolutamente nada mais. Se a noção de informação pode tomar essa forma anônima que permite qualificá-la em termos do que se chama bit, é na medida em que a armazenagem, o storage de elementos de informação se basta por si mesmo a nossos olhos para constituir o que se chama um saber… (...) Na necessidade mesma do saber, da articulação significante, há essa contingência de não ser senão uma articulação significante, uma fechadura montada” (Lacan, 1964- 65/2006, pg. 334)

Assim, trata-se do lugar do sujeito nesta relação com o saber, que posição para o sujeito neste saber da ciência, passível de ser acumulado? Se, por um lado, temos que o significante é o que representa o sujeito para outro significante e, por outro lado, que esse significante, ao mesmo tempo, barra o sujeito, como então pensar o lugar do sujeito num saber científico que se articula como um corpo de significantes que se acumula?

162 O que nos mostra a descoberta freudiana é justamente a limitação desse saber enquanto mera composição significante, é a impossibilidade de articulação de um saber completo e universal, sem falhas. Se é possível pensar um sujeito em relação com o saber é justamente no ponto em que esse saber falha, em que há uma falta no saber. Neste sentido:

“é na ambiguidade da relação de um sujeito com o saber, é no sujeito enquanto ele falta ainda ao saber, que reside para nós o nervo, a atividade da existência de um sujeito. É exatamente por isso que não é enquanto suporte suposto de um conjunto harmonioso de significantes do sistema que o sujeito se funda, mas na medida em que em algum lugar há uma falta que eu articulo para vocês como sendo a falta de um significante, porque é essa articulação que nos permite reunir da maneira a mais simples a articulação freudiana para dela desprendermos a força essencial.” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 341)

Assim, trata-se, na descoberta freudiana, da relação do sujeito com um não- saber, um saber ao qual o sujeito se recusa a ter acesso.

“O que quer dizer o inconsciente, é que o sujeito recusa um certo ponto de saber, é que o sujeito se designa deliberadamente o não saber, é que o sujeito se institui - esse é o avanço em que a articulação freudiana se enriquece através de que eu designo à margem concernente à relação do sujeito com o significante - é que o sujeito se institui por um significante rejeitado, verworfen, por um significante do qual não quer saber nada.” (Lacan, 1964- 65/2006, pg.342)

Há assim, um ponto de falha no saber, um impossível de saber, que se encontra na própria fundação do sujeito, um real que não se inscreve e que Lacan indica como o impossível da relação sexual:

“...mas o masculino e o feminino, nós não sabemos o que é. E Freud o reconhece, o afirma.

163 O que é? Para que o saber, penso, o saber capaz de dar conta dele mesmo, o saber que sabe articular o sujeito - não há outro para dar seu estatuto ao inconsciente, o inconsciente não quer dizer nada fora dessa perspectiva - o que há nesse saber de especial para que à aproximação desse saber funcione, e de uma maneira unilateral, a saber, no sentido de puro eclipse, da desaparição do significante, não apenas do Verwofen fundador do sujeito mas o Verdrangt, recalcamento de tudo o que pode aproximá-lo mesmo de longe e que testemunha a presença do sujeito no inconsciente, onde o sujeito do inconsciente é o sujeito que evita o saber do sexo?” (Lacan, 1964-65/2006, pg. 344)

Impossível de saber, uma falta no saber, um significante faltante, sendo daí que se articula o sujeito em sua singularidade, de tal modo que o “sujeito do qual se trata não é senão o sujeito em sua relação com o significante faltante.”. (Lacan, 1964- 65/2006, pg. 347). Ou, como coloca Dunker (2015): “sujeito tomado então, enquanto sujeito dividido, em sua divisão entre fala e língua, entre significante e significado, entre eu e outro, entre enunciado e enunciação, entre desejo e demanda, enfim, o sujeito em sua gramática de divisões.”. Esse sujeito dividido estaria fundado justamente na certeza do impossível, como mostra formalização utilizada por Lacan:

Figura 3: Representação do sujeito sustentado pela certeza do impossível

Essa representação, com uso da barra colocando um elemento acima e outro abaixo, recorrente na obra lacaniana, é aqui utilizada para representar o processo de

164 constituição do sujeito, com a ideia de que algo (abaixo da barra) é suprimido, negado, para permitir o estabelecimento de algo (acima da barra) que se constitui e que se evidencia na realidade. Assim, é a certeza do impossível que sustenta este sujeito. E esta certeza do impossível, como vimos, se relaciona à perda de um significante, um significante originalmente foracluído. Trata-se de um modo diverso de pensar a constituição subjetiva, diferente de propostas anteriores na obra lacaniana.

A ideia aqui é propor um modo unificado para constituição subjetiva, invariável, independentemente da estrutura do sujeito. Assim, a princípio, com o diagnóstico estrutural, tínhamos também a proposta de modos específicos de constituição do sujeito, conforme a estrutura (recalque para a neurose, foraclusão para a psicose e recusa para a perversão). Já neste momento do Seminário 12, temos a sugestão de que, independentemente da estrutura, haveria sempre uma foraclusão fundante do sujeito, constitutiva. Sendo que apenas em um segundo momento é que este sujeito estabeleceria sua relação com a linguagem a partir de uma das saídas mencionadas anteriormente (recalque, foraclusão, recusa). É essa a posição de Dunker (2015):

“Neste Seminário 12 temos uma proposta que se aproxima mais de um modelo unificante, em que o sujeito, qualquer que seja sua estrutura, se constitui não necessariamente pelo recalque, mas sim pela foraclusão. Um momento inaugural de foraclusão, de um significante rejeitado, significante que é excluído do simbólico, que seria comum à todas estruturas, como momento de constituição subjetiva. Desse modo, o que teríamos de diferença entre as estruturas, se daria em um segundo momento, nas relações que o sujeito irá estabelecer com a linguagem e, aí sim, para cada estrutura uma saída particular (recusa/recalque/foraclusão).”

Assim, na referência ao sujeito adotada neste Seminário e neste modelo de formalização proposto por Lacan, não se trata do sujeito em sua estrutura, mas do sujeito enquanto aquilo que se estabelece a partir dessa foraclusão inicial de um significante, sendo que as variações posteriores estariam do lado do fantasma, dos mecanismos de defesa e das relações com a linguagem.

165 Ao longo desta elaboração acerca do estatuto do sujeito, emergem três elementos que são destacados por Lacan como vitais para a articulação da prática psicanalítica. São eles: o sujeito, o saber e o sexo. É a partir dessa tríade que, na aula de 19 de maio de 1965, Lacan apresentará sua formulação do essencial da prática psicanalítica, tomando esses elementos para articulá-los em uma representação da prática psicanalítica à semelhança de um jogo.

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 158-165)