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O LANCE-A-LANCE DO JOGO PSICANALÍTICO

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 182-191)

Seguiremos então os desenvolvimentos de Dunker (2015). Vamos, inicialmente, retomar a proposta de construção desse jogo. Temos três polos envolvidos (sujeito, saber e sexo), esses polos se articulam numa relação de dominância circular. O sujeito, aqui, primeiro jogador, é o sujeito inaugurado pela foraclusão de um significante primordial, resultando na divisão do sujeito, o que o institui, também, como essencialmente marcado pela falta. Esta falta se articula ao segundo elemento deste jogo, o saber, na medida em que o sujeito articula sua falta a este saber. É a esse saber que o sujeito recorre mas para nele se abolir de sua posição de sujeito, se demitir, alienar, na articulação com esse saber que compõe seu suplemento lúdico, seu fantasma. Trata-se também de um saber cujo sujeito é indeterminado. Por fim, o terceiro elemento, que promove o furo no saber, enquanto representante daquilo que é impossível de saber, inacessível à linguagem: o sexo. Por fim, é sustentado na certeza desse impossível de saber que o sujeito se articula.

Contudo, se no jogo de jo-ken-po sabemos quais são os três elementos e o modo se afetam mutuamente (a pedra amassa, o papel embrulha, a tesoura corta), cumpre avançar na analogia para aprofundar e detalhar melhor de que modo os três elementos apresentados por Lacan como jogadores desse jogo analítico poderiam se relacionar uns com os outros. Quais seriam as variações e definições que constituem esse jogo?

183 Se temos que, quanto ao saber, o sujeito desse saber é indeterminado, emerge então para o sujeito a questão acerca da constituição ou fonte desse saber ou, colocando de outro modo, a condição para esta possibilidade de acesso a este saber está relacionada à busca por uma resposta para a pergunta: "quem sabe?". Tem-se aí um primeiro momento da relação do sujeito com seu saber.

Ou seja, partindo apenas destes dois elementos iniciais - o sujeito e o saber - já tem início a montagem do jogo psicanalítico. Essa montagem se inicia com um primeiro modo de jogar, ou melhor, uma primeira possibilidade de lance, que se estabelece do sujeito em direção ao saber. Trata-se do momento em que o sujeito procura um analista, e começa a falar a esse analista, dizendo de si e permitindo que o analista, com sua escuta, tenha algum acesso à posição que o sujeito, enquanto faltante, ocupa no discurso. Assim, por um lado, o sujeito fala e do outro o analista escuta, espera, oferece ao sujeito a possibilidade de continuar sua fala. Nessa fala do sujeito e espera do analista há a produção de um saber, saber sobre o próprio sujeito, sobre sua vida, suas relações pessoais, seu sofrimento, enfim, temas de interesse desse sujeito mas que ele os localiza no lugar do analista. Deposita esse saber no analista, em busca de uma resposta sobre si.

Figura 7: Representação do paciente e do analista no início do tratamento

A partir dessa fala do paciente e, consequentemente, dessa possibilidade de construção de um saber, emerge então a questão: “Quem sabe?”. É a pergunta que sustenta o saber. Quem é aquele que pode responder por este saber que falta ao sujeito. Ao falar ao analista, o sujeito supõe a ele esse saber. Ou seja, uma fala do sujeito para o

184 analista, que produz um saber, cujo sujeito ainda não se sabe e que leva a endereçar ao analista a pergunta: “quem sabe?”, na espera de que o analista saiba responder.

Figura 8: Representação do Sujeito endereçando sua fala ao analista

Diante deste impasse, se configura um segundo modo de relação entre sujeito e saber que é a relação de saber suposto. O paciente supõe ao analista um saber e o analista sustenta, inicialmente, tal posição, ainda que com ela não se identifique. Assume um semblant, suposição do saber.

Inicialmente, então o analista mantém sua posição de espera, de escuta analítica, dando possibilidade de constituição desse saber, saber então suposto ao próprio analista. Dessa relação de suposição de saber estabelecida entre analisando e analista podemos extrair a própria forma de montagem ou constituição do que configura a transferência no curso do tratamento analítico, como Lacan indica diversas vezes ao longo deste Seminário.

A transferência se articula a partir desta ordem de coisas: um sujeito, que fala a um analista que, em contrapartida, escuta o paciente e espera, permite ao sujeito a construção de algum saber e de uma questão acerca de quem sabe, e isso retorna para o sujeito na forma de uma suposição de saber à pessoa do analista. Nessa fala do analisando, ele supõe o analista no lugar de um outro, de um sujeito e, ao dirigir sua fala a ele, esse outro passa a ganhar sua importância e ser parte deste processo de fala e começam a se articular o saber e o sujeito, com a questão sobre quem sabe. Tal questão

185 começa a ser respondida, de início com essa suposição de saber, a crença para o sujeito de que quem sabe é o outro, este analista, que o escuta e ao qual o saber é suposto. Temos, então, essa representação da montagem da transferência:

Figura 9: Representação da suposição de saber no analista e montagem da transferência

Temos então um terceiro momento, que parte desta dinâmica estabelecida entre sujeito e saber, entre o paciente que fala e o analista em sua posição de espera e suposto saber. Essa dinâmica entre espera e suposição pode ir se modificando e flutuando ao longo do tratamento: quanto mais espera, mais suposição de saber e o contrário também se aplica. Variação que é efeito também do decurso do tempo e dos diversos momentos vividos em um tratamento psicanalítico.

Porém, não se pode esperar que o jogo fique restrito apenas a isso. Esse movimento de acúmulo crescente de suposição de saber precisa ser modificado em algum momento. Para isso temos o que Lacan coloca como a possibilidade de que intervenha um significante qualquer do psicanalista. Algo de inesperado e capaz de atravessar esses eixos da espera e da suposição, dando abertura a uma nova dimensão do tratamento, caso essa intervenção do significante qualquer do analista opere adequadamente. Mas caso isso não ocorra, teremos um desenvolvimento menos favorável.

Desse modo, temos dois caminhos possíveis a partir dessa situação inicial de espera e suposição de saber. O primeiro resultado possível é o de emergência da angústia. E aqui temos um ponto que será de grande valor e que nos interessa para o tema das possíveis iatrogenias no tratamento psicanalítico. Algo que se repete com

186 alguma frequência nos consultórios: o paciente busca o analista e passa a falar para esse analista, durante sucessivos encontros e o analista não responde. Silencia. Apenas sustenta sua escuta, sem sua espera, sem nenhuma intervenção. Como nas queixas que ouvimos com alguma frequência: “meu analista nunca fala nada”. E acumula mais e mais saber suposto, aumenta mais a transferência. Mas isso ao mesmo tempo aumenta mais e mais a angústia no sujeito. Caso tal cenário se mantenha e continue a se repetir por muito tempo, sem uma resposta por parte do analista, pode se configurar uma intensificação tão grande da angústia que resulte em consequências iatrogênicas, como casos de acting outs por parte do paciente, ou mesmo a queda em angústia e sofrimentos profundos que poderiam ser considerados efeitos iatrogênicos do tratamento. Esse ponto será retomado futuramente.

A segunda possibilidade de desfecho para essa situação, a partir da intervenção de algo inesperado por parte do analista, seria um outro lado do inesperado, algo a ver com o destino do inesperado, algo que atravessa a sessão, e que se apresenta para o analista: o que fará com isso que lhe é dito pelo paciente? Intervém aí, então, algo que se aproxima do que é definido por Lacan como desejo do analista, que se apresenta neste momento: como responder a partir de seu lugar de escuta, diante de um saber que lhe é suposto? No que o analista irá se amparar, de onde irá responder. É essa resposta inesperada para o sujeito, por parte do analista, mobilizado por seu desejo de analista, que poderá dar continuidade ao processo analítico. Diante dessas duas possibilidades, temos a seguinte formulação:

187 O jogo poderia proceder desse modo cíclico: fala do sujeito, articulação de um saber, espera do analista, questão sobre quem sabe, suposição de saber, intervenção do analista e do desejo do analista, e assim sucessivamente. Mas é justamente esse tipo de concepção que Lacan visa combater, ao propor que o jogo analítico se articula não em torno de dois, mas sim de três termos. Há posteriormente um certo momento no qual deve incidir o terceiro polo ou o terceiro jogador deste jogo que seria o sexo, a realidade da diferença sexual, a verdade da impossibilidade sexual para o sujeito. O aspecto da diferença sexual para o sujeito como um elemento que também participa desse jogo, sendo capaz de dar cartas e ditar seu rumo.

Temos então o modo como o sexo, ou mais especificamente, a verdade sobre o sexo, promove um furo no saber, um impossível de saber, interditando a possibilidade de um saber que possa se fazer inteiro, uno e universal. Entre os polos do jogo, saber e sexo, o que se encontra é uma relação que não se dá, que se depara com um furo, uma impossibilidade, operação diante da qual emerge um efeito de resto, situado como nosso terceiro jogador, o sujeito. Sujeito que aparece então como resto dessa operação, dessa falta que o sexo promove no saber. Para Dunker (2015):

“Ou temos uma disjunção entre saber e sexo, ou seja, entre o saber e a verdade sexual, ou, então, temos uma conclusão entre estes elementos mas que têm como resultado o sujeito apenas como resíduo, como objeto, excluído dessa operação.”

Assim, é situado entre saber e sexo o regime da regra, da lei, da tentativa de controle sobre o impossível da relação sexual. Um saber que não pode alcançar o impossível da relação sexual, e cuja tentativa de enquadre se dá pelos modos de alienação do sujeito: seu fantasma, sua fantasia, sua relação com a Lei, sua relação com a interdição do incesto.

Pode-se localizar aí, também, por exemplo, a regra da abstinência, na proibição da relação sexual entre analista e seus pacientes, um aspecto que nos interessa também, com relação ao tema da iatrogenia. Interdita-se a relação entre o saber, de um lado, e verdade do sexo do outro.

188 Já na relação do sujeito dividido com sua verdade sexual - primeiro e terceiro jogador - temos num sentido uma aposta e, em sentido oposto, a falta. O impossível da relação sexual aponta para o sujeito a irredutibilidade de sua falta. O que volta do sexo para o sujeito é a falta, onde o impossível, o real do sexual, retorna para o sujeito dizendo que é, enfim, castrado, o impossível de saber dessa castração, impossível de ser dominada. Mas, deparando-se com a questão de sua verdade sexual, o sujeito responde, devolve e deve se posicionar a partir de uma aposta, aposta enquanto possibilidade de resposta diante do impossível de saber. Sujeito pode apostar no seu fantasma, na sua fantasia, na consistência sexual, na relação com o outro, na natureza dessa verdade, etc..

Segundo Dunker (2015): “tal formalização seja talvez a mais prática, simples e sensível, dentre os modelos formulados por Lacan, com uma grande capacidade de ser incorporada intuitivamente à prática clínica”. Ou seja, quando escutamos o paciente em uma análise, tem-se a dinâmica de um jogo, jogado numa sucessão de lances. Em alguns momentos o analista espera a fala do paciente, deixa que ele faça sua jogada primeiro, para então responder com a sua. Em outros momentos, o analista faz uma intervenção, uma jogada, a qual o paciente irá responder, escolhendo dentre as três possibilidades disponíveis (pedra, papel ou tesoura / sujeito, saber ou verdade), configurando uma espécie de escuta negativa, uma dinâmica de negações, no sentido de que, se o sujeito coloca um elemento, o analista deveria colocar outro, diverso, que negue o colocado pelo paciente. Se o paciente coloca um segundo, o analista apresenta um terceiro. E assim as jogadas vão se alternando e a análise avançando.

189 Figura 11: Representação completa do jogo psicanalítico no curso do tratamento

Esta última imagem demonstra a versão mais acabada do que seria a proposta de formalização do curso de uma análise a partir da ideia de um jogo, semelhante ao jo-

ken-po. Três elementos que podem ser jogados: Sujeito, saber e sexo. O analista pode “jogar” como sujeito, depois com o saber, retornar ao sujeito, ir para o sexo... Alternam- se os lances, tanto por parte do analista, quanto por parte do paciente. A capacidade clínica do analista, a importância para saber jogar este jogo, é que sua escuta clínica lhe permita saber de onde está aquele falando o paciente, de qual das três posições, podendo responder em uma dialética diferente, com um lance diferente, fazendo, assim, uma passagem de um desses polos para um outro polo, sendo esse o mecanismo para que a análise avance ou não.

Um modelo de grande simplicidade e eficácia, que responde a muitas situações que se apresentam no dia-a-dia da clínica. Nesse modelo podemos localizar e

190 compreender melhor muitas das queixas mais comuns de pacientes sobre suas análises. Podemos, inclusive, considerar que diversas práticas clínicas ou orientações psicanalíticas, atuam com enfoques mais específicos em apenas um ou dois desses polos, resultando em prejuízos para o tratamento. Podemos pensar, por exemplo, nos casos de tratamentos que se estendem durante anos, com muitas intervenções e construções e saberes para o sujeito mas que, mesmo assim, de algum modo, despertam no sujeito certo mal-estar, sensação de que nada está mudando, que o trabalho está patinando, sem sair do lugar. Neste caso podemos estar diante de uma dinâmica de tratamento que privilegia excessivamente a relação do sujeito com o saber, excluindo a dimensão do sexo e do furo no saber.

Ou então, do lado oposto, quando o trabalho analítico fica paralisado em torno de uma determinada relação com a verdade sexual, que não pode ser articulada a um saber, nem flexibilizada ou relativizada, não permitindo que o sujeito possa promover algo de produtivo com esse algo da verdade sexual que se apresenta a ele. Temos nesse caso um trabalho excessivamente focado na dimensão desse terceiro polo, do sexo, mas que não está sendo capaz de articulá-lo a algum dos outros polos desse nosso jogo.

Poderíamos trazer outros exemplos clínicos, mas não se trata aqui de esgotar as possibilidades. De modo geral, nos interessa aqui, é a ideia desse modelo para a prática clínica, que se estabelece numa analogia a um jogo. Um jogo, com três elementos, que se alternam nos diversos lances entre analista e paciente. O operador desse jogo seria onde o analista vai colocar o “pacote mais pesado”, o peso da escuta, para onde vai focar, aonde vai apostar, aonde vai convocar o sujeito. E a partir das relações entre esses polos podemos pensar as diversas operações envolvidas no tratamento psicanalítico, bem como suas implicações tanto em termos de produção de efeitos, quanto no que se relaciona ao potencial iatrogênico do tratamento, como veremos abaixo.

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No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 182-191)