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IATROGENIAS DOLOSAS

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 83-87)

Como visto no capítulo sobre definições e classificações no campo das iatrogenias, uma possibilidade a ser considerada e incluída no campo das iatrogenias é a dos casos de abusos deliberados por parte do profissional e que ocorrem na cena médica ou como decorrência da relação de trabalho estabelecida com o paciente. Assim, trata-se

84 de casos em que o terapeuta conscientemente adota uma postura que sabe que poderá causar danos ao paciente. Neste sentido são também condutas às quais cabem maiores implicações jurídicas, sendo passível inclusive de julgamento e condenação na esfera penal.

Na área médica não são raros casos noticiados até mesmo na mídia sobre esse tipo de abusos cometidos contra pacientes. Podemos relembrar, por exemplo, o caso do ex-médico Roger Abdelmassih, especialista em fertilização in vitro e que em 2010 foi condenado a 278 anos de prisão por 56 estupros contra pacientes2. Mais recentemente, em 2015, o caso da médica Virgínia Soares de Souza, responsável pela Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Evangélico de Curitiba, e indiciada sob acusação de que sua equipe promovia morte antecipada de pacientes em estado terminal3. O caso ainda aguarda julgamento.

Os exemplos mencionados acima são casos mais extremos, mas há uma gama de possibilidades de abuso que podem ocorrer, desde ofensas ao paciente, até casos mais graves, como o de abuso sexual ou homicídio. Não cabe aqui esgotar todas essas variáveis. Até por suas implicações jurídicas, a questão das ações dolosas por parte do profissional nos parecem estar situadas mais na esfera jurídica, na maneira como o Estado deva responder a esses casos.

Não é pretensão deste trabalho que ele possa alcançar ou impactar profissionais decididos a cometerem abusos contra seu paciente. Justamente por se tratar de conduta dolosa, deliberada, por parte do profissional, já está prevista a ocorrência do dano ao paciente, afastando esses casos do campo de nossa investigação, que visa pensar as possibilidades de redução dos danos ao paciente. Desse modo, não iremos avançar de modo mais profundo à questão das ações dolosas por parte dos terapeutas. Iremos apenas destacar uma hipótese de casos de iatrogenia dolosa, que são os casos de abuso sexual contra pacientes. A escolha por esse tema se faz, em primeiro lugar, pela

2 Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/roger-abdelmassih-e-condenado-mais-de- 200-anos-de-prisao.html

3 Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2013/02/mortes-na-uti-do-evangelico-podem-ser- homicidio-qualificado-diz-delgada.html

85 frequência com que esses casos se repetem no campo da saúde mental e, em segundo lugar, pela convicção de que o avanço nas pesquisas e na divulgação de informações sobre esse tema possa contribuir para maior conscientização dos profissionais e da população acerca dos efeitos nocivos dessa prática, aumentando as denúncias e, potencialmente, reduzindo casos de abusos.

Sobre esse tema, também encontramos casos que recebem destaque na mídia. No Brasil, podemos destacar o caso do psicólogo Marcos Rogério de Sousa Costa, condenado a uma pena de 17 anos e nove meses de reclusão, por favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável, no caso, menores de idade. O psicólogo se valia da condição de psicólogo voluntário do Centro de Educação Produtiva (CEP), para se aproximar e abusar sexualmente de menores (Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba)4.

Na Inglaterra, o caso do Dr. Theodore Soutzos, um psiquiatra londrino, que teve relações sexuais com sua paciente, dizendo que tal ato teria que acontecer para “aliviar a tensão” existente entre eles, permitindo o avanço do trabalho. Após o ato, a saúde mental da mulher se deteriorou, o que a levou a tentar cometer suicídio diversas vezes, sofrendo com as advertências feitas pelo médico de que jamais poderia contar sobre o ocorrido a alguém. Além desse caso, o Dr. Soutzos é acusado de relacionamentos abusivos também com outras três pacientes entre os anos de 1999 e 2006 no hospital público de Harley Street e em outras clínicas5.

Segundo Jorgenson, Randles & Strasburger (1991), nas últimas décadas, três grandes pesquisas foram realizadas nos Estados Unidos com esse tema, a fim de determinar a prevalência do contato sexual entre terapeuta e paciente. Em 1977, um estudo (Holroyd & Brodsky, 1977) indicou que 12,1% dos profissionais do sexo masculino e 2,6% das profissionais do sexo feminino admitiram ter tido relações sexuais com seus pacientes. Já em 1979, outro estudo (Pope, Levenson, & Schover,

4 Disponível em: http://www.jornaldaparaiba.com.br/cidades/noticia/53412_conselho-de-psicologia-se- manifesta-sobre-caso-de-acusado-de-pedofilia

5 Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-1299697/Psychiatrist-Theodore-Soutzos- preyed-patients-sex-groomed-suicidal-woman.html

86 1979) alcançou resultados semelhantes: 12% dos homens e 3% das mulheres que responderam à pesquisa declararam ter tido relações sexuais com pacientes. Quase uma década depois, tais estatísticas se mantinham estáveis, apesar dos esforços da American Psychological Association (Pope, Keith-Spiegel, & Tabachnick, 1986). Por fim, em outra pesquisa anônima realizada via questionário, com psicólogos e psiquiatras sobre esse tema nos EUA, cerca de 10% dos entrevistados admitiu já terem se envolvido em contatos eróticos com seus pacientes (Kardener, Fuller & Mensh, 1973). Apesar das campanhas das agências reguladoras contra esse tipo de abuso, os dados mostram que tal prática tem se mantido estável nas últimas décadas, representando um grave problema.

Outras pesquisas mostram que quase 90% dos entrevistados já sentiram atração sexual por seus pacientes. Apesar da unanimidade das organizações profissionais e conselhos de ética tanto da Psiquiatria, quanto da Psicologia, da Medicina e de outras áreas ao proibir que ocorram relações sexuais entre o profissional e o paciente, a prática mostra que tais regulamentos são pouco respeitados. A American Psychiatric Association, por exemplo, indica que pelo menos 15% dos processos legais movidos contra terapeutas envolvem abusos sexuais (Perry & Kuruc, 1993, pg. 35):

“Since 1980, reports of sexual contact between psychotherapists' and their patients have increased dramatically; sexual contact is currently the second leading cause of professional malpractice litigation among psychiatrists. Patient-psychotherapist sexual intimacy is the leading cause of malpractice claims against psychologists, constituting the largest single category of cases that have been reported to the American Psychological Association Ethics Committee. Between 1976 and 1986, nearly forty-five percent of all malpractice insurance claims paid on behalf of psychologists resulted from psychotherapist-patient sexual contact” Assim, no cenário norte-americano, o debate sobre o tema já se mostra mais avançado. A relação sexual com pacientes atuais, ou mesmo ex-pacientes, já é proibida eticamente pela maioria das associações profissionais norte-americanas. Além do aspecto ético, alguns estados já têm leis específicas sobre o tema (Califórnia, por

87 exemplo), tornando tal prática ilegal. Estados como Califórnia, Minnesota, Wisconsin e Illinois já editaram normas para criar uma modalidade específica de ação civil apenas para casos de pacientes que sofreram abusos sexuais por parte de terapeutas. Em outros nove estados (Califórnia, Colorado, Florida, Georgia, Iowa, Maine, Minnesota, North Dakota e Wisconsin) há também leis que tornam a relação sexual com pacientes um crime, passível de punição na esfera penal.

Apesar desses elementos e de tantos avanços na proteção oferecida aos pacientes nos Estado Unidos, no Brasil o tema passa sem maiores considerações. Os conselhos de ética das diversas profissões vedam práticas sexuais com pacientes mas são feitos pouquíssimos esforços para monitoramento ou redução da ocorrência desse tipo de casos. Sequer são feitos maiores esforços na pesquisa, para investigar com que frequência tais casos ocorrem, sendo escassos os dados sobre essa temática. Tampouco temos desenvolvimentos jurídicos específicos para tais casos.

As iatrogenias dolosas, portanto, tal qual outras práticas que visam lesar outra pessoa, devem ser objeto de políticas públicas, visando coibir e reduzir a ocorrência dessas violações. A pesquisa sobre o tema pode colaborar com dados acerca dessas ocorrências, porém foge do escopo deste trabalho, dedicado para os casos em que profissionais buscam evitar ou reduzir os efeitos iatrogênicos de seus tratamentos.

Desse modo, o escopo principal dessa pesquisa será o segundo grupo de iatrogenias, o das iatrogenias culposas, ou seja, casos em que o profissional, por algum tipo de erro em sua prática, acaba involuntariamente cometendo um ato que causa uma iatrogenia do tratamento.

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 83-87)