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C APÍTULO 5 – I ATROGENIA E P ODER : DA P SICOTERAPIA À P SICANÁLISE

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 105-110)

TRATAMENTOS PREJUDICIAIS

C APÍTULO 5 – I ATROGENIA E P ODER : DA P SICOTERAPIA À P SICANÁLISE

No capítulo anterior foram apresentados os principais resultados das pesquisas sobre os possíveis efeitos iatrogênicos no campo das psicoterapias. Elementos como as características individuais de cada paciente ou de cada analista, características de determinados casos clínicos, excesso de rigor no uso da técnica, a relação estabelecida entre terapeuta e paciente, são alguns dos índices apontados pela literatura como possíveis causadores de iatrogenias no curso de um tratamento psicoterápico.

Contudo, poucas são as pesquisas que abordaram especificamente o tema da iatrogenia no curso de um tratamento psicanalítico, levantando a questão sobre se tais resultados seriam ou não aplicáveis também ao tratamento psicanalítico. Se o objetivo desta pesquisa é de abordar o potencial iatrogênico do tratamento psicanalítico, há de se discutir, primeiramente, de que modo se pode pensar a distinção entre psicoterapia e psicanálise, buscando identificar a especificidade do tratamento psicanalítico para que, a partir disso, possam ser considerados os potenciais riscos iatrogênicos envolvidos no curso de um tratamento psicanalítico.

Nesse sentido, tanto as psicoterapias quanto a psicanálise, enquanto modalidades de “talking cure” não estão isentas de tentar compreender, cada uma no âmbito de sua própria prática, quais aspectos de sua prática configuram-se como pharmakons disponíveis em sua farmácia para serem ministrados ao paciente, quais ferramentas estão à disposição para condução de um tratamento, o modo como serão utilizadas e os efeitos que poderão causar, em benefício ou prejuízo ao paciente. Em outras palavras, trata-se de saber qual o campo e função dos poderes da fala e da linguagem, da escuta e da presença do psicoterapeuta ou do psicanalista, como princípios de seu poder de transformação e cura ou de iatrogenia no curso de um tratamento.

Como já visto, no campo da psicanálise, as pesquisas que abordam diretamente o termo “iatrogenia” são raras (Berk & Parker, 2009). Entretanto, apesar da falta de

106 pesquisas, é possível reconhecer na literatura psicanalítica a dispersão deste tema em conceitos outros como contratransferência, acting out, regressão, passagem ao ato, reação terapêutica negativa, sintoma transitório, neurose de transferência, etc. Portanto, sobre o conceito de iatrogenia pode-se identificar uma miríade de situações clínicas de avanço, erro e impasses articulados ao próprio progresso da teoria psicanalítica, sem que contudo fosse realizado um esforço unificado e concentrado no sentido de identificar e sistematizar os possíveis riscos do tratamento psicanalítico ao paciente e eventuais mecanismos possíveis para redução destes riscos.

Ao longo da história da Psicanálise, podemos resgatar alguns casos em que os efeitos negativos da atuação do psicanalista vieram à tona. Freud (Freud 1905/1996) mesmo já foi capaz de reconhecer os efeitos e limites de suas intervenções. O caso

princeps foi o caso Dora, cujo apontamento dos limites de sua intervenção se daria no reconhecimento tardio – quase 20 anos depois – de sua transferência homoerótica.

Em outro exemplo, anos mais tarde, também Lacan (1958/1998, pg. 604) em seu texto A Direção do Tratamento e os princípios de seu poder faz referência ao caso apresentado por Ernest Kris, conhecido como “O homem dos miolos frescos”, para tecer uma crítica aos efeitos do tratamento conduzido de acordo com a metodologia dos pós- freudianos que utilizavam a chamada Psicologia do Ego.

Ainda mais recentemente, no cenário brasileiro, durante o período de vigência da ditadura militar, o caso de Amílcar Lobo, psicanalista e tenente do exército que participou de sessões de tortura, atestou os níveis extremos a que pode chegar o abuso do poder por parte de um psicanalista6.

6Amílcar Lobo Moreira da Silva foi um médico psicanalista, segundo-tenente médico do exército, serviu no 1º Batalhão de Polícia do Exército e no Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do Rio de Janeiro (1970-1974), um dos mais severos centros de tortura do país. Cursava também formação em Psicanálise na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). Durante o período da ditadura, era convocado para participar de sessões de torturas realizadas em presos políticos, como parte do processo de repressão militar contra integrantes da luta armada contra a ditadura. Sua função nessas sessões, enquanto médico e psicanalista, era de identificar se o preso ainda estaria em condições de ser submetido à mais torturas. Mesmo após denúncias feitas contra Amilcar Lobo, no âmbito da SPRJ, passou-se um longo tempo até seu descredenciamento da sociedade psicanalítica, sendo necessária, inclusive, intervenção por parte da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). (Moreira, 2014)

107 É sabido que a psicanálise ela mesma possui ao menos um efeito iatrogênico, ou colateral, pois onde Freud queria eliminar uma neurose, viu emergir como efeito deste trabalho uma nova neurose: a neurose de transferência. Porém, encontrar alguma espécie de consenso acerca da existência de outras possibilidades de iatrogenias ou mesmo quais seriam os critérios para que um fenômeno possa ser considerado uma iatrogenia no curso do tratamento é tarefa árdua, em especial quando se adota uma metodologia de pesquisa que reduz o tratamento apenas à sua dimensão de método terapêutico, como visto no capítulo anterior, com as pesquisas realizadas no campo da psicoterapia.

Tais pesquisas deixam de lado uma discussão mais profunda sobre os aspectos éticos envolvidos no tratamento, as relações de assimetria e poder entre paciente e terapeuta e também considerações acerca do que é sofrimento vivido por um sujeito que busca o tratamento. Discussões que seriam capazes de nos fornecer outros parâmetros acerca do que poderia ser considerado iatrogênico, uma vez que o sofrimento é dependente de uma narrativa ligada a uma gramática social, a um modo que é mais ou menos reconhecido no terreno intersubjetivo e que convoca o terapeuta ou psicanalista a se posicionar eticamente diante desta narrativa de sofrimento e a decidir como irá se posicionar diante dos efeitos que suas intervenções podem ter sobre o sujeito que o procura.

O material que emerge na situação clínica vai ser trabalhado por cada profissional conforme certas escolhas fundamentais, a partir da linha teórica de sua preferência, mas que podem parecer o máximo de arbitrariedade ou falta de rigor aos adeptos de outro sistema conceitual. Se por um lado Mezan (2002) nos indica que a diferença entre uma corrente teórica e outra está na teoria e nas habilidades que cada corrente oferece aos seus adeptos para que possam descrever, aprofundar, compreender e solucionar certos fenômenos da clínica sobre os quais terão que se posicionar, por outro lado é importante questionar também o modo como cada corrente teórica se posiciona eticamente, acerca dos possíveis efeitos de suas intervenções e a relação destas intervenções com o sofrimento trazido pelo paciente. Nesse ponto, há o objetivo de evitar que eventuais efeitos nocivos do tratamento sejam absorvidos por uma

108 dinâmica que justifica seus meios aos seus fins, reduzindo o processo terapêutico à mera aplicação de técnicas visando à eliminação de sintomas, sendo essa a única medida de sucesso ou fracasso para o tratamento.

A hipótese a ser explorada nesse capítulo é de tomar o poder como chave para entendimento da iatrogenia, apontando que se nessa relação assimétrica que se estabelece entre terapeuta e paciente no curso de um tratamento podemos localizar os princípios do poder que embasam o tratamento, podemos considerar também que o (mal) uso dessa relação de poder pode resultar em nocivos efeitos iatrogênicos para o paciente. De modo mais específico, seria possível identificar casos em que opera uma perda de liberdade do paciente, que se faz ouvir nessa relação de poder e que pode ser reconhecida a partir da narrativa de sofrimento apresentada pelo paciente e o modo como tal narrativa será escutada pelo analista. Pois se um psicanalista fez seu percurso de análise pessoal, podendo reconhecer seu próprio sofrimento, é importante que possa também ser capaz de não tomar como regra seu próprio “modelo de sofrimento”, estando aberto ao reconhecimento das narrativas singulares de sofrimento de seus pacientes.

Outro problema que emerge é que certas formas de sofrimento não se transformam em narrativa! Assim, há de questionar se o que ainda não se transformou em clara narrativa de sofrimento pode estar sob o julgo do que não foi ainda reconhecido.

Dizemos isso pois, como vimos, um ponto importante levantado por Berk & Parker (2009) refere-se a certa crença entre os profissionais de que um terapeuta ruim, ineficaz ou explorador, naturalmente perderia todos seus pacientes com o passar do tempo, pararia de receber indicações e, aos poucos seria excluído de sua atividade, vez que os pacientes se recusariam a retornar a um profissional inadequado, reduzindo a possibilidade de ocorrência de algum efeito adverso. Uma espécie de “seleção natural” dentre os profissionais em atividade.

Contudo, segundo os autores, isso não é o que mostra a prática clínica. Há pacientes que mesmo em casos de tratamento ineficaz ou prejudicial optam por

109 continuar o tratamento, seja por que aos poucos se adaptam ao terapeuta abusivo, caso não ocorra nenhuma ofensa muito grave, seja porque não identificam que o curso do tratamento oferecido não é o mais adequado. E enquanto isso o quadro do paciente vai se deteriorando, sem que o paciente consiga identificar o próprio tratamento como causador de sofrimento, com claros efeitos iatrogênicos para o paciente. Seria o caso do paciente que transfere ao analista o poder da significação acerca de sua própria narrativa de sofrimento e de sua própria demanda. O resultado pode ser uma dependência do paciente ao tratamento e ao terapeuta, tendo ganhos secundários com as sessões, enquanto sua condição se agrava.

Em casos como esse, fica evidente que uma situação terapêutica, calcada numa relação assimétrica, é uma situação de poder. E a psicanálise nos faz reconhecer que nem toda relação de submissão ou com a presença sintomática gera uma narrativa de sofrimento e, consequentemente uma demanda de sua eliminação. Um modo claro de apontar isso em psicanálise, já em Freud, é que nesses casos teríamos uma situação de repetição na transferência do infantil do sujeito que demanda uma autoridade que legisle sobre si. Se há possibilidade de que o sujeito, mesmo reconhecendo que sofre, não abandone seu terapeuta, é porque este dá a ele o poder de decidir acerca de seu destino. Nenhum psicanalista ou psicoterapeuta pode se furtar a pensar sobre a posição de mestria que sua posição no dispositivo de tratamento lhe confere.

Castonguay (2010) destaca a importância de que os terapeutas possam, independentemente de linha teórica ou abordagem, por mais doloroso que seja, reconhecer que é muito provável que todos tenham, em algum ponto de suas carreiras, causado danos a um ou mais pacientes: Assim, em que pesem as divergências entre as diversas teorias psicoterápicas e psicanalíticas, nenhuma delas pode afinal se furtar ao problema prático de tentar compreender quando algo não dá certo e o que operou que teve como resultado um efeito iatrogênico. Mas mais que isso: importante questionar não apenas os efeitos iatrogênicos mais evidentes, mas aqueles cujos modos de operação e efeitos são silenciosos, que guardam no seu interior uma relação de alienação do paciente à pessoa do analista, ponto que se apresenta como chave de leitura

110 para o problema da iatrogenia, passando do poder da iatrogenia à iatrogenia do poder do terapeuta.

Se tomarmos as propostas de Bergin (1970) e de Balint (1957), de que todo tratamento capaz de gerar efeitos de tratamento, traz em si também o risco de efeitos nocivos ao paciente, podemos entender que o reconhecimento do fracasso, dos limites de uma práxis, está ligado proporcionalmente ao reconhecimento dos limites de seu poder e dos mecanismos que operam na cura. De onde afinal cada tratamento retira a sua eficácia? Se confiamos numa especificidade da prática psicanalítica que a distingue de outras modalidades de tratamento, como tal distinção se reflete nos possíveis riscos iatrogênicos do tratamento psicanalítico?

Como podemos, então, pensar a iatrogenia no âmbito da psicanálise, de um modo que não se limite apenas a mensurar o grau de sucesso ou insucesso na eliminação de sintomas, como visto nas pesquisas sobre as psicoterapias, mas que possa implicar os próprios mecanismos de poder em jogo no curso de tratamento e que lhe conferem também sua eficácia? Em que medida isso pode ser relacionado à distinção entre as psicoterapias e psicanálise?

Faz-se necessário então, em um primeiro momento, buscar uma melhor diferenciação entre a psicanálise e as psicoterapias para que, posteriormente, tendo localizado a especificidade da prática psicanalítica, seja possível avançar em considerações acerca dos potenciais riscos e efeitos iatrogênicos envolvidos no tratamento.

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 105-110)