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PSICOTERAPIAS AUTORITÁRIAS

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 120-124)

Maleval (2004, pg. 44) discute o que classifica como as três grandes epidemias de patologias iatrogênicas já registradas, que se espalharam pela América do Norte nas últimas décadas, quando dezenas de milhares de pacientes norte-americanos foram vítimas de: distúrbios de personalidades múltiplas; síndromes falsas lembranças; ou então relatos sequestros extraterrestres.

Na década de 80, a síndrome de personalidade múltipla assumiu caráter epidêmico nos Estados Unidos, com mais de 30 mil casos registrados em apenas uma década. A partir da apropriação de conceitos psicanalíticos como os de “recalque” e “desmentido” e utilizados fora de seu contexto teórico, psicoterapeutas conduziam

121 tratamentos em que buscavam se comunicar com personalidades ocultas de seus pacientes e reencontrar lembranças que, em tese, haviam sido recalcadas pelo paciente. Apoiado no uso desses conceitos, recolhiam relatos e lembranças extravagantes de seus pacientes e conferiam crédito a tais narrativas. No mais das vezes, tais lembranças remetiam à graves episódios de sedução, abuso sexual, tortura, participação em rituais satânicos ou sexuais, realizados por pais ou familiares. Como resultado dessas “lembranças” restauradas, os pacientes, amparados por seus terapeutas, denunciavam às autoridades os abusos supostamente vividos e buscavam a justiça em busca de reparação, sendo pais e familiares investigados e processados por denúncias de satanismo, incesto e abuso de menores. Segundo Mulhern (1994, pg. 237):

“Cerca de 25% dos “múltiplos” em curso de tratamento não apenas se lembram de sevícias sexuais e outros maus-tratos como enfatizam que seus torturadores eram membros de seitas satânicas, que os haviam forçado a participar de orgias satânicas superelaboradas, de assassinatos e práticas canibais”.

Contudo, nunca nenhuma investigação criminal foi capaz de confirmar tais alegações. Como afirma Mulhern (1994, pg. 237):

“aproveitam-se das revisões introduzidas na legislação americana em matéria de lembranças revividas mediante terapia, para impetrar acusações de sevícias em crianças contra pais idosos, de que se lembram agora como adoradores de Satã, incestuosos, assassinos e canibais. Na ausência de provas materiais, a autenticação dos fantásticos relatos de sabás noturnos realizados por essas querelantes recai essencialmente sobre seus terapeutas. Infalivelmente, estes últimos sustentam suas revelações e descrevem esses pacientes como sobreviventes de horríveis provocações, que lutaram corajosamente para que a verdade embutida no âmago de seu inconsciente viesse à tona. Apesar do lado rocambolesco de suas declarações, para os magistrados e os jurados que aceitaram o fato de a acusação de sevícias em crianças constituir efetivamente a prova suplementar da culpa dos acusados, estas são testemunhas bastante persuasivas.”

122 Ainda que não tenha havido condenações judiciais, as repercussões de casos como esse na mídia e o impacto na vida dessas famílias foram devastadoras. Até hoje pesquisadoras como Judith Herman, professora da Harvard Medical School, seguem como fervorosas divulgadoras de relatos e lembranças de abusos sexuais, recuperadas por meio de tratamentos hipnóticos orientados. Cornelia Wilbur, professora de psiquiatria na Universidade de Kentucky, é uma das principais responsáveis pela multiplicação de perturbações de personalidade múltipla, a partir de sua atuação e divulgação do caso Sybil, no qual a paciente chega a desenvolver 16 personalidades distintas, no curso do tratamento (Schreiber, 1973).

Situação semelhante se desenrolou em relação à síndrome de rapto extraterrestre. O trabalho de John E. Mack (1994), psiquiatra, psicoterapeuta e professor de Harvard, em seu livro Abduction, traz 13 depoimentos obtidos de pacientes via hipnose, centrada em experiências angustiantes vividas pelos pacientes quando abduzidos por alienígenas, sendo vítimas de toda sorte de experimentos e torturas. Mack confirma os relatos de abdução obtidos junto a seus pacientes e os usa como argumento para legitimar seu método hipnótico, conferindo apoio a tais construções de seus pacientes e não considera a síndrome de rapto extraterrestre como uma criação iatrogênica de seu tratamento hipnoterapêutico e defende ativamente a inserção da subjetividade do terapeuta no tratamento.

Nestes casos epidêmicos, temos mostras dos riscos envolvidos no uso de técnicas autoritárias de tratamento (baseadas principalmente na hipnose), no uso indevido da subjetividade do terapeuta no curso do tratamento e na apropriação, deslocamento e aplicação inadequada de conceitos da teoria psicanalítica. Uma aproximação nociva entre psicanálise e psicoterapia, eu que se perde a especificidade da prática psicanalítica ao dissociar conceitos como o de recalque e desmentido de outros elementos da teoria psicanalítica como complexo de castração ou pulsão de morte, por exemplo. Os psicoterapeutas envolvidos utilizavam os conceitos de recalque e desmentido para justificar lacunas na memória de seus pacientes e, posteriormente, preencher tais lacunas com uma etiologia fantasiosa de suas perturbações, com lembranças de abusos e torturas vividos no passado. O resultado foi a emergência de

123 efeitos iatrogênicos gravíssimos para os pacientes, resultantes dessa tentativa de diluir a psicanálise numa teoria da influência e incorporá-la às psicoterapias.

Já no final da década 90, trabalhos como o de Ganaway (1989), Loftus & Ketcham (1994) e Spanaos (1996), alcançam certo reconhecimento ao denunciar os riscos e efeitos iatrogênicos causados pelo uso dessas técnicas psicoterapêuticas. Em 1997, pautados por tais pesquisas, o Royal College of Psychiatrists toma a decisão de orientar seus psiquiatras para que não tentem mais incitar seus pacientes a rememorar abusos sexuais da infância de seus pacientes. Contudo, ainda que tais tratamentos tenham sido conduzidos por psicoterapeutas, tais críticas aos casos de iatrogenia que ocasionaram estas epidemias acabaram sendo direcionadas também à psicanálise e à teoria freudiana, ante a falta de clareza da distinção entre os dois campos.

Os psicanalistas não apenas não participaram das causas dessas iatrogenias mas, inclusive, estiveram entre os primeiros a denunciar os riscos iatrogênicos envolvidos nestas práticas psicoterapêuticas, bem como a responsabilidade dos psicoterapeutas pela gênese dessas epidemias. Mesmo assim foram colocados como culpados pela sua ocorrência, seja por parte dos autores de trabalhos científicos sobre o tema (como os mencionados acima), seja por parte da mídia e da sociedade que equiparavam psicoterapeutas e psicanalistas como um grupo só, sendo ignorado o fato de que os psicoterapeutas fizeram uso indevido de conceitos psicanalíticos, assumindo uma postura de maestria ante seus pacientes. Psicanalistas norte-americanos se ressentem até hoje dos impactos que as iatrogenias causadas por psicoterapeutas tiveram sobre o campo psicanalítico.

Vimos então como, nas últimas décadas, houve uma crescente aproximação entre psicanálise e psicoterapia, que cada vez mais se confundem, combinando e integrando elementos de cada uma das práticas e avançando rumo a uma unificação do campo das psicoterapias, capaz de englobar e fazerem equivalente as diversas técnicas existentes, a partir de uma ótica que busca enquadrar as diversas práticas clínicas a partir de um conceito unificador, como, por exemplo, o uso da influência visando à eficácia terapêutica, como proposto por Nathan. Em contrapartida, se perde nesse processo a possibilidade de discussão acerca daquilo que seria a especificidade da

124 psicanálise, em relação a seus efeitos pretendidos, aos usos que faz do poder no curso do tratamento e a preocupação acerca dos riscos causados pelo uso indevido da sugestão na condução do tratamento, que poderia produzir efeitos iatrogênicos gravíssimos, como no caso das epidemias iatrogênicas discutidas acima.

Diante de um cenário como esse, seria possível ainda, hoje em dia, sustentar uma especificidade da psicanálise frente ao campo das psicoterapias ou mesmo às chamadas terapias relacionais? Pode-se praticar psicanálise sem intervenção da sugestão insidiosa inaugurada pelo apoio na contratransferência? Partindo da especificidade da psicanálise, de que modo é possível compreender as relações de poder envolvidas no tratamento e os possíveis efeitos iatrogênicos que dela podem emergir?

No documento Potencial iatrogênico da psicanálise (páginas 120-124)