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A função social da empresa como princípio constitucional

CAPÍTULO III A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, PRINCÍPIO

4.3 A função social da empresa como princípio constitucional

A Constituição Federal dispõe, no art. 170, sobre a atividade econômica definindo que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Estabelece que a finalidade desta é assegurar a todos uma existência digna com justiça social, observados os princípios tais como: soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, do meio ambiente, redução das desigualdades sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido às pequenas empresas brasileiras, assegurando a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica.

A Constituição Federal dispõe que a finalidade da ordem econômica “é a de assegurar a todos existência digna segundo os ditames da justiça social”.E, ao inscrever a propriedade privada e a sua função social como princípios informadores da ordem econômica, por certo que a Constituição determina que o exercício da atividade econômica desenvolvido pela empresa - propriedade privada dos bens de produção - seja realizado em conformidade com os ditames da justiça social.

Referindo-se diretamente aos princípios que informam a ordem econômica, afirma Mariângela Conceição 290

“Do elenco sucessivo destes preceitos, denota-se que o ordenamento jurídico adota um sistema econômico de iniciativa privada, que proporciona uma margem de liberdade aos indivíduos na consecução de seus interesses particulares, mas condiciona essa liberdade, que envolve a própria liberdade da empresa, à garantia da uma existência digna a todos e observância da justiça social.

O princípio constitucional da função social da empresa foi consolidado não apenas para impedir o exercício anti-social da atividade empresarial, mas para direcioná-la ao atendimento das finalidades sociais, inclusive       

290CASTRO, Mariângela Conceição Vicente Bergamini. O princípio da função social da propriedade:

mediante a imposição de deveres à empresa. A finalidade da função social é relacionar a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade à dignidade da pessoa humana.”

Isso quer dizer que o desenvolvimento da atividade empresarial deve ser direcionado à realização do interesse social e não, apenas, do interesse individual. Antes, portanto, de configurar um novo tipo de limitação, a função social é um valor que o desenvolvimento da atividade econômica no interesse social representa.

Sobre a função social da empresa afirma Paulo Márcio Cruz :291

“[...] “As necessidades sociais deram lugar a uma regulação da propriedade que se caracterizava pela relativização deste direito e sua subordinação à sua função social, a qual competiria servir como grande estímulo ao progresso material, mas sobretudo à valorização crescente do ser humano, num quadro em que o Homem exercita a sua criatividade para crescer como indivíduo e com a Sociedade”.

No mesmo sentido, observa José Afonso da Silva292 que a propriedade “não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Conforme ensina Mariângela Conceição,293 ”a propriedade, aqui incluída a empresa, é um valor constitutivo da sociedade brasileira, fundada no modo capitalista de produção. Sobre este preceito, recai outro que lhe confere novos contornos. É por este sentido dado à propriedade privada que se pode exigir, por meio do ordenamento jurídico, um uso privado compatível com o interesse público, buscando um equilíbrio entre o lucro privado e o proveito social.”

Quanto à função social da propriedade, afirma Eros Grau:294

      

291CRUZ, Paulo Marcio apud NONES, Nelson. A função social da empresa: sentido e alcance. Novos

Estudos Jurídicos, São Paulo, ano 7, n. 14, p. 113-136, abr. 2002.

292SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 271. (destaque do original). 293CASTRO, Mariângela Conceição Vicente Bergamini. op. cit.

294GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, cit., p. 255. (o destaque é do

“[...] O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em

benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de

outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e, não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.”

No contexto da ordem econômica instituída pela Constituição Federal de 1988, o

direito de propriedade, que até então refletia um direito inviolável passou a representar

antes um dever, uma obrigação que consiste em dar à propriedade uma função social. Para Comparato295, a função social da propriedade “não se confunde com as restrições legais de uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir uma empresa para a realização dos interesses coletivos”.

No atual ordenamento jurídico o que existe, portanto, é um direito à propriedade e não mais um direito sobre a propriedade, sendo certo que em se tratando da função social da empresa, o exercício do direito à propriedade, vale dizer, o exercício do desenvolvimento da atividade econômica organizada, deve ser direcionado no sentido de realizar a função social da organização empresarial em prol do interesse comum, observados os ditames da justiça social.

A empresa está inserida na ordem econômica, na qualidade de agente organizador da atividade produtiva, gestora de propriedades privadas, assim consideradas aquelas que se encontram na fase dinâmica relativa aos bens de produção. Daí decorre a consequência de que, a função social da empresa, assim como a da propriedade, está erigida a um principio constitucional.296

Pedro Escribano Collado297, acentua:

      

295COMPARATO, Fabio Konder. A função social da propriedade dos bens de produção. In: COMPARATO,

Fabio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo. Saraiva. 1995. p. 30.

296CASTRO, Mariângela Conceição Vicente Bergamini. op. cit. 297Apud SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 283. (destaque do original).

“[...] A função social, assinala Pedro Escribano Collado, ‘introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo’, constitui um princípio ordenador da propriedade privada e fundamento da atribuição desse direito, de seu reconhecimento e da sua garantia mesma, incidindo sobre seu próprio conteúdo.”

E, no que diz respeito à relativização do conceito de propriedade privada - que, ao ser inscrito como um dos princípios informadores da ordem econômica, alcança a propriedade privada empresarial, destaca José Afonso da Silva:298

“[...] Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumpra uma função social dirigida à justiça social.”

Sobre a função social da empresa, ensina Nelson Nones:299

[...] em decorrência dessa nova realidade jurídica, as ações decorrentes da função social não podem ser confundidas com filantropia, com mero modismo, com marketing ou com propaganda. Ao contrário, esses deveres e responsabilidades sociais decorrentes dessa função são vistos aqui como uma verdadeira obrigação social, que vai além do âmbito interno da sociedade empresária. Isso tudo, sem confundir o seu papel com o das instituições de caridade. Nesse passo, as ações sociais decorrentes da função social não podem resultar em prejuízo às empresas, nem podem ser com ele confundidas. Diversamente, o cumprimento de tais obrigações junto às comunidades pode até proporcionar mais lucros, conforme demostram vários estudos realizados por economistas qualificados.

Para que a função social da empresa possa ser determinada é preciso considerá-la como uma atividade que não está restrita apenas à obtenção do lucro e à satisfação dos interesses particulares dos proprietários, mas também como uma entidade “cujo perfil funcional está a cada dia mais representado pelo atendimento de interesses comunitários.”300

       298SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 814. 299NONES, Nelson. op. cit., p. 113-136.

No contexto da ordem econômica, forçoso observar que o exercício de qualquer atividade empresarial supera, em muito, a ideia de que a organização empresarial deva ser apenas produtora de lucros ou deva somente garantir postos de trabalho ou, ainda, que o exercício da atividade não se desenvolva em prejuízo de outrem ou do meio ambiente. A Constituição foi além e exige que o exercício do direito à propriedade privada empresarial seja realizado em conformidade com os ditames da justiça social.

No mesmo sentido, ensina Eros Grau:301

“Justiça social é conceito cujo termo é indeterminado [...] contingencial. Do que seja justiça social temos a ideia, que fatalmente, no entanto sofreria reduções – e ampliações – nesta ou naquela consciência, quando enunciada em qualificações verbais. É que justiça social é expressão que, no contexto constitucional, não designa meramente uma espécie de justiça, porém um seu dado ideológico. O termo ‘social’, na expressão, como averbei em outra oportunidade, não é adjetivo que qualifique uma forma ou modalidade de justiça, mas que nela se compõe como substantivo que a integra. [...] Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, em nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto econômico, não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista.”

O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que o exercício da atividade econômica deve contemplar a solidariedade social. Neste sentido, decidiu o Ministro Celso de Mello por ocasião do julgamento da ADI 1003/4-DF:302

“Cumpre aduzir que a Constituição Federal, ao fixar as diretrizes que regem a atividade econômica e que tutelam o direito de propriedade, proclama, como valores fundamentais a serem respeitados, a supremacia do interesse público, os ditames da justiça social, a redução das desigualdades regionais, dando especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao principio da solidariedade.”

No julgamento da ADI 319, o Supremo Tribunal Federal assentou que a livre iniciativa não será legitima se exercida apenas em busca do lucro e realização individual do

      

301GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, cit., p. 245.

302SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.003/4/DF. Voto do Min. Celso de Mello, Brasília, 01 de

agosto de 1994. Diário da Justiça. [Brasília, DF], 10 set. 1999. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/ADI-MC1003>. Acesso em: 20 jan. 2014.

empresário, mas o será se distribuir riqueza e propiciar justiça social. Em seu voto, ressaltou o Ministro Moreira Alves:303

Portanto, embora um dos fundamentos da ordem econômica seja a livre iniciativa, visa aquela a assegurar a todos existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social, observando-se os princípios enumerados nos sete incisos deste artigo. Ora, sendo a justiça social a justiça distributiva - e por isso mesmo é que se chega à finalidade da ordem econômica (assegurar a todos uma existência digna) por meio dos ditames dela-, e havendo a possibilidade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse artigo 170, se tomados em sentido absoluto, mister se faz, evidentemente, que se lhes dê sentido relativo para que se possibilite a sua conciliação a fim de que, sem conformidade com os ditames da justiça distributiva, se assegure a todos- e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos comuns deles- existência digna.

Tem-se, pois que ao dispor que a ordem econômica deve ser realizada conforme os ditames da justiça social, a Constituição determina que o Estado e a sociedade devam concorrer para a concretização desse objetivo, sendo certo que os particulares “devem exercer suas atividades, e usar suas propriedades em benefício de seus pares, na aplicação integral dos valores fundamentais de modo horizontal”.304

Significa, ainda, dizer que o dever de tanto a atuação do Estado como a das empresas deve ser direcionada à superação das diferenças, das injustiças e da redução das desigualdades regionais e sociais, como forma de assegurar a todos existência digna.