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A função social da propriedade na Constituição de 1988

4. Direito de propriedade e função social

4.4 A função social da propriedade na Constituição de 1988

O Texto Constitucional em vigor230 faz menção expressa à função social da propriedade em sete dispositivos: no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelecendo no inciso XXIII que a propriedade atenderá sua função social; no Título VII – Da ordem econômica e financeira, Capítulo I – Dos princípios gerais da atividade econômica, no art. 170, III, ao inserir a função social da propriedade como princípio geral da atividade econômica; no art. 173, § 1º, do mesmo capítulo, ao dispor que a lei estabelecerá a função social das empresas estatais que explorem atividade econômica; no art. 182, § 2º, do Capítulo II do mesmo Título VII, denominado Da Política Urbana, ao especificar a forma de cumprimento da

função social da propriedade urbana; e nos arts. 184, 185, parágrafo único, e 186 do Título VII – Da ordem econômica e financeira, Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e da reforma agrária, ao disciplinar, respectivamente, a chamada desapropriação-sanção da propriedade rural improdutiva; garantir tratamento especial à propriedade rural produtiva e delegar à lei a fixação dos requisitos de cumprimento de sua função social; e ao fixar as exigências para que a propriedade rural cumpra sua função social.

Há, ainda, uma série de dispositivos que se relacionam de alguma forma com a função social da propriedade: o art. 5º, XXIV, que estabelece as três hipóteses de desapropriação (necessidade pública, utilidade pública e interesse social); o inciso XXV, ao prever a possibilidade de uso de bem particular em caso de iminente perigo público, com indenização ulterior; o inciso XXVI do mesmo artigo, ao declarar a impenhorabilidade da pequena propriedade rural; o art. 21, IX, que dá à União competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação territorial; o art. 30, que atribui competência ao Município para ordenar seu território, planejar e controlar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano e proteger o patrimônio histórico-cultural local; o art. 153, § 4º, instituindo a progressividade do ITR – Imposto Territorial Rural para estimular a produtividade do imóvel rural; o art. 176, ao destacar a propriedade das jazidas e dos potenciais de energia elétrica da do solo, fazendo-os bens da União; o art. 182, caput, ao dispor que a Política de Desenvolvimento Urbano tem por objetivo desenvolver as funções sociais da cidade; o § 1º, ao estatuir a obrigatoriedade do plano diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes; o § 4º do mesmo artigo, ao fixar os instrumentos para o adequado aproveitamento do solo urbano (parcelamento ou edificação compulsórios; IPTU progressivo e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública); ao regular o usucapião de pequenas áreas urbanas (art. 183); ao garantir contra a desapropriação a pequena e média propriedade rural, bem como aquela produtiva (art. 185); ao limitar o acesso à propriedade rural por estrangeiros (art. 190); ao prever o usucapião pro-labore de imóveis rurais (art. 191) e, no art. 216, § 1º, a desapropriação como instrumento de proteção do patrimônio cultural.

Como se pode observar já à primeira vista, o Texto atual traz uma disciplina bem mais minuciosa do direito de propriedade e de sua função social se comparado às

Constituições anteriores. Mas isso não lhe garante aprovação unânime entre os estudiosos do tema.

Para Ricardo Pereira Lira, a atuação dos conservadores na elaboração do texto da Constituição de 1988 conseguiu trazer graves empecilhos aos avanços que se descortinavam no sistema jurídico nacional em relação ao direito de propriedade rural. A executoriedade imediata de várias disposições foi posta em séria dúvida pelas sucessivas remissões à legislação complementar. Até mesmo o usucapião de terras públicas foi categoricamente proibido, o que não acontecia no regime anterior. A expressão “latifúndio” foi banida do Texto Constitucional, o que, para o autor, demonstra o ranço conservador do que foi produzido pelo último constituinte no que se refere à política agrícola e fundiária231.

Já com relação à política urbana, o Professor Lira ressalta o progresso da Constituição de 1988, que veicula um “modelo inédito, conduzindo a questão urbana ao patamar constitucional, dando à Cidade as galas de um prestígio constitucional”232. Ressalta, como relevantes, os seguintes pontos: competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano (art. 21, XX); competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre Direito Urbanístico (art. 24, I); competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I) e para promover o adequado ordenamento territorial (art. 30, VIII); todo o capítulo sobre Política Urbana, que prevê o desenvolvimento das funções sociais da cidade como objetivo da Política de Desenvolvimento Urbano, torna obrigatória a existência de plano diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes, define o cumprimento da função social da propriedade urbana em relação às exigências do plano diretor, prevê o parcelamento e a edificação compulsórios e a desapropriação com pagamento mediante títulos da dúvida pública para o caso de não-cumprimento da função social dos imóveis urbanos. O autor destaca, porém, também em relação à propriedade urbana, manifestações conservadoras do Texto Maior, como quando prevê a utilização “sucessiva”, e não autônoma, dos institutos da edificação e parcelamento compulsórios; quando abandona a tradição de admitir o

231 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 329-32. 232 Id., p. 364.

usucapião pro labore de terras públicas; e ao omitir-se em relação a uma disciplina mais abrangente das regiões metropolitanas233.

João Alberto Schützer Del Nero também critica a atual disciplina constitucional do assunto. Afirma ele que

[...]o fato de o princípio da função social da propriedade ter passado de normas programáticas que não mencionam legislação futura (Constituição de 1967- 1969) para normas que mencionam legislação futura e normas de eficácia contida (Constituição de 1988) lhe restringiu a função em nome de segurança e certeza maiores, trazidas pela minúcia de tratamento. O legislador comprometeu- se mais; comprometeu-se, porém, mais consigo próprio e, de uma certa maneira, descomprometeu a administração e a jurisdição, no que concerne à busca do sentido teleológico da função social da propriedade quando da interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas234.

Já Gustavo Tepedino afirma ser o Texto Constitucional

[...] inovador, parecendo injustas muitas das críticas que lhe foram desfechadas, no sentido de que teria resultado conservadora a disciplina sobre a reforma agrária, representando verdadeiro retrocesso em face do próprio Estatuto da Terra235.

Conclui que a garantia de propriedade deve ser orientada pelos princípios e objetivos fundamentais da República, estabelecidos nos arts. 1º e 3º do Texto Maior, o que permite afirmar que

[...] o pressuposto para a tutela de uma situação proprietária é o cumprimento de sua função social, que, por sua vez, tem conteúdo pré-determinado, voltado para a dignidade da pessoa humana e para a igualdade com terceiros não proprietário236.

233 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 364-6.

234 DEL NERO, João Alberto Schützer. O significado jurídico da expressão função social da propriedade.

Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, nº 3, 1997, p. 96.

235 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista da Faculdade de

Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 1, nº 64, jul. 1995, p. 115-6.

Ao contrário da Constituição de 1967, o atual Texto Maior inclui a função social da propriedade tanto entre os princípios da atividade econômica como entre os direitos e garantias individuais. Daí decorre uma importante conseqüência, apreendida por Luciane Moessa de Souza:

[...] em caso de conflito entre a função econômica e social, a Constituição prestigia, em primeiro lugar, a função social, já que esta se encontra incluída não mais apenas como princípio da ordem econômica, como ocorria na ordem constitucional anterior, mas também entre os direitos e garantias individuais237.

A autora, baseada nas colocações de Fábio Konder Comparato, faz interessante diferenciação entre o “direito à propriedade privada”, garantido pelo caput do art. 5º da Constituição, e o “direito de propriedade”, garantido pelo inciso XXII do mesmo artigo. O direito à propriedade resumir-se-ia no “direito de acesso à titularidade dos bens necessários a uma existência digna”. Com a introdução da função social da propriedade privada, o direito de propriedade (= titularidade pura e simples de bens) passaria a ser um instrumento de realização do direito à propriedade238.

Entendemos que a evolução na disciplina da função social da propriedade é evidente no Texto atual.

É extremamente relevante, em primeiro lugar, que o Texto Constitucional tenha submetido a noção tradicional de propriedade privada ao cumprimento de uma função social, e tenha elevado tal submissão ao nível de cláusula pétrea, tornando-a imune às reformas constitucionais239.

237 SOUZA, Luciane Moessa de. A natureza jurídica da propriedade em face do princípio da função social da

propriedade no Direito brasileiro, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 32, nº 33, 2000, p. 200.

238 Id., p. 199-200.

239 Como afirma Carlos Araújo Leonetti, “[...] como se trata de direito individual, o regime da propriedade

privada, estabelecido no art. 5º, não pode ser objeto de Emenda Constitucional tendente a aboli-lo, por força do disposto no art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna, que o erigiu em cláusula pétrea” (LEONETTI, Carlos Araújo. Op. cit., p. 736 – grifos do original).

Além disso, pela primeira vez houve um regramento específico para a política urbana, cuja conformação atinge ferozmente a propriedade dos bens imóveis urbanos, verdadeiro coração da disciplina civilística da propriedade.

A par da consagração da função social da propriedade como princípio240, a Constituição traz diversas regras241 que tratam do tema. A intelecção destas, conjugadas com a noção política de função social da propriedade, contribui decisivamente para a tarefa de precisar o conceito jurídico do princípio.

Neste ponto, convém não esquecer, sobretudo, que a gênese de uma Constituição democrática está na própria sociedade, que se apresenta plural e repleta de contradições242. Esses conflitos tendem a se transportar da base social para o texto jurídico, prejudicando a tarefa interpretativa e, muitas vezes, gerando avanços e retrocessos na disciplina de matérias específicas. Daí, v.g., o retrocesso na falta de menção ao latifúndio, mas o avanço considerável nos instrumentos de implementação da política urbana.

Estamos, portanto, com Eros Roberto Grau, em lição concebida especificamente em relação à ordem econômica na Constituição de 1988, mas plenamente aplicável à disciplina da função social da propriedade no Texto atual:

A ordem econômica e a Constituição de 1988, no seu todo, estão prenhes de cláusulas transformadoras. A sua interpretação dinâmica se impõe a todos quantos não estejam possuídos por uma visão estática da realidade. Mais do que divididos, os homens, entre aqueles que se conformam com o mundo, tal como está, e aqueles que tomam como seu projeto o de transformá-lo, aparta-os o fato de os segundos terem consciência de que a História – como a vida – é movimento. E de que a História não acabou, ilusão que só pode ser alimentada por quem não tenha a menor idéia das condições de vida do homem nas sociedades subdesenvolvidas243.

240 V., infra, Capítulo 5.

241 Sobre a diferenciação entre regras e princípios constitucionais, v., supra, Capítulo 3.

242 Como ensina Juarez de Freitas: “Quer-me parecer, com efeito, que uma Constituição democrática

forçosamente precisa apresentar tensão interna congênita, sob pena de não traduzir, de modo legítimo e em permanente legitimação, os multifacéticos anseios alojados no corpo e na alma da sociedade, suscitando ou impondo o permanente trabalho interpretativo de compatibilização e de dação de vida organizada às prescrições fragmentárias” (FREITAS, Juarez de. Op. cit., p. 234).

5. Conteúdo do princípio constitucional da função social da