• Nenhum resultado encontrado

6. Eficácia do princípio constitucional da função social da propriedade

6.3 O princípio da função social da propriedade e a legislação infraconstitucional

6.3.2 Função social e imposições à propriedade

Outro ponto de divergência é realçado, com percuciência, por Carlos Ari Sundfeld, em linhas contundentes. Após afirmar que o princípio da função social não é o fundamento das clássicas limitações administrativas à propriedade, pondera:

308 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre o poder de polícia. Revista cit., p. 57. No

mesmo diapasão está Lúcia Valle Figueiredo: “As limitações correspondem ao perfil do direito. São a própria conformação do direito. Daí por que são gerais (como necessariamente a lei é), abstratas (como a lei é) e atingem ou podem atingir a todos, ou a determinadas categorias” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de

Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 190).

Ora, se nunca se impugnou o poder de o Estado limitar a propriedade, adequando-a ao interesse público, mesmo quando esta era tida apenas por direito individual absoluto, por que achar agora que as limitações baseiam-se no princípio da função social?310.

E arremata, após observar que, se a função social for tomada em tal sentido “equivocado”, seu conteúdo restará obscurecido:

Portanto, só se pode concluir que o princípio da função social é um “novo instrumento” que, conjugado aos normalmente admitidos (as limitações, as desapropriações, as servidões etc.), possibilitam a obtenção de uma ordem econômica e social que realize o desenvolvimento com justiça social311.

Sem entrar, aqui, na discussão acerca das imposições decorrentes do poder de polícia (se consubstanciam obrigação de fazer ou de não fazer)312, entendemos que a adoção do princípio da função social da propriedade em um ordenamento jurídico acarreta – ou, pelo menos, deveria acarretar – transformações consideráveis na compreensão da atividade estatal direcionada à disciplina da propriedade privada.

Como averbamos anteriormente, a concepção da função social da propriedade nasceu exatamente do desequilíbrio social causado pelas idéias liberais. Representa, pois, uma contraposição à ordem liberal, ao Estado mínimo, que apenas assegurava as condições básicas para o funcionamento das regras de mercado, que a tudo proveriam. Seria um

contra-senso afirmar que sua adoção apenas serviria para legitimar as limitações

administrativas, que historicamente sempre estiveram atreladas a uma concepção de Estado... liberal!

310 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,

Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 8.

311 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,

Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 9.

312 V., sobre o tema: SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu;

FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 10-11; GRAU, Eros Roberto. A

ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 255; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.

Apontamentos sobre o poder de polícia. Revista cit., p. 58; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito

Assim entendido, é evidente que teríamos um esvaziamento do princípio, e, por decorrência, uma interpretação inaceitável do Texto Constitucional.

Mais uma vez, Eros Roberto Grau:

Tenha-se bem presente, porém – e de todo enfatizado – que o princípio da função social da propriedade deve ser visualizado desde uma perspectiva muito mais ampla. Injustificável seja concebido apenas negativamente – isto é, como expressivo da imposição de um dever de não fazer ao proprietário. Correto fosse tal entendimento e estaríamos, quando diante dele, singelamente em presença de uma designação específica, atribuída à antiga noção de poder de polícia, herança da ideologia do Estado Liberal.

A função social da propriedade é qualitativamente distinta do poder de polícia. A integração dela – repita-se – nos conceitos de propriedade de determinados bens importa a imposição, sobre os proprietários deles, de deveres de ação313.

No mesmo sentido:

A função social da propriedade, pois, na atualidade, não é concebida, como foi à época do liberalismo, como “princípio gerador da imposição de limites negativos, estabelecidos à atividade do proprietário” – e que simbolizaram simples projeção do poder de polícia.

Antes, imprime-se-lhe uma concepção positiva, “como princípio gerador da imposição de comportamentos positivos do proprietário”. Por força de preceito normativo, este não possui apenas o dever de não exercitar seu direito em detrimento de outrem, como sucedia anteriormente. Possui, de modo correlato, o dever de exercitar aquele direito em favor de outrem314.

Essa conclusão, entretanto, não basta, em nossa visão, para a correta caracterização do princípio da função social da propriedade.

Não podemos, sob pena de também deprimir seu conteúdo, circunscrever os efeitos do princípio jurídico da função social da propriedade ao âmbito de alguns instrumentos jurídicos de intervenção na propriedade privada, retirando de sua influência, v.g., as tradicionais limitações administrativas.

313 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p . 71. 314 RUSSOMANO, Rosah. Op. cit., p. 265 – destaques no original.

A função social da propriedade, como princípio constitucional que é, deve irradiar efeitos sobre todas as normas infraconstitucionais que tratem do tema propriedade; deve incidir tanto sobre a atividade estatal de contenção do comportamento dos administrados (poder de polícia) como sobre a atividade estatal de impulsão do exercício dos poderes do domínio (que extrapola, segundo alguns autores, o âmbito tradicional do poder de polícia), colocando-as, todas, a serviço do objetivo maior traçado pelo Texto Magno: alcançar a justiça social.

Sem sombra de dúvida, a função social da propriedade não é só mais uma disposição constitucional entre as inúmeras estabelecidas pela detalhadíssima Constituição brasileira. É, ao contrário, pedra de toque de um sistema; vetor interpretativo; diretriz axiológica. Ou seja: princípio jurídico.

Vale relembrar a clássica lição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo315.

No mesmo sentido escreve Carlos Ari Sundfeld:

O princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras, pois determina o sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamento jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, no sentido que vai daqueles para estas.

Por isso, conhecer os princípios do direito é condição essencial para aplicá-lo corretamente. Aquele que só conhece as regras ignora a parcela mais importante do direito – justamente a que faz delas um todo coerente, lógico e ordenado. Logo, aplica o direito pela metade316.

315 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 912-3. 316 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público, cit., p. 140.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, após estabelecer a diferença entre normas concretamente preceptivas (aquelas que impõem comportamentos) e normas abstratamente preceptivas (aquelas que indicam um gênero de condutas, que serão concretamente regradas pelas concretamente preceptivas), afirma:

Daí definir-se, sinteticamente, o princípio jurídico como norma indicativa, uma vez que sua principal finalidade é apenas a de indicar um valor ou um fim, que devam ser genericamente alcançados, não importa em que grau satisfativo, por todas as leis (preceitos ou regras jurídicos), normas concretamente preceptivas, que dele derivem.

Resulta nítida dessa conceituação a importância estruturante dos princípios, uma vez que a infraestrutura de normas preceptivas se articula polivalentemente com uma superestrutura de normas principiológicas, que lhes conferem sentido

valorativo e finalístico, e lhes dão toda coerência sistêmica necessária para

aplicá-las harmonicamente317.

Estaríamos, pois, ceifando grande parte da força que brota do acolhimento da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico se circunscrevêssemos sua aplicação a alguns instrumentos estatais de intervenção na propriedade privada. O pecado seria ainda maior se tivermos em conta que o princípio é, além de tudo, de grau constitucional.

O que peculiariza a interpretação das normas da Constituição, de modo mais marcado, é o fato de ser ela o estatuto jurídico do político, o que prontamente nos remete à ponderação de “valores políticos”. Como, no entanto, esses “valores” penetram o nível do jurídico, na Constituição, quando contemplados em princípios – seja em princípios positivos do direito, seja em princípios gerais

do direito, ainda não positivados – desde logo se antevê a necessidade de os

tomarmos, tais princípios, como conformadores da interpretação das regras constitucionais318.

Pelo que foi dito até aqui, já se pode perceber que não deixamos de fora do influxo do princípio da função social da propriedade nenhum dos instrumentos estatais de

317 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 74 –

grifos do original.

intervenção na propriedade privada. Nem mesmo as tradicionais limitações administrativas, fundamentadas na concepção tradicional do poder de polícia.

Não queremos, com isso, identificar a função social da propriedade com os instrumentos tradicionais de limitação da propriedade – o que já foi devidamente rechaçado linhas atrás. O que sustentamos é que o princípio da função social da propriedade irradia efeitos não só sobre os novos instrumentos de intervenção no domínio privado (parcelamento e edificação compulsórios, v.g.), mas também sobre todo e qualquer instrumento de intervenção, ainda que tradicionalmente calcado no poder de polícia.

Em outros termos, o princípio da função social da propriedade, além de permitir imposições de “obrigações de fazer” (ou seja, imposição do exercício do próprio direito de propriedade), potencializa as intervenções amparadas na concepção tradicional do poder de polícia.

Referindo-se à função social da propriedade como verdadeiro vetor interpretativo, que irradia efeitos sobre toda e qualquer atividade estatal que tenha por objeto a propriedade privada, encontramos lições de diversos autores nacionais de nomeada:

A função social da propriedade em consonância com os demais princípios constitucionais, é o mandamento principal do regime da propriedade urbana que deve ser disciplinado pelo direito público319.

Como se vê, tal é a relevância e a extensão do princípio da função social da propriedade, irradiando-se por todo o campo de incidência das normas urbanísticas, que podemos afirmar, com segurança, ser este um princípio fundamental, típico de Direito Urbanístico, verdadeira diretriz a nortear toda a ordenação do território320.

A função social da propriedade informa, direciona, instrui e determina o modo de correção jurídica de todo o qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade321.

Das idéias acima expostas decorre logicamente a afirmação de que não vemos nenhum equívoco em afirmar que as limitações administrativas também estão amparadas

319 SAULE JÚNIOR, Nelson. Op. cit., p. 54-5.

320 COSTA, Regina Helena. Princípios de Direito Urbanístico na Constituição de 1988. In: DALLARI,

Adilson Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico - 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 121.

321 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de

pelo princípio da função social da propriedade, ao contrário do que sustenta Carlos Ari Sundfeld322.

Com razão, portanto, Hely Lopes Meirelles323, Adilson Abreu Dallari324, José Afonso da Silva325, Vladimir da Rocha França326 e Diogo de Figueiredo Moreira Neto327 ao afirmar que a função social da propriedade é, sim, fundamento das tradicionais limitações administrativas (ainda que não seja somente isso).

Aliás, parece que o próprio Professor Carlos Ari, tacitamente, aceita a influência do princípio da função social sobre as limitações tradicionalmente amparadas no poder de polícia quando afirma, ao discorrer sobre a utilização compulsória de imóvel urbano:

Não nos parece aceitável, salvo em casos excepcionais, que o Poder Público indique ao possuidor exatamente qual a utilização a ser dada, determinando, por hipótese, que se instale um açougue ou que se construa prédio residencial de alto padrão. O meio mais adequado de impor a utilização é o estabelecimento de

zonas de uso, onde haja a previsão de usos (genéricos) possíveis, facultada ao

administrado, dentre eles, a escolha daquele que melhor atenda seu interesse pessoal328.

Ora, o estabelecimento de zonas de uso (ou seja, o zoneamento) é instrumento tradicionalmente baseado no poder de polícia. Apesar disso, é classificado pelo Texto como o “meio mais adequado de impor a utilização do imóvel”, obrigação de caráter positivo e certamente calcada no princípio da função social da propriedade.

322 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,

Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 7, esp. nota de rodapé nº 12.

323 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal brasileiro. 12. ed. atual. por Célia Marisa Prendes e Márcio

Schneider Reis. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 488.

324 DALLARI, Adilson Abreu. Servidões administrativas. Revista cit., p. 90. 325 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro, cit., p. 217. 326 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Op. cit., p. 16 e 20.

327 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Urbanístico e limitações administrativas urbanísticas.

Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 27, nº 107, jul./set. 1990, p. 104.

328 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,

Portanto, as limitações – como todas as demais formas de intervenção do Estado na propriedade privada – estão no princípio da função social da propriedade e recebem seu influxo.

E aqui cabe mais um destaque.

Não se pode confundir o princípio da função social da propriedade com as regras baseadas nesse mesmo princípio, ainda que elas tenham sede constitucional.

São coisas completamente distintas: a) a diretriz axiológica constante do art. 5º, XXIII, da Constituição Federal e b) os institutos que buscam concretizá-la, ainda que também previstos na Carta Magna – o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórias, por exemplo. Tanto que as normas constitucionais referentes a estes últimos são, para alguns, de eficácia limitada, o que jamais poderia ser sustentado com exatidão no tocante ao princípio da função social, sobretudo em face do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, que determina a aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais329.