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Princípios, valores e interpretação constitucional

3. A moderna interpretação constitucional e os princípios

3.4 Princípios, valores e interpretação constitucional

Entretanto, convém ter em mente que a distinção entre regras e princípios pelo aspecto estrutural nem sempre é compatível com a definição clássica de princípios, feita pela doutrina brasileira. Como alerta Virgílio Afonso da Silva:

[...] o critério que Alexy utiliza para distinguir princípios e regras é um critério estrutural, que não leva em consideração nem fundamentalidade, nem generalidade, nem abstração, nem outros critérios materiais, imprescindíveis nas classificações tradicionais acima mencionadas. Como conseqüência, muito do que é tradicionalmente considerado como princípio fundamentalíssimo – a anterioridade da lei penal é um exemplo esclarecedor – é, segundo os critérios propostos por Alexy, uma regra e não um princípio128.

De fato, a diferenciação exclusivamente lógica acaba por impedir a caracterização dos princípios como normas fundamentais de um sistema. Disposições com importância material realçada em determinado Texto Constitucional podem tanto merecer aplicação

127 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 280-1.

128 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações

entre particulares, cit., p. 30. Em outro trabalho o autor identifica de forma ainda mais contundente a incompatibilidade citada: “O conceito de princípio, na teoria de Alexy, é um conceito que nada diz sobre a fundamentalidade da norma. Assim, um princípio pode ser um ‘mandamento nuclear do sistema’, mas pode

também não o ser, já que uma norma é um princípio apenas em razão de sua estrutura normativa e não de

sua fundamentalidade” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, Revista cit., p. 613, grifos do original).

incondicional (tudo-ou-nada) como apontar direções, a serem seguidas na maior medida

possível.

Dessa incompatibilidade advém uma importante conseqüência: a estreita ligação entre princípios e valores fica seriamente comprometida.

Com efeito, a positivação de um valor pode tanto ser feita, sob o aspecto lógico, por meio de uma regra como por meio de um princípio. O ordenamento positivo, com seus enunciados, pode dar a determinado valor a roupagem de uma regra – e então ele será aplicável em termos de tudo-ou-nada – ou a de um princípio – e então ele será buscado na

maior medida possível129.

Em outras palavras, conforme o legislador constitucional lhes dê roupagem mais específica ou mais genérica, determinado valor adotado pelo Texto terá, sob o aspecto funcional, a natureza de regra ou de princípio. Isso não afeta, entretanto, seu status de norma fundamental: não é porque receberam enunciação mais específica que, v.g., o princípio da irretroatividade da lei penal ou o da vedação dos tribunais de exceção terão diminuído em importância no sistema constitucional hoje em vigor130.

A diferenciação estritamente lógica (forte) entre princípios e regras acaba por desnaturar completamente a função primordial daqueles no sistema jurídico: cimentar seus diversos componentes, funcionando como vetor de interpretação. Afinal, essa função, segundo acreditamos, está muito mais ligada ao caráter político de determinadas normas jurídicas do que a sua estrutura lógica.

129 A hipótese pode ser ilustrada com o princípio da irretroatividade da lei penal. Nossa Constituição o

agasalha no art. 5º, XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Não há dúvida de que, sob o aspecto lógico, estamos diante de uma regra: a lei penal não poderá ter efeito retroativo. A única exceção está ali expressamente prevista: para beneficiar o réu. Portanto, dada a ocorrência do pressuposto fático traçado pela hipótese de incidência constitucional (qual seja, a promulgação de uma lei penal), ela não pode ter efeitos retroativos, salvo em benefício do réu. A aplicação da norma é, claramente, feita em termos de tudo- ou-nada.

130 Aliás, é possível afirmar que esses valores, exatamente por se apresentarem já consolidados e enraizados

na cultura de nosso povo, é que puderam ser vazados em regras, que incidirão inapelavelmente – e não na maior medida possível – quando verificada a hipótese fática nelas descrita. Quando não existe, na esfera política, esse consenso, a tendência é a que o compromisso possível realizado entre as diversas correntes de pensamento existentes na sociedade seja vazado na Constituição por meio de normas mais genéricas, de menor densidade e, portanto, com menor ímpeto de aplicação.

É mister, pois, que – sem desprezar as profundas evoluções desencadeadas pela descoberta da diferenciação lógica entre as espécies normativas – não se perca de vista a vinculação entre princípios e valores, agora não mais como forma de aplacar-lhes a eficácia, hodiernamente reconhecida por todos, mas sim de vincular-lhes a interpretação aos anseios sociais subjacentes ao Texto Constitucional.

Nesse sentido, merece transcrição a lição de Walter Claudius Rothenburg:

Se os princípios têm suas propriedades, diferenciando-se por sua natureza (qualitativamente) dos demais preceitos jurídicos, a distinção está em que constituem eles “expressão primeira” dos “valores fundamentais” expressos pelo ordenamento jurídico, “informando materialmente” as demais normas (fornecendo-lhes a inspiração para o recheio)131.

Para os limites do presente trabalho, portanto, os princípios são definidos como as normas fundamentais de dado sistema. No que se refere ao sistema constitucional, seus princípios são normas axiologicamente superiores, fruto da internalização de conceitos extrajurídicos. São, portanto, os valores adotados pela Constituição132.

A vinculação entre princípios e valores, bem como a função normogenética e a eficácia interpretativa que daí irradiam, acabam por fundamentar outra afirmação de destacada importância: a supremacia funcional dos princípios no interior do sistema constitucional.

Destarte, não se pode afirmar a existência de uma autêntica hierarquia entre os princípios e regras constitucionais – com exceção, obviamente, das clamadas cláusulas pétreas, que, quer veiculem autênticos princípios, quer se refiram apenas a regras

131 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. 2. tir. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris

Editor, 2003. p. 16.

132 A adoção desse critério para estremar as regras dos princípios não denota, como dito, qualquer juízo de

valor sobre a distinção qualitativa defendida por Alexy e Dworkin. Apenas significa que, para os limites do presente trabalho, a premissa adotada e sobre a qual todas as demais considerações estarão estruturadas é a identificação dos princípios como valores internalizados pela Constituição. Busca-se, assim, um mínimo de coerência metodológica. Como diz Virgílio Afonso da Silva: “[...] não há que se falar em classificação mais ou menos adequada, ou, o que é pior, em classificação mais ou menos moderna. Classificações ou são coerentes e metodologicamente sólidas, ou são contraditórias – quando, por exemplo, são misturados diversos

constitucionais, estão alçadas a uma condição superior. Salvo esse caso excepcional, os princípios e as regras fazem, ambos, parte da Lei Maior, e devem ter suas inter-relações traçadas tendo em vista a manutenção da unidade da Constituição.

Apesar de se situarem no mesmo nível hierárquico, os princípios e as regras possuem funções diversas, sobretudo em matéria de interpretação constitucional. É possível, portanto, sob a estrita ótica da hermenêutica constitucional, estabelecer uma escala de importância das normas constitucionais no que se refere à tarefa interpretativa, âmbito no qual os princípios têm inegável supremacia. Nesse sentido:

Fica claro, pois, que, nada obstante as singularidades que cercam os princípios das regras, aqueles não se colocam, na verdade, além ou acima destas. Juntamente com as regras, fazem os princípios parte do ordenamento jurídico. O que nos leva a concluir que todas as normas apresentam o mesmo nível hierárquico. Ainda assim, contudo, é possível identificar o fato de que certas normas, as principiológicas, na medida em que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, perdem densidade semântica, ascendem para uma posição que lhes permite sobrepairar uma área muito mais ampla. O que elas perdem, pois, em carga normativa ganham como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas. No fundo, são normas tanto as que encerram princípios quanto as que encerram preceitos133.

A interpretação constitucional, portanto, resta absolutamente vinculada pelos princípios. Os princípios estabelecidos pela Constituição, por conseguinte, vinculam tanto a interpretação do próprio Texto Constitucional como a da legislação inferior, que nele está baseada.

Nessa mesma linha, ressaltando a função de vetor interpretativo dos princípios constitucionais, encontramos a lição de Luís Roberto Barroso: “Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos”134.

De forma enfática, escreve Carlos Ari Sundfeld:

critérios distintivos – e, por isso, pouco ou nada úteis” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista cit., p. 614 – grifos do original).

133 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 75-6. 134 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 143

Quanto à função dos princípios na interpretação das regras, pode-se dizer que: a) É incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar contradição, explícita ou velada, com os princípios;

b) Quando a regra admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece a que melhor se afinar com os princípios;

c) Quando a regra tiver sido redigida de modo tal que resulte mais extensa ou mais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcance da regra com o do princípio135.

Descortinar os princípios estabelecidos pelo Texto Constitucional é, destarte, dar um passo decisivo na direção da interpretação constitucional mais adequada.