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3. A moderna interpretação constitucional e os princípios

3.1 A “moderna” interpretação constitucional

Designa-se por “moderna” interpretação constitucional aquela dominada pelas novas técnicas de cunho “principiológico”, na qual o processo de atribuição de sentido ao Texto é permeado – e, mais além, é condicionado – pelos “valores” positivados pelo poder constituinte.

O adjetivo “moderna”86 quer significar tanto a suplantação dos meios tradicionais de interpretação (lógico, sistemático, histórico, gramatical)87 como o abandono dos cânones juspositivistas88, que desprezavam a realidade social na qual os preceitos

86 Vale citar, aqui, o alerta de Virgílio Afonso da Silva: “’Moderno’ é, aliás, um adjetivo usado quase sempre

como sinônimo de ‘argumento de autoridade’. Opinião abalizada é aquela que segue a ‘doutrina mais moderna’, que nada mais é do que aquela defendida por quem usa essa expressão. Falar em ‘direito constitucional moderno’ ou em ‘princípios da moderna interpretação constitucional’ é, assim, uma forma de se autolegitimar” (Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional, cit., p. 116, nota de rodapé nº 2).

87 Como esclarecem Luís Roberto Barroso e Ana Paulo de Barcellos: “A idéia de uma nova interpretação

constitucional liga-se ao desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da constituição. Não importa desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo, fundado na aplicação de regras –, nem dos elementos tradicionais de hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na solução de casos concretos. Relevante, mas nem sempre suficiente” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 274).

88 Norberto Bobbio esclarece a posição do positivismo jurídico em relação à interpretação: “O juspositivismo

tem uma concepção formalista da ciência jurídica, visto que na interpretação dá absoluta prevalência às formas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções puramente lógicas que se possam fazer com base neles, com prejuízo da realidade social que se encontra por trás de tais formas, dos conflitos de interesse que o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários do positivismo jurídico) guiar o jurista na sua atividade interpretativa” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio Publiesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 221). Lourival Vilanova alerta para o fato de que o positivismo foi concebido num contexto social que exprimia necessidades de: transposição do racionalismo filosófico para a prática jurídica; sistematização e unificação do Direito; unificação das fontes normativas; primazia da lei como expressão da vontade geral; concepção da função judicial como mera aplicação dos textos legais; e interpretação vista apenas como compreensão do sentido estabelecido (pelo legislador histórico ou pelo próprio texto). “Tudo isso eram pressupostos do Estado moderno, que se iniciou com o Estado absoluto e teve no Estado-de-Direito sua expressão maior, como Estado de poderes divididos, constitucionalmente repartidos, dotado de previsão

constitucionais são moldados, sem representar, entretanto, a adoção de um jusnaturalismo sem base científica sólida. “A quadra atual é assinalada pela superação – ou, talvez, sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo”89.

A nova hermenêutica constitucional abandona por completo a dualidade entre

norma e princípio jurídico. Como afirma Paulo Bonavides,

[...] fica para trás, já de todo anacrônica, a dualidade, ou, mais precisamente, o confronto princípio “versus” norma, uma vez que pelo novo discurso metodológico a norma é conceitualmente elevada à categoria de gênero, do qual as espécies vêm a ser o princípio e a regra 90.

Daí advém a necessidade de, ao se enquadrar os princípios como verdadeiras normas jurídicas, desenvolver um instrumental específico de interpretação, de modo a cumprir a difícil missão de dar sentido a preceitos tão genéricos e abstratos que remetam a valores forjados e desenvolvidos muitas vezes fora dos limites do Direito.

A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema 91.

Como afirma Paulo Bonavides, os princípios são “o oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração da sua ordem normativa”. Acrescenta: a superioridade dos princípios na pirâmide normativa

normativa dos atos dos órgãos do poder, em função da certeza das relações e da segurança individual” (VILANOVA, Lourival. Op. cit., p. 320-1).

89 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do

Direito Constitucional no Brasil. Revista cit., p. 5.

[...] não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder, [...] onde aparecem como pontos axiológicos de mais alto destaque [...]92.

Ao reafirmar a importância dos princípios no processo interpretativo, sem cercear a estreita ligação existente entre princípio e valor, a moderna hermenêutica constitucional reaproxima o direito da ética, separação que foi fundamental na era positivista. Nesse sentido a lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e ética93.

É de notar, entretanto, que o recurso a valores não pressupõe a adoção de um posicionamento jusnaturalista ou transcendental, que admita a existência de uma pauta de valores suprapositivos que serviriam de base para a correção do direito positivo. O Direito continua a ser concebido como fruto de uma decisão do legislador. Somente os valores adotados pelo sistema jurídico, positivados por meio dos princípios, podem servir de pautas decisórias e interpretativas:

O Direito Constitucional, ao criar, assim, a Nova Hermenêutica, que lhe é específica, acolheu no plano científico do Direito as considerações axiológicas, mas referidas unicamente àqueles valores vazados no direito positivo e que desde muito, por um certo ângulo, constituem a matéria-prima do sociologismo jurídico ou do concretismo, de Ehrlich a Karl Engisch94e95.

91 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 141, com apoio em Jorge

Miranda, Manual..., 1983, t. 2, p. 198.

92 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 288-9.

93 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 279. 94 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 583.

95 Gordillo Cañas, citado por Paulo Bonavides (Op. cit., p. 290), afirma que a positivação dos princípios

permitiu que a Constituição incorporasse uma “ordem objetiva de valores”, positivados e não mais etéreos e abstratos como na concepção jusnaturalista. Como observa Ana Paula de Barcellos, do que se trata, na verdade, não é de integrar valores ao sistema, mas sim de identificá-los no sistema, já que “os elementos valorativos integram o próprio sistema” (BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 100).