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5. Conteúdo do princípio constitucional da função social da propriedade na Constituição

5.2 Delimitação do conteúdo do princípio da função social da propriedade privada

5.2.2 Função social e justiça social

A esta altura, o cerne da questão, segundo pensamos, é definir se a função social seria apenas a obrigação, a cargo do proprietário, de dar um destino socialmente útil a seu

257 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 41.

258 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista cit., p. 75. 259 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na

bem, ou se, mais do que isso, seria a obrigação de dar-lhe um destino que atendesse os postulados de uma justiça social.

Uma análise restrita ao art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição Federal poderia fundamentar a adesão ao primeiro dos posicionamentos citados.

Realmente, nos dois dispositivos mencionados apenas se garante o direito de propriedade, com a inclusão, em seu conteúdo, de uma finalidade externa ao proprietário, ou seja, de uma função. Nada se dispõe a respeito do objetivo dessa função.

Entretanto, a análise de outras disposições constitucionais relativas ao tema e ao desenvolvimento histórico experimentado pela noção de função social nos leva a sustentar que sua previsão está umbilicalmente ligada a objetivos de justiça social.

Com efeito, começando nossa análise pelo art. 3º da Carta Magna, constatamos que são elencados como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Uma interpretação finalística de qualquer disposição constante do texto da Constituição jamais poderá deixar de levar tais objetivos em consideração260.

Mais à frente, no capítulo reservado à ordem econômica e financeira, tanto o direito de propriedade como sua função social são submetidos a um objetivo expresso: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput e incisos II e III).

O genial trecho da lavra de José Afonso da Silva nos dá a compreensão exata do significado de tal disposição constitucional:

260 No mesmo sentido está Gustavo Tepedino (Op. cit., p. 115). Como sublinha Eros Roberto Grau, “a

afirmação dos significados expressados pelos enunciados normativos apenas se determina, plenamente, após a penetração, do intérprete, à busca dessa determinação no contexto funcional”, já que “a contemplação, no sistema jurídico, de normas-objetivo, importa a introdução, na sua ‘positividade’, de fins aos quais ele, o sistema, está voltado. A pesquisa dos fins da norma, desenrolada no contexto funcional, torna-se mais objetiva; a metodologia teleológica repousa em terreno firme” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na

Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumpra uma função dirigida à justiça social261.

Na mesma sintonia estão as conclusões esposadas por outros eminentes estudiosos do tema:

Parece fora de dúvida que a expressão função social da propriedade comporta não apenas o primeiro sentido, a que dantes se aludiu, mas também esta segunda acepção a que agora nos estamos reportando. Com efeito, se alguma hesitação pudesse existir quanto a isto, bastaria uma simples inspeção visual no art. 160 da Carta do País – tantas vezes referido – para verificar-se que nele está explicitamente afirmado ser finalidade da ordem econômica e social realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social. Ora bem, uma vez que estas finalidades hão de ser realizadas com base, entre outros princípios, no da função

social da propriedade (item III), é óbvio que esta foi concebida tomando em

conta objetivos de justiça social262.

Como princípio da ordem econômica, a função social da propriedade assume formas diversas cujas características sujeitam-se à destinação do bem objeto da propriedade. Por conseqüência, a propriedade só se justifica enquanto instrumento para se atingir a finalidade da ordem econômica, ou seja, existência

digna para todos, conforme os ditames da justiça social (art. 170)263.

A propriedade, como elemento fundamental da ordem econômica, há de servir à conquista de um desenvolvimento que realize a justiça social. Conseqüentemente, o regime jurídico que lhe for traçado deve ensejar o desenvolvimento e favorecer um modelo social que seja o da justa distribuição da riqueza264.

Pois bem, e o que significa a expressão “justiça social”? A resposta vem da pena privilegiada de Eros Roberto Grau:

[...] “justiça social” é expressão que, no contexto constitucional, não designa meramente uma espécie de justiça, porém um seu dado ideológico. O termo “social”, na expressão, como averbei em outra oportunidade, não é adjetivo que qualifique uma forma ou modalidade de justiça, mas que nela se compõe como substantivo que a integra. [...]

261 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, cit., p. 790.

262 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no Direito

Público. Revista cit., p. 44, escrito sob a égide da antiga Constituição.

263 SOUZA, Junia Verna Ferreira de. Op. cit., p. 153 – destaque no original.

264 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,

Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na

repartição, a nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto econômico, não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista265.

Portanto, a nosso ver, o princípio da função social da propriedade está umbilicalmente ligado a um objetivo maior: alcançar a justiça social, entendida esta como a necessidade de uma equânime repartição de riquezas.

A vinculação da expressão “justiça social” ao pensamento social cristão, inaugurado de maneira formal pela Encíclica Rerum Novarum, de 1891, parece inegável. E os postulados de tal doutrina se lastreiam exatamente na necessidade de “inserir o homem num todo social que tinha por fim a plenitude da vida individual”, sustentando a idéia de que “o interesse social qualificava os interesses individuais e impunha suas regras à autonomia de cada um”266.

Para José Diniz de Moraes, com arrimo em Manoel Gonçalves Ferreira Filho e em Castan Tobeñas, a função social da propriedade deita raízes em duas concepções filosóficas distintas: a doutrina clássica do direito natural da Igreja Católica e o positivismo filosófico. Estava presente nas doutrinas de Santo Ambrósio e São Tomás de Aquino, e nas considerações de Augusto Comte267.

Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira não hesita em apontar a teoria da Igreja como fundamental para a elaboração da teoria da função social da propriedade. Segundo ela, as encíclicas papais (Rerum Novarum, de Leão XII, de 1891; Quadragesimo Anno, de Pio XI, de 1931; e Mater er Magistra, de João XXIII) restauraram a idéia tomista do bem comum,

265 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 245 – grifos do original. 266 BAGET-BOZZO, Gianni. Pensamento social cristão. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola;

PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 8. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1995. v. 2. p. 921.

proclamando que a propriedade, apesar de não “ser” uma função, “possui” uma função social268.

Na mesma linha escreve Gustavo Tepedino, realçando, também, as idéias jusnaturalistas a respeito da função social da propriedade:

A investigação acerca da função social da propriedade remonta, pelo menos, à doutrina cristã da Idade Média, com a preocupação da utilização da propriedade para o bem comum, presença constante na Suma Teológica de São Tomás de Aquino. Os bens disponíveis na terra pertenceriam a todos, sendo destinados provisoriamente à apreensão individual. O jusnaturalismo, inspirado em critérios de eqüidade e justiça supralegislativa, proclamaria, posteriormente, a função social da propriedade traduzida na necessidade de utilização do bem enquanto instrumento de realização da justiça divina269.

Também Adilson Abreu Dallari, apesar de ponderar que não há absoluta certeza quanto à influência da Igreja Católica na configuração atual do direito de propriedade, admite que é inegável que as encíclicas sociais sempre mencionaram o assunto270.

A concepção cristã da propriedade, em seus primórdios, esteve estreitamente ligada à teologia. Adquiriu contornos filosóficos por intermédio de São Tomás de Aquino, para quem

[...] os bens temporais que são dados por Deus aos homens são verdadeiramente seus quanto à propriedade; mas, quanto ao uso, eles não devem ser somente seus, mas também daqueles outros que podem achar seu sustento sobre o que é supérfluo para o proprietário271.

268 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 109. 269 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 109.

270 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriação para fins urbanísticos, cit., p. 33. 271 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 141.

O direito de propriedade, portanto, merece proteção, mas somente em seu núcleo essencial: “A propriedade do ‘necessário’ é um direito absoluto; a propriedade do ‘supérfluo’ não passa de uma gestão em benefício de outrem”272.

Na concepção tomista, portanto, os homens possuem dois poderes em relação às coisas exteriores: o de administrá-las e distribuí-las e o de usá-las. O primeiro se justifica por três razões: de início porque cada um tende a administrar melhor o que só a ele pertence; além disso, porque, se todos administrassem tudo, haveria confusão; por fim, porque, se cada um está contente com o que tem, conserva-se a paz entre os homens. Já no que toca ao uso das coisas, os homens deveriam tê-las como coletivas, disponibilizando-as aos que delas necessitem273.

Na Encíclica Rerum Novarum, o Papa Leão XIII elevou a propriedade privada à condição de direito natural do homem, fruto direto da inteligência ou razão. Entretanto, na esteira dos ensinamentos de São Tomás de Aquino, decretou que, satisfeitas as necessidades e conveniências de cada um, é dever do proprietário prestar socorro às necessidades alheias274.

As conclusões estabelecidas na Encíclica Rerum Novarum foram aclaradas e reforçadas por meio da Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI. Nela se apontava como erro grosseiro a ligação que se fazia entre a Encíclica Rerum Novarum e a noção romano- civilista da propriedade. Para Pio XI, o direito de propriedade advém da natureza, e não pode ser tolhido pela autoridade pública. Esta, entretanto, pode disciplinar-lhe o uso, harmonizando-o com o bem comum275.

Conclui-se, pois, que o princípio da função social da propriedade impõe ao titular do domínio obrigação de utilizar seus bens em prol da coletividade, de modo a alcançar objetivos de justiça social.

272 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., bp. 145.

273 Summa Theologiae. IIa, IIae, q. 66, art. 2, resp. Apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Propriedade e função

social. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 27, nº 56, 2004, p. 116.

274 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 155. 275 Id., p. 158.

Por fim, merece referência o fato de que, ao afirmar a propriedade privada sua função social, nosso ordenamento constitucional institui, ainda que com ponderações, um regime capitalista de produção.

A função social da propriedade, portanto, ainda que receba influência das concepções marxistas, não representa a adoção de um sistema econômico socialista276. É, ao contrário, uma reafirmação da propriedade privada, um instrumento por meio do qual uma sociedade busca extrair vantagens coletivas da propriedade privada dos bens – por ela reconhecida277.

No mesmo sentido é o ensinamento de João Alberto Schützer Del Nero, para quem

[...] considerar as funções sociais da propriedade, embora seja um sintoma do declínio do capitalismo, em nada a compromete; a antítese real da propriedade privada não é sua concepção como função social, mas sim sua abolição, com o estabelecimento da economia planejada socialista278.

5.2.3 A propriedade em nosso ordenamento constitucional: direito